Considerações sobre Daft Punk

R.A.M. está aí, e Carlos Eduardo Lima nos mostra que o disco traz tudo o que o duo francês já mostrou nestes 20 anos de carreira

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Todo mundo abraçou lindamente o novo disco do Daft Punk, Random Access Memories. Todo mundo gostou do teasing no lançamento de Get Lucky, inclusive eu. Por conta de uma resenha encomendada por uma revista de cultura e música, vivenciei uma experiência bem legal. O disco chegou à Sony Brasileira em forma de um receiver. Nada de arquivos digitais, nada de cópia advanced para a imprensa especializada. Foi preciso rumar para a sede da empresa e, uma vez lá, ter acesso à máquina com as músicas do disco. Assim como o próprio conteúdo de Random Acess Memories, o próprio método de audição remeteu a uma outra época, no caso, a virada dos anos 70/80.

Eu tenho quase 43 anos. Vivi esse tempo e recebo com prazer a viagem dos Robôs, Thomas Bengalter e Guy-Manoel De Homem Christo, responsáveis pelo índice de “coolzice” necessário para que todo mundo compre a idéia central de R.A.M, a de que a dupla está revivendo a música, fazendo-a “verdadeira” novamente, buscando alternativas e caminhos que confiram a ela uma espécie de carimbo de “vale a pena”. Em suma, algo para ser levado um pouco mais a sério do que a produção atual Pop e aí está a grande jogada do disco.

Se você der uma fuçada na internet, verá que o Daft Punk lançou seu primeiro disco, Homework, em 1997, num mundo que é bem diferente do que temos hoje. A maior referência à sonoridade do disco, que acabava funcionando como cartão de visitas e declaração de intenções, está na foto do encarte de Homework. Se você só ouviu o mp3 até hoje, recomendo uma busca pela foto, é mole encontrar. Christo-Homem e Bengalter mostram uma típica escrivaninha de adolescente do período, cheia de pequenos grandes objetos culturais que funcionaram como moldadores do caráter de toda uma geração. Ali estão tickets de shows, revista de mulher pelada, rádio, capas de coletâneas de “hits of the moment”, adesivos dos Beach Boys e do Kiss, tudo junto, como ingredientes do caldo cultural que formaria o dono da escrivaninha, provavelmente inspirada em suas próprias mesas em seus quartos.

Homework tem uma urbanidade inegável e contagiante. É um disco totalmente da cidade, da noite, do jovem sintonizando o rádio no quarto, dançando com a porta fechada, imaginando coisas que tentará fazer mais tarde, na pista, sob o globo. Dá pra imaginar a felicidade dos franceses quando lançaram mundialmente algo tão universal, atingindo tanta gente ao redor do mundo. Minha esperança na época era de que a dupla não acabasse em meio ao turbilhão de bandas que vêm e vão, mas os sujeitos voltariam quatro anos depois para lançar um álbum bem mais ambicioso: Discovery. Vieram com uma produção mais complexa, ainda que navegasse sem pudores nas águas do sampling. Se você buscar em programas como Soulseek, por exemplo, algo como “discovery, samples, collection”, terá noção de que a mesma escrivaninha, sobretudo na parte de capas de coletâneas de hits aparecerá forte.

O grande barato do Daft Punk é o conjunto de referências. Ele parte da Disco Music, via vertente mais eletrônica, atravessa a virada da década de 70/80 se divertindo com os discos mais Pop do Kraftwerk e da fase “vocoder” da ELO; mergulha nas trilhas sonoras de Jan Hammer para Miami Vice; se esbalda nos desenhos japoneses com nomes em inglês; dá uma olhadela na cena House de Chicago de fins dos anos 80 e decide voltar, assobiando You Belong To The City, de Glenn Frey. O espectro dos sujeitos não tem mais que uma década, está condensado naquele 1977/1985 e olhe lá.

Random Access Memories é a radiografia desse período, ainda mais nítida que nos discos anteriores. Se o Daft Punk já tivera chances de mergulhar nesses anos tão queridos fazendo trilha para a refilmagem de Tron, um dos ícones cinematográficos desse tempo; se pode lançar um complemento de animação japonesa para Discovery em 2001, chamado Interestella 5555; se emulou todo tipo de vocoders e efeitos vintage em Human After All, terceiro disco, de 2005, agora, com R.A.M, sua visão temporal-musical está mais afiada do que nunca.

Nada da época foi esquecido no disco: Alan Parsons Project, A Supermáquina, Chic, eletrônica velhusca, Giorgio Moroder (que ganhou faixa com seu nome e tudo), além, claro, da capacidade da dupla em elaborar boas canções Pop. Get Lucky nunca seria tão legal se não fosse um chiclete grudento da melhor cepa. Além disso, os sujeitos souberam exatamente quem procurar para conferir a tal “veracidade” ao disco.

O novo disco do Daft Punk merece audição total. Talvez merecesse do fã mais dedicado sua compra em uma mídia física, CD ou LP. Merece contemplação, circunavegação, olhares e ouvidos atentos a tudo o que deve ser depreendido. Deveria vir, a título de esclarecimento e mesmo compromisso com o resgate de fatos, acompanhado de um pequeno guia de referências para ouvidos nascidos nos anos 90-00. Fica o aviso para todos: não há nada de novo em R.A.M. Há, sim, referências certas, clima certo, marketing certo, tudo certo e, em pleno 2013, gente, isso pode, sim, significar pra muitos a sensação da verdade sendo trazida de volta à música Pop. Se isso realmente acontecer, é motivo de uma salva de palmas para os Robôs. Até a lista de melhores de 2013, pessoal.

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ARTISTA: Daft Punk
MARCADORES: CEL

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.