Conforme as partituras, Pastor T.L. Barrett

Box especial com 5 LPs percorre toda a obra do músico e pastor de Chicago que foi redescoberto por uma nova geração de ouvintes ao ser sampleado por Kanye West

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Fotos: Divulgação/Numero Group

Mais de 50 anos antes de ser redescoberto por uma nova geração de ouvintes ao ser sampleado por Kanye West em 2016, Thomas Lee Barrett Jr. havia acabado de ser expulso de mais uma escola do Sul de Chicago. A diretora da Wendell Philips High School, a mais recente carrasca, ainda humilhou o garoto dizendo que ele nunca conquistaria nada. O jovem Thomas, que matava umas aulas aqui, se divertia com uns amigos ali e – filho de pai pastor e guitarrista – ouvia muita música e sermões, andou entre as avenidas 39 e 57 da cidade à procura de respostas. Relembrando esse momento em entrevista à Aquarium Drunkard em 2021, Pastor T.L. Barrett diz que fez um pacto com Deus. “Eu disse a ele: vou manter minha mente aguçada e meu corpo limpo, se você se revelar para mim”.

Barrett diz que, antes daquele dia, se sentia como um navio cargueiro, mas sem vela, sem ninguém para lhe guiar. “Sabia que tinha coisas boas a oferecer para as pessoas”. Dessa metáfora surgiu o primeiro rascunho para seu provável maior clássico “Like A Ship…(Without A Sail)”, que dá nome ao disco de 1971 presente no box de cinco LPs I Shall Wear a Crown, lançado pela Numero Group no fim de setembro.  Além de seu álbum mais conhecido, o lançamento conta com I Found The Answer (1973), os dois volumes de Do Not Pass Me By (1976) e variados sermões e versões ao vivo. Tudo acompanhado pelo inseparável coral de 45 jovens e crianças do Youth For Christ Choir. O box, com virtualmente tudo o que Pastor T.L. Barrett gravou em estúdio – à exceção do obscuro e dificílimo de encontrar Roots (1977) – evidencia a fusão explosiva e sem amarras do Gospel com tendências da época. Além dos vínculos óbvios com o Soul, Barrett circula pelo Funk, o R&B, o Pop e a psicodelia, sem nunca perder sua potência arrebatadora, com coros colossais entoando cânticos que professam a fé do chamado New Thought Gospel. Essa vertente da teologia, desenvolvida durante a metade do século 19 nos Estados Unidos, coloca os ensinamentos de Jesus sob uma ótica prática, é aberta a metafísica, a crença no pensamento positivo e a entendimentos filosóficos sobre a vida e a morte. Deus é ubíquo e está em todas as coisas, em tudo, em mim e em você, nossa natureza é sagrada, estamos em evolução, todas as doenças se originam na mente, nossa missão é amar, ensinar e curar. “Meu Deus não está lá em cima no céu. Meu Deus está no meu olho. Onde você enxergar vida, particularmente expressa em outro ser humano, que é a forma mais elevada, ali está Deus e é ali que você deve louvá-lo”, definiu Barrett em entrevista à DownBeat.

Ideia holística-metafísica semelhante está no título de Everything Is Everything (1970), clássico disco de estreia de Donny Hathaway, que chegou a frequentar os enérgicos cultos de Barrett. E ele não era o único arrebatado ilustre que passava pela igreja comandada pelo jovem pastor de 20 e poucos anos – Phil Cohran, trompetista do Sun Ra, e Maurice White e Philip Bailey, ambos do Earth, Wind & Fire, também costumavam dar as caras por lá.

O Soul e o R&B passavam por um período de ebulição durante a primeira metade da década de 1970. As diretrizes mercadológicas das gigantes Atlantic, Stax e Motown pareciam um pouco mais frouxas e novas ideias e tecnologias se combinavam a moldes consolidados – de uma só vez, atingindo o mercado e expandindo a linguagem. Além das trilhas imortais da Blaxploitation – capitaneadas por gênios que vão de Isaac Hayes a James Brown –, em menos de cinco anos, nomes como Marvin Gaye, Curtis Mayfield, Al Green, Sly & The Family Stone, Aretha Franklin, Stevie Wonder, além do próprio Donny Hathaway, soltaram clássicos irrepreensíveis. E, contemporâneo a todos eles, T.L. Barrett, tão devoto da Palavra quanto da Música, também foi contagiado por – e movimentou esse – momento tão seminal da história da música. Que tomou o protagonismo de sua vida em meio a algumas mudanças e desafios pelo caminho.

Pouco após a última expulsão em mais uma escola de Chicago, Barrett – que, aos 16 anos, havia acabado de perder o pai – mudou-se para o Queens, em Nova York, onde chegou a trabalhar extraindo órgãos de cadáveres, antes de se dedicar totalmente ao piano. Fã do Jazz de Oscar Peterson e ligado no Gospel de Sam Cooke e do Swan Silvertones, o jovem fez amizades trabalhando como engraxate em regiões da elite nova-iorquina, até que passou a tocar na noite de lugares de luxo como Waldorf Astoria e The Village Gate. Em entrevista à Vanity Fair, Barrett, conta que, quando morava em Nova York, recebeu “um chamado para voltar a Chicago”. Em 1968, ele se tornou, enfim, Pastor T.L. Barrett.

A arte e ao que aqui ela serve são indissociáveis em I Shall Wear A Crown, mas os grooves de linhas de baixo inacreditáveis e a energia e as melodias de Barrett tornam o repertório não apenas desfrutável e ecumênico, como musicalmente arrebatador. “Pregar o Gospel e tocar Jazz”, disse o Pastor em entrevista ao podcast Broken Record, ao ser perguntado sobre qual era sua missão – no início e ainda hoje. Quando começou a pregar e se apresentar, Barrett era, em suas próprias palavras, apenas um jovem sonhador que acompanhava, de longe, a cena Gospel de nomes prestigiados como James Cleveland e Albertina Walker. Com a marca da mão direita sincopada no piano – que rendeu comparações a Errol Garner –, construiu um universo singelo, surpreendente e deslumbrante em uma igreja de Chicago.

I Shall Wear a Crown escancara todas as qualidades musicais únicas do Gospel de Pastor T.L. Barrett: o já falado baixo envolvente – muitos na conta de Richard Evans, cujas colaborações na carreira vão de Stan Getz a Gucci Manne (!), passando por Peter Gabriel e Tower Of Power –; o encaixe com o R&B e o Soul da época; um gargarejo na psicodelia; a amplitude entre a introspecção e a celebração; a abertura ao Pop e os refrãos chicletes (sempre a serviços eclesiásticos). E, principalmente, a voz enrouquecida, a plenos pulmões, conduzindo uma avalanche de corais. Com 45 crianças e jovens de 12 a 19 anos, o Youth For Christ Choir era formado por moradores do projeto de habitação pública Robert Taylor Homes, construído em 1961. Durante a década de 1960, sem assistência governamental, os prédios foram dominados pelo tráfico e as gangues, assolados pela pobreza e a superlotação. Já estigmatizada, a região foi tema de um documentário chamado Chicago Robert Taylor Housing Project – USA’s Most Infamous Public Housing, apresentado pela PBS em 1982. Da habitação, demolida entre 1998 e 2007, vieram vozes e contribuições imprescindíveis para a missão e a arte de Pastor T.L. Barrett. “Jovens olhando para o precipício, imaginando para onde suas vidas as levarão… Eles encontravam esperança e sentido vindo ao nosso encontro de jovens, nas noites de terça”, relembrou em entrevista à Aquarius Drunkard.

Talvez seja redundante falar dos coros aqui – e até no Gospel em geral –, mas mais do que personagem central, as vozes funcionam muitas vezes como instrumentos dos mais versáteis, tanto na narrativa quanto na sonoridade das canções. Elas aparecem, joviais, esperançosas e penitentes, reflexivas ou celebratórias de diversas formas: durante toda a faixa, no controle do leme; alternando com Barrett, numa dobradinha; no refrão, como um punch e uma injeção de energia; no fim, no ápice, a catarse do sermão extravasado em forma de coro – como na lindíssima “Wonderful”.

A veia Pop de “No Not One” e o refrão pegajoso de “Nobody Knows” e “It’s Me O Lord” dividem espaço com a atmosfera mais urbana e Funk Rock – chega a lembrar Curtis Mayfield  –  de “Ever Since” e “Joyful Noise”. Barrett leva sua voz longe, oitavas rumo ao céu, em “I “Want To Be In Love With You” – com quase evidente citação a “Hey Jude” em certo momento – e evoca Ray Charles, sentando o dedo no Blues, na instrumental “Blessed Quietness”. Ele condensa muitas emoções pelo repertório, sempre por um filtro espiritual, mas encontra música plausível e diversificada para expressá-las. Se a psicodelia de “Father Stretch My Hands” faz pensar que Kanye West deve ter tido trabalho para samplear um único trecho, há a meditação e a introspecção de “O Sinner” e a corpulência cinematográfica de “I Shall Wear a Crown”. Ou banquetes completos como “Here I Am” e a fantástica “Jesus Lover Of My Soul”. E, conforme os anos 1980 foram se aproximando, Barrett se aventurou por timbres menos orgânicos e linhas mais melodiosas ainda (“Lord’s Prayer”, “In The Old Time Way”).

Por mais que, obviamente, tenham forte teor religioso, as letras, em meio a parábolas bíblicas e mensagens de adoração, expressam sentidos universais de esperança, resiliência e busca por respostas e propósitos. Não é missão impossível dimensionar esses significados para além da esfera estritamente religiosa e, ainda assim, manter seu peso espiritual e até filosófico. Em “After The Rain”, que poderia tranquilamente estar em Music Of My Mind (1970), de Stevie Wonder, Barrett canta: “After the rain and after the pain, there will always, always be some kind of gain, some kind of gain/ Don’t you ever give up until the day is done”. A mensagem de superação e de fé na ideia de que a dor pode ser, de alguma forma, uma boa professora, transcende dogmas e preceitos e serve simplesmente à experiência de permanecer vivo e humano após tempestades. Ainda que, logo na sequência, no refrão – altamente sampleável –, pastor e seu coral deixem claro que “there’s only one who brings the sun”.

Após o fim da brilhante década de 1970, Pastor T.L. Barrett seguiu encantando fieis e dirigindo sua congregação – a partir de 1976, em uma igreja própria, localizada no mesmo bairro da anterior –, mas se afastou dos estúdios. Em 1989, Barrett foi processado por comandar um esquema de pirâmide envolvendo sua organização, caso destrinchado em reportagem publicada por um jornal de Chicago na época. Quase 30 anos depois, o pastor, que acabou condenado e em 1998 quitou sua dívida de 1,2 milhão de dólares aos lesados por seu esquema, disse em entrevista à Vanity Fair que ninguém foi preso e que ele não passou “um minuto sequer na cadeia”. “Eu estava ajudando as pessoas, não as machucando. O Procurador-Geral designou um administrador judicial e eu entreguei todo o dinheiro. Nas palavras do Procurador, fui acusado de violar a letra da lei, não o espírito da lei. Você não pode transferir dinheiro sem um produto. Eu não sabia disso”. A polêmica – ou a tramoia – ainda vinha sendo um dos principais tópicos a aparecerem no Google quando o nome do pastor era pesquisado. Até que surgiu um tal de Kanye West.

AS 7+ DO BOX I SHALL WEAR A CROWN 

"Like a Ship" 

"Nobody Knows" 

"Wonderful" 

"Jesus, Lover Of My Soul" 

"You May Not Need Him" 

"After The Rain" 

"No Not One"

Os Bons Ventos

Ainda que os caminhos de Deus sejam misteriosos, não deixa de ser curioso que tudo tenha (novamente) mudado para Pastor T.L. Barett, já com 70 anos, porque sua música foi usada em uma canção com os versos “Now if I fuck this model/ And she just bleached her asshole/ And I get bleach on my T-shirt/ I’mma feel like an asshole”. É bem verdade que antes do sample de Kanye, Like A Ship (1971) já era item procurado por colecionadores – relançado, inclusive, pela Light In The Attic em 2010 – e celebrado por nomes como Jim James e Colin Greenwood. O integrante do Radiohead descreveu o disco como “A música mais festiva e eufórica que faz você querer pular pela casa e explodir em alegria”. E o líder do My Morning Jacket comparou o álbum a What’s Going On e Pet Sounds.

Mas, no embalo de The Life Of Pablo, a música de Pastor T.L. Barret ressuscitou. Ela apareceu em comerciais da AT&T e da Under Amour, na trilha sonora de Barry (HBO), documentário da Netflix sobre Barack Obama, na série HACKS (HBO), no seriado Crip Cramp (Netflix), e em samples de outros artistas como Alicia Keys, T.I. e Against All Logics. Até ganhou uma versão surpreendente de Richard Ashcroft, vocalista do Verve. E, além da recente e fantástica aparição na série Tiny Desk, o próprio box I Shall Wear A Crown chega como uma espécie de coroação desse novo momento iniciado há pouco mais de cinco anos.

Hoje com admiradores do Rap ao Brit Pop e ecoando em trilhas sonoras de séries e comerciais, Pastor T.L. Barrett tem uma jornada estranha, fascinante, errática e humana. De engraxate a pianista da noite em Nova York; de expulsões seguidas em colégios a um mágico universo particular na igreja em Chicago; da salvação de jovens moradores de áreas violentas a esquemas de pirâmide. Uma parábola de vários ângulos e caminhos, mas que, por meio da tradução tão universal da música, oferece conexões com mistérios (ou com o Mistério). E eu realmente não sou lá dos mais cristãos, mas caso o tom excessivamente eclesiástico seja uma barreira para você – mesmo com essa musicalidade… –, sugiro uma audição como um momento de quietude, de reflexão ou de autoconhecimento, de imersão naquilo que não parece ser entendido, como pegar um atalho celestial até as suas próprias emoções e preces. Ou, enfim, de oração. Eu acabo lembrando o que disse Gilberto Gil, ao ser perguntado, em entrevista ao Estadão, sobre o que o presidente do Brasil (de 2018) lhe inspirava: “Tudo que me coloca diante da incompreensão me inspira a oração. Quando eu não sei o que as coisas são, eu oro, medito, peço para que elas se revelem com clareza e adequação”.

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