Criar é desatar nós

Dividindo desejos e aflições e compartilhando experiências sonoras, EP “NÓS” reúne Entropia-Entalpia, Érica, RHR, Annyl.Lynna, Stroka, L_cio, Mari Herzer e Brune

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Fotos: Arte por Annyl.Lynna

NÓS é um projeto de artistas brasileiros que percorre linhas artísticas traçadas a partir da união de uma comunidade. Ele nasce da urgência de resistência da cena, que passa, como se sabe, por uma condição crítica. “A conexão entre xs artistas desse projeto já existia, porém potencializamos através de diferentes formas de expressão. A curadoria foi orgânica, pensando em artistas que se aproximam na forma de ser, criar e pensar”, conta L_cio, produtor musical e uma das cabeças por trás do EP que acaba de sair. Mais do que resistência, o projeto mostra o poder de criar em comunidade. Das trocas de experiências e bagagens sonoras, de fato, o lançamento em conjunto, estreitar vínculos – e compartilhar angústias e desejos – por meio da arte parece ser a forma mais potente de lidar com o momento.

A arte de capa expressa a importância desse território imaginário criado por meio da união entre nós, e foi bordada a mão por Annyl.Lynna, artista pluricultural contemporânea e também integrante do coletivo Caldo. “O conceito que absorvi foi a desconstrução de barreiras existentes, que, em meio ao caos, se unem de diferentes formas, ressignificando o que, antes era o nó que paralisava, ao conjunto entrelaçado que tece a superfície onde podemos dar movimento ao processo e continuarmos caminhando.”

Já o nome do EP nasceu a partir dos títulos das faixas criados pela DJ paulistana Brune. “Com a ideia de colaboração, interconectividade e rede entre essa comunidade formada por artistxs e público, o título das tracks surgiu como consequência desses conceitos que permeiam o projeto, e que derivam também dos textos que vêm junto com as artes visuais e a música”.

 

NÓS é: Entropia-Entalpia, Érica, RHR, Annyl.Lynna, Stroka, L_cio, Mari Herzer e Brune.

“Em pontos de isolamento

nós ainda nos unimos

ativamos um campo disperso

que não é de batalha

um campo que não quer palavras de guerra

um campo de escuta e cruzamento

uma teia” – Brune

RHR & ENTROPIA-ENTALPIA – SUBTERRÂNEO

Entropia-Entalpia: Conversamos um bocado antes de começar a produzir a música. Decidimos um norte e comecei a fechar uma base. Gravei primeiro um loop de bateria, usei samples de uma RX11 da Yamaha que tenho aqui no estúdio e gravei um baixo elétrico tocado em cima. Mandei para o Roni, que processou tudo e finalizou o arranjo a ponto de não dar mais para perceber de onde vêm os timbres. Assim, finalizamos a track com essa ideia de ser algo mais texturizado e menos óbvio.

Produzir, para mim, é e sempre foi minha forma de sair do corpo e do mundo. Sempre que estou ansioso, agoniado ou triste, vou para minha salinha e começo a criar. Numa situação como a que estamos vivendo, não podia ser diferente. Mais do que nunca, eu me tranquei num ambiente que me permitisse criar sem interrupções e sem hora para parar. Passo a maior parte dos meus dias aqui junto com os equipamentos… mesmo quando não estou produzindo. Acho que este ambiente me permite momentos de fuga sempre que preciso 

RHR: O Entropia me mandou um som e começamos com a ideia de fazer um Trip Hop, mas conforme fui experimentando com a melodia dele, acabou saindo um som weird synth cheio de distorções.

 Fiz esse som no período que eu tive que deixar São Paulo, já que meus pais mudaram e eu voltei morar com eles. Acredito que rolou um pouco de ansiedade, então não tive tempo de sentir muita coisa. Mudança e resolver a vida, tudo isso nem deixou pensar em sentir alguma fita sobre.

L_CIO & MARI HERZER – TEIA

L_cio: A experiência com a Mari foi rápida e super assertiva no processo de coprodução da faixa. Ela tinha uma ideia antiga que gostaria de retomar e finalizar, eu trabalhei um pouco nela (criação de novos sons, gravação de mais elementos e pré-arranjo), aí ela finalizou o arranjo e mixou a faixa – tudo online.

Meus sentimentos e ideias dentro do meu processo nunca são tão explícitos. Mas o resultado final acaba refletindo o contexto no qual estava imerso naquele momento – escutando nossa faixa, sinto todas as sensações as quais estou passando hoje.

Mari Herzer: A faixa estava parada há 2 anos nos meus projetos antigos, num HD de trabalhos de 2018. Eu tinha muito carinho por essa música, mas sempre tive uma dificuldade em dá-la como finalizada, parecia que faltava algo. Com a oportunidade de fazer um trabalho com o L_cio, pensei que seria um bom momento para remontá-la com o toque de outro produtor musical cujo trabalho admiro. Praticamente toda a bateria dessa música foi feita com apenas um sintetizador, então foi um trabalho minucioso de desenho sonoro em cada pedacinho da música. 

Por morar na cidade extremamente urbana e caótica que é São Paulo e estar confinada na mesma, sem poder molhar os pés num rio ou pisar na terra, quis construir um certo bucolismo nessa música. Muito do que gosto de fazer tem a ver com a observação do ambiente onde estou, gosto de fazer sonoridades líquidas, que se dissolvem e voltam gradativamente, com a mesma fluidez que observamos no ambiente. Uma pedra caindo na água, o vento que corta nossos ouvidos, tudo isso carrega uma beleza que emulo por meio de instrumentos eletrônicos. A partir daí, constrói-se uma geografia afetiva de sons. As características de cada peça da faixa delineiam um sentimento específico, seja de tensão, resolução ou construção de algo maior, mantendo uma fluência sonora que remonta um pouco do sentimento de observar a natureza que nos envolvem, fazendo com que todos sons da música pulsam como um só.

ÉRICA & STROKA – CONVITE

Érica: Eu tinha uma ideia de track que sentia que estava incompleta, ao mesmo tempo que não estava conseguindo encontrar caminhos para desenvolvê-la. O Stroka adicionou vários synths e percussões, e, quando ouvi, me lembrei de um vocal que eu tinha criado que estava sem base, e se encaixou perfeitamente. Assim nasceu a “Convite”.

Quis trazer à tona o fenômeno da positividade tóxica, algo que anda fazendo um grande estrago durante a pandemia. De alguma forma, captar o cinismo da nossa época, chamar atenção para isso, para as manipulações, a falta de solidariedade generalizada. 

“Vem pra dentro do meu labirinto, vem.

O meu sorriso é seu castigo.

Vem pra dentro do meu labirinto, vem.

Meu compromisso é seu perigo.”

Stroka: Sempre mudo meu método de produzir quando começo a me acostumar, as vezes isso ajuda a chegar em resultados inesperados. A Érica mandou uma ideia muito legal que ela já havia começado. A partir daí, fiquei alguns dias ouvindo e testando caminhos, então ela colocou os vocais e finalizamos. O processo todo durou umas 3 semanas acho, fizemos com calma, foi bem interessante.

Criar em comunidade é nossa forma de dizer: nós existimos.”

Todas as tracks do EP são produzidas em dupla. Qual a importância de criar em comunidade?

L_cio: Criar com x outrx é sempre potencializar experiências e, normalmente, nos leva a caminhos e resultados muito inesperados. Criar em dupla promove aprendizado, curiosidade e novas problematizações e circunstâncias que ampliam nossa criação – para isso devemos nos permitir ao novo.

Érica: É essencial criar em comunidade. Precisamos estar unidos para existirmos.

Entropia-Entalpia: Criar junto é muito legal pela troca e pelo fato de que o produto final vai sempre ser a mistura de dois processos criativos diferentes. Isso é muito enriquecedor para o nosso trabalho, aprendemos muito uns com os outros. Agora criar em comunidade durante este período, principalmente, é também uma forma de compartilhar nossas aflições, anseios e experiências durante a quarentena. De se sentir um pouquinho junto dxs nossxs companheirxs de trampo… mesmo que virtualmente.

Mari Herzer: É essencial. É uma forma de aprendizado, pois cada um tem um jeito de agir e levar a vida.

RHR: Acho que agora é necessário que bases tem que ser formadas, até porque tem um povo que vai vir depois. O role é estreitar laços.

Como você acha que a arte e a música podem influenciar e mudar o futuro?

L_cio: A arte promove mudanças, mas devemos lembrar que essa é feita/criada também por pessoas e essas são as maiores responsáveis por mudanças.

Brune: Eu não saberia dizer como mudam o futuro, mas, como arte e música são uma forma de encontrar frestas e alternativas para o presente. Estamos sendo suplantados por discursos fixos, propaganda e números, por um pensamento padronizado que destrói vidas, principalmente na pandemia. A arte é uma forma de expandir nosso potencial para além do que está dado, é uma forma de repensar o presente, construir linguagens alternativas e inclusivas, rotas de desvio, confronto ou resistência.

Érica: O setor cultural se organizando e se fazendo presente na sociedade, oferecendo sonhos e apontando caminhos para outros modos de viver. As atividades culturais injetam vida e autoestima nas pessoas, e as inspira a agir e colocar as coisas em movimento, construindo o futuro. 

Entropia-Entalpia: Todas as formas de expressões artísticas são de extrema importância desde sempre para a sociedade. Seja como uma forma de lutar, seja como uma válvula de escape, seja na criação de identidades culturais plurais e até só como um processo mesmo, a arte é inerente à vida humana e nunca vai deixar de ser. Acredito que a criação artística ajuda a moldar um futuro, assim como a própria ideia de futuro molda a arte. É uma troca constante entre criação e criatura, interligada sempre nas nossas vivências. Mas num âmbito mais prático, a arte muda o futuro de muita gente de forma literal mesmo. Não preciso citar aqui, mas temos inúmeros projetos de inclusão social no Brasil e no mundo que partem da arte e, além disso, acho que, como artistas, é nosso dever usar a nossa criação como instrumento de contestação e questionamento para com a sociedade que estamos inseridos.

 Mari Herzer: Exatamente com a formação de comunidades. Pessoas que se ajudam, se aglomeram e pensam umas nas outras se tornam mais fortes. 

Annyl.Lynna: Acredito que o futuro terá colaboração massiva de toda forma de arte e propagação que elas são capazes de atingir, em um período no Brasil completamente anti-cultura e todo momento de tensão gera algum movimento. Vejo artistas de todos os estados explorando diferentes possibilidades de conexão e caminhos para a arte e as ramificações que a cultura representa e engloba.

Stroka: Acredito que podemos talvez sensibilizar e criar empatia, cultura nunca é demais.

RHR: O ser humano não vive sem consumir qualquer tipo de arte… é uma necessidade interna que mescla com consciente alma ou o que você quiser chamar. Mesmo com um passarinho cantando ou barulho de água você está visualmente e sonoramente ligado a algum tipo de expressão. Esse laço faz geral mover vários tipos de idéias, vontades e ter resquícios de força… mesmo se todo o role tiver zuado.

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