Confluências de Gabi Farias

A cantora e compositora destrincha a criação do seu primeiro disco, “Enchente”, e reflete sobre identidade amazônica, femininos possíveis e o poder das águas

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Fotos: Demi Brasil

Entre dar aulas de canto, colaborar com outros artistas e trabalhar em sua carreira solo, Gabi Farias mantém em mente uma missão importante: espalhar a música produzida na região Norte para o resto do país, e por que não, para o mundo todo. A trajetória musical da cantora e compositora de 25 anos começa ainda na primeira infância, quando ela dormia ao som da voz da avó, enquanto era embalada pelo movimento da rede. Nascida em Manaus, com apenas um ano, a artista logo se mudou para Itacoatiara.

A força das matriarcas da família ressoa no seu trabalho, mas também na forma como enxerga o mundo, e também se expressa. Em seu primeiro disco, Enchente, lançado em fevereiro, Gabi trouxe mulheres para colaborar nas faixas do álbum, gravar os videoclipes e ajudar na construção do trabalho. “Precisava ressaltar a potência feminina nas sonoridades das músicas, mostrar como é significativa a energia das matriarcas, seja na questão afetiva ou na força. Venho de uma família em que as mulheres são as chefes, cresci vendo a liderança e o protagonismo delas”, explica em entrevista ao Monkeybuzz.

O álbum foi financiado por meio de uma campanha coletiva, na qual mais de 100 pessoas apoiaram o projeto. Após dar os primeiros passos como artista solo no EP Vazante, de 2019, Gabi tinha uma visão clara do que desejava para o sucessor. Ela assume a direção artística, assina todos os arranjos de voz, e a coprodução musical, realizada ao lado de Viktor Judah, André Ethos e Guilherme Bonates. “Para quem for ouvir o disco pela primeira vez, encare como uma viagem embalada pelo movimento da água e de sutilezas marcantes”, explica a cantora.

Antes de embarcar na carreira solo, foi integrante da Orquestra Puxirum, encabeçada pelo maestro e violinista Diego Alessandro. Nessa época, se dividia entre o grupo e a licenciatura em música na UFAM. A princípio, Gabi buscava se estabelecer como instrumentista, mas, aos poucos, outras possibilidades foram surgindo em seu repertório: “Aprendi muita coisa na academia, me vi tendo oportunidade de conhecer diferentes aspectos da música, mas construí a minha persona artística fora dela”.

Como professora de música, Gabi gosta de acompanhar as transformações de cada pessoa, além de se emocionar com as trocas com os alunos. “Gosto de ser professora e ter esse contato próximo. Ver a música sendo construída é um processo muito bonito. Criar meios para que as pessoas descubram como elas gostam de fazer e ouvir música”, explica. Aos poucos, vai germinando os lugares onde passa para que mais ideias floresçam. Mesmo sendo de uma família que aprecia música, ela é a primeira a se dedicar às artes, mas não será a única. “Tenho algumas primas que estão se ligando à música, vejo como uma sementinha crescendo”. Conheça mais sobre o seu trabalho a seguir.

 

De que maneiras Vazante e Enchente se complementam e se distanciam?

O EP nasceu em 2019, depois de passar dois anos na Orquestra Puxirum, andando por toda Manaus. Tive uma vivência de música feita em coletivo, que, sem dúvida, é a base para o que experimentei em Enchente. No primeiro trabalho, queria experimentar ser artista solo e compositora, parece que virei uma chavinha para usar o meu nome. Quando fui gravar, era apenas eu e meu produtor, Viktor Judah, e nesse processo, bolamos o conceito da dicotomia, então o EP teria duas partes. Como nasci em Manaus, mas cresci em Itacoatiara porque a minha família é de comunidade de beira de rio, mantive contato com o ciclo das águas. Da seca à cheia, é tudo muito bem definido e marcado, então queria trazer esse movimento para o meu trabalho. O EP tem quatro músicas, que falam sobre o caminho que queria traçar, além de ser um momento de descobertas, ele tem uma energia experimental e tímida. Foi a primeira vez que colocava minha voz como cantora solo, algo que me causava um certo medo. Ao mesmo tempo em que soa tímido, é também corajoso, olhando por essa perspectiva. A sonoridade não é tão convencional, não se encaixa no regional, mas também não vai tão longe no experimental. Tem uma faixa mais eletrônica, “Só”, em que divago sobre questões existenciais e é a primeira vez que brinquei com os arranjos vocais. No final, estava mais à vontade.

Das 11 faixas de Enchente, nove delas contam com participações especiais. Você buscava uma construção coletiva?

Depois que lancei o EP, acabei me unindo com outros artistas, participei da SIM São Paulo, gravei o Showlivre e fiz alguns eventos. Acabei criando conexões bem fortes. “Olhos Negros” e “Quem Se Conhece?” nasceram quando estava viajando. Já “Verá” e “Bem-Quista” são da época de gravação de Vazante. Elas vivem nesse lugar de descoberta, de pensar sobre quem eu era e como queria ser vista. No início de 2020, o meu plano era começar o segundo EP como uma sequência do primeiro, mas dessa vez, com mais participações, abranger outros estilos musicais e trazer mais vozes. Quando bateu a pandemia, paramos tudo e tive que repensar a validade da ideia. Nesse meio tempo, acabei colaborando com outros artistas, outras mulheres, e entendendo mais sobre produção cultural e como incentivar a arte que acontece aqui. No ano seguinte, decidi fazer uma campanha de financiamento coletivo e foi quando tudo mudou. Em vez de ter um segundo EP, produziria um disco, e mais pessoas começaram a embarcar no projeto. Foi tudo se tornando maior do que eu imaginava, passou a ser um projeto coletivo. Leva as minhas composições, mas não é só meu, ele nasceu por causa de muitas mãos e vozes. O que liga os dois trabalhos é a vontade de expressar, mostrar como enxergo a vida aqui.

“Precisava ressaltar a potência feminina nas sonoridades das músicas, mostrar como é significativa a energia das matriarcas, seja na questão afetiva ou na força. Venho de uma família em que as mulheres são as chefes, cresci vendo a liderança e o protagonismo delas”

Me conta um pouquinho sobre a seleção dos seus parceiros criativos no disco…

O disco tem canções, que nasceram em momentos diferentes, mas foram se complementando. Cada convidado deu a sua cara, algumas partes foram reescritas por eles. Os feats surgem após um devaneio meu porque eu queria que esse disco soasse cheio em muitos sentidos. Fiquei dois anos sem gravar, e via muitos pares meus abandonando a música, se sentindo desestimulados. Então a minha vontade era incentivar eles a voltarem, que funcionasse como uma vitrine para mostrar o trabalho deles. Além disso, a maioria dos feats são mulheres, são todas do Norte, basicamente do Amazonas, e foi a primeira vez que trabalhei com elas. Há alguns anos, entendi a necessidade de valorização das mulheres na música e a importância de ocupar espaços. Sabia que precisava assinar desse jeito, um álbum apenas com artistas nortistas. Esses feats criaram uma rede de apoio, algo que fez o trabalho ficar ainda mais bonito.

Como a pandemia impactou na criação do disco?

Me vi mudando muito nesses últimos dois anos. Se tivesse feito o disco antes, ele teria saído com uma sonoridade e interpretação vocal diferentes. A minha experiência de vida foi completamente afetada pela pandemia. Especificamente no Amazonas, vivemos um momento muito triste com a falta de oxigênio nos hospitais. Perdi pessoas da minha família, e isso muda como alguém se percebe e enxerga o seu redor. Impactou em como interpretei as minhas canções, que vem de um lugar de afetividade, mas de muita raiva. Quis mostrar um posicionamento, demonstrar firmeza e uma afirmação de vida, de que estamos aqui, resistindo.

E qual é a sensação do retorno dos shows?

Surpreendente! A gente tem um termômetro no virtual, mas é diferente ao vivo. Senti uma coisa tão boa quando pisei no palco de novo. Fiz um show em abril, logo quando as músicas saíram, foi único cantar meu álbum pela primeira vez, algo muito significativo. Tinha feito apenas duas apresentações do meu EP, em 2019, depois disso, Vazante foi todo online. Cantar com as pessoas é surreal, me sinto preenchida.

De que maneiras o movimento das águas são fonte de inspiração?

As águas influenciam o ciclo da minha vida inteira. Cresci indo e voltando, da cidade para a comunidade. Andando de barco, percebi as mudanças das águas: quando ela enchia, quando ela secava, e como isso afetava o trabalho dos meus parentes, os meus estudos e tudo o que estava ao nosso redor. Faz parte da nossa vida. Ou como o poeta Thiago de Mello (1926-2022) fala: “Nós somos a civilização das águas”, sinto que isso corre dentro do meu canto. Em Vazante, sou a pessoa que se desfaz, que seca tudo aquilo dentro de mim, para que eu possa ser preenchida de novo – e que eu também consiga preencher outros espaços. Nesse momento, a minha comparação entre os meus dois trabalhos seria que no primeiro, me permito ir, sou levada. E em Enchente, sou preenchida. Afinal, a água é sinônimo de mudança.

Como você descreveria a relação da sua família com a música?

Eu sou a primeira pessoa da minha família que trabalha diretamente com música. A minha avó e a minha mãe são pessoas muito musicais. A minha avó me musicalizou quando cantava enquanto a gente estava se embalando na rede. Nenhuma delas foi profissional, sou feliz de estar criando essa linhagem na família. Tenho algumas primas que estão ligadas a isso, vejo como uma sementinha crescendo.

Existe algum ponto de virada para a decisão de se dedicar à música?

Após terminar a licenciatura em música, quis viver essa experiência de maneira mais intensa. Quando entrei na faculdade, achei que queria ser instrumentista porque o meu primeiro instrumento foi o violão. Não considerava a voz como um instrumento, mas queria experimentar, fui cantar em coral e entender mais de arranjo. Percebi que poderia me expressar pela voz cantada, fui desenvolvendo essa ligação e a possibilidade de ser intérprete. Não parei mais. A minha vida gira em torno da música e da voz, me sinto muito confortável e a vontade.

Me conta um pouquinho sobre as suas referências:

Cresci vendo o festival Fecani, o Festival da Canção de Itacoatiara, e assistindo esses compositores ligados a uma sonoridade mais orgânica, da música feita na beirada do rio (Amazonas). Ganhei outras influências quando fui estudar música em Manaus: eletrônica, experimental e pop, mas vai do Chico Silva ao Bon Iver. Gosto muito da Tuyo e da Lido Pimienta. A cantora portuguesa MARO. Gal Costa. Dos meus pares, Dan Stump, Elisa Maia, Matheus Santaella, Jambu, Vitor Xamã, Luli Braga, Gabriela Dias.. A nossa cena é diversa de formatos de propostas. Além de que tem muita gente chegando nos últimos dois anos. Do rap à música popular, são pessoas que merecem a nossa atenção e serem vistas porque possuem trabalhos muito consistentes.

Quais são os próximos planos?

Fazer shows. Levar o álbum para o máximo de lugares possíveis, de dentro e fora da minha região. Criar conexões entre os outros estados do Norte, com artistas que fazem música independente. Viajar. Participar de festivais é um dos meus maiores sonhos. Continuar produzindo videoclipes com as músicas do disco. Não estou trabalhando em novas músicas, mas ando escrevendo sem pensar em algo fixo. Pretendo lançar algo no segundo semestre, mas não estou me pressionando.

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ARTISTA: Gabi Farias

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