Contrabaixo: Impressões Encorpadas

Um relato pessoal sobre a presença enigmática do contrabaixo na música

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Uma das coisas que mais me fascinam no contrabaixo é sua capacidade atingir, musicalmente, o corpo todo, além dos ouvidos. Sabemos, por exemplo, que o espectro sonoro que diz respeito às partes mais graves da harmonia, às vezes, nem chega a ser captada nitidamente pelos nossos tímpanos. É fácil perceber, em geral, com quem não tem o ouvido treinado como o de um músico (ou seja, a maioria das pessoas): o som do baixo é difícil de distinguir, porém, essencial para preencher e dar liga ao conjunto de notas que percebemos. Ou melhor, sentimos. Se o baixo sair de lá, vai fazer falta. A mesma influência sobre ouvidos (digo, o corpo) leigos se torna super evidente quando temos, por exemplo, uma apresentação ao vivo: a gama grave vai bater diretamente no seu peito e mexer em cheio com suas sensações e impressões do momento.

Graças a estes sentimentos todos, resolvi priorizar neste texto algo diferente da história do instrumento, pois, além de ser um panorama amplo demais e cheio de detalhes que valem a pena ser mencionados, e que vão além das intenções deste artigo, talvez eu não seja a pessoa mais indicada para fazê-lo. Assim sendo, resolvi escrever sobre o que consigo apreender vindo da minha experiência pessoal. Um texto particular, assim como a impressão que instrumento causa.

Responsável pelo contraponto em um contexto harmônico em uma música, delineando ou justapondo a progressão dos acordes, e, em geral, ao lado da percussão sublinhando o ritmo, o contrabaixo pode ser facilmente assimilado à bateria na medida em que ajuda a entonação das cabeças das notas e dos compassos. Contudo, além de sua parcela percussiva e dos fatores técnicos associados a ela, puramente rítmicos, é responsável não apenas por abrager todo o vigor físico da música, ou seja, de certo modo, pelas batidas essenciais que guiam o ritmo de nosso corpo de maneira mais bruta, mas também, um pouco além disso, pelos sentimentos que equivalem a esta esfera humana mais primordial.

Deve ser por isso, por exemplo, que o contrabaixo é um dos grandes responsáveis pelo groove que sentimos na música Soul em geral. Além da exuberante performance das vozes, é ele mexe com uma espécie de ímpeto sentimental, além de despertar um desejo físico evidente de começar a se mexer.

Além da sensualidade que podemos sentir no suingue deste tipo de música, é graças ao mesmo tipo de energia que o baixo muitas vezes é o responsável pela agressividade do Rock. Ter o poder de movimentar nossas energias mais básicas e essenciais é é algo extremamente poderoso, e é justamente a potência deste instrumento que é capaz de fazê-lo.

Mas nem só de agressividade e ímpeto vive o campo harmônico grave. Em uma era de contrabaixos de timbres mornos e macios pós-Jaco Pastorius, o baixo também pode ser o resposável por guiar a melodia principal, levando a música para uma esfera sofisticada, densa, que pode soar tanto com um clima de calor abafado quanto uma aura sombria e soturna. Da nostalgia acolhedora (e meio contraditória com o próprio estilo do grupo) que sentimos nesta versão de Badbadnotgood para a trilha sonora do famoso videogame Zelda: Ocarina of Time, até o clima subterrâneo, inebriado pela fumaça do cigarro e pela bebida alcóolica dos pequenos bares nova iorquinos com a música de Charles Mingus ou Miles Davis.

O fato é que, tal como sua particularidade sonora, o efeito que o instrumento causa em mim é muito presente porém difícil de definir: às vezes charmoso e velado, outras agressivo e evidente, seja ele protagonista sedutor ou como coadjuvante sofitiscado, preenchendo os espectros que evocam sensações que habitam os limites do prazer físico ou do deleite puro da alma, a presença do contrabaixo é de algum modo enigmática e, detém, disfaçado no mar de timbres de uma canção, o poder de mexer onde você é, justamente, mais sensível.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte