Curumin rompendo o concreto

Guiado por saberes ancestrais, “Pedra de Selva”, quinto álbum do músico, investiga São Paulo em busca de vestígios de natureza e faz dela fonte de afeto, política e tesão

Loading

Fotos: Jéssica Junqueira

Pedra de Selva foi lançado no dia 11 de setembro. O quinto álbum de estúdio do cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista paulistano Curumin calhou de vir em meio à crise das queimadas que assolou o norte, centro-oeste e sudeste do Brasil e encobriu o céu de grande parte do país com uma fumaça quase apocalíptica. O que fez com que a experiência de pôr o álbum para tocar se aproximasse daquela em que se coloca sobre o rosto a máscara de oxigênio que acaba de cair do teto de uma aeronave em caso de emergência.

Os primeiros estudos de ideias, beats e instrumentos de Pedra de Selva surgiram durante o período de reclusão em virtude da pandemia de Covid-19. “O fato de terem surgido canções naquele momento também [falam da] forma que encontrei de sobreviver, de manter minha saúde mental. Criar música é a minha vida. Fui direto no lugar mais precioso pra mim”, reflete Curumin.

O que chega ao público no presente trabalho soa tão urgente quanto. “A coisa do lançamento foi uma coincidência curiosa. Foi interessante. Todo mundo estava sentindo um pouco aquelas coisas que eu estava falando”, analisa o artista. Porém, o reflexo dos tempos de crise não agudizam os arranjos, as composições ou a vocalização de Curumin. É na sutileza de quem se inspira na vida para superar a necropolítica que o produtor encontra o ritmo sonoro e poético do registro. Decisão que tem como fonte de inspiração as obras de nomes como o pensador, escritor e ativista indígena Ailton Krenak e do compositor, educador, ator e dramaturgo Salloma Salomão.

No panorama de ideias para adiar o fim do mundo, parafraseando o título de um dos livros de Krenak, Curumin se localiza na música para apresentar uma proposta diferente – sua. Mas que não deve ser confundida com nova, uma vez que o fundamento dos deslocamentos propostos vem de fontes ancestrais, como as indígenas e negras. “Como diz o Itamar [Assumpção], o novo não existe [risos]”, pontua. A coletividade das ideias também vira prática por meio de uma longa lista de parcerias. Canções com presença dos filhos Rubi, Benedito e Bento, da companheira Anelis Assumpção, e de nomes como Ava Rocha, Iara Rennó, Jéssica Caitano, Josy-Anne, FUNK BUIA e Lívia Nery, além de capa assinada por François Muleka.

Pedra de Selva soa como disco de produtor musical. Maduro em sua proposta, ousado em sua forma, se desenrola em 17 faixas que abarcam canções, interlúdios e mensagens em áudio. Curumin também não foge à sua assinatura e faz do ritmo a espinha dorsal do álbum. Arranjos encorpados, grooves oníricos e batidas refinadas que passeiam, com destreza, entre o latejante e o suave. Para subverter a lógica europeia e liberal de tecnologia, romance, racionalidade e progresso, as composições do artista se nutrem da natureza. A pedra vira sujeito que ensina, a suculência de uma mexerica é exaltada, e a política se faz na máxima “o mundo muda numa muda”. Não à toa, uma das principais campanhas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), maior movimento social do país, é o plantio de 100 milhões de árvores em 10 anos.

 

Curumin, a produção de Pedra de Selva começou ainda em 2020, durante a pandemia. Nesses quatro anos, a sua parceira, Anelis Assumpção, lançou Sal (2022). RUBI, sua filha, lançou singles, EPs, os álbuns BLONDGYALS (2024) em parceria com Thalin e Shirts, e Buraco na Parede (2023), com a banda Tietê. E o outro filho, BENNi, tem estado cada vez mais ativo enquanto DJ. Me conta: como vocês organizam a agenda dessa família tão artística para que não vire um congestionamento de lançamentos e turnês? [Risos]

[Risos] Acho que as coisas se acomodam um pouco. Isso é engraçado. Esse fluxo sempre deu certo comigo e com a Anelis. Um dos dois lançava [um trabalho], fazia as turnês, o outro ficava segurando as pontas em casa. Sempre foi naturalmente harmônico, no tempo de cada um, nunca combinado. Agora tem esses outros agentes [BENNi e RUBI]. Mas aqui cada um tem o seu ritmo e eles se encaixam de alguma forma. A gente consegue funcionar equilibrando pratos. O que rola às vezes, por exemplo, a falta da Rubi no evento de audição deste disco. Falei “Poxa, podia ir, né? Vou sentir sua falta”, e aí ela disse que eu não tinha ido a um [lançamento] dela!

Demais! Bom, resolvido o mistério, quero direcionar para seu novo disco. O que está por trás da inversão proposta pelo título Pedra de Selva?

Tá muito ligado à cidade de São Paulo, que eu acho que é a selva de pedra mais selva de pedra, né? Na verdade, em todos os discos eu busco entender o que é esse lugar em que eu sempre vivi, e eu acho que essa inversão neste disco tem a ver com tentar cavar tudo que tem debaixo desse concreto, sabe? O que é São Paulo fora da concretude, da dureza, da secura. Lá embaixo tem uma terra que ainda tá viva, e que tá gritando de lá.

Você se sente um ser-pedra no meio da selva de SP?

Olha, aí são as minhas viagens… Eu acho que a gente tem um pouco de tudo isso dentro da gente. Um pouco da pedra, um pouco do rio, um pouco da árvore. A gente é constituído de tudo isso. Um dia eu vi um curta de animação muito interessante que se chama Rocks. São duas pedras grandes conversando. E no tempo de uma conversa normal entre elas se passa a história da humanidade. É um outro tempo. O tempo para ela falar uma sílaba é de 1.000 anos. Acho que a gente tem esse lugar atemporal onde tudo é mais lento, onde a gente viu muita coisa acontecer, onde as conversas são lentas e profundas [risos].

Pois é, até para erguer um edifício você precisa da pedra, né? Um fundamento. É muito interessante essa escavação que tu se propõe a fazer, que é tentar investigar os vestígios de natureza que ainda estão no teu entorno. Também acho importante como tu te localiza enquanto um artista que produz a partir de São Paulo, entendendo que isso te dá um lugar de fala. A tendência muitas vezes é que se ocupe um lugar apenas nacional quando se é de São Paulo. Mas vão ter urgências e temas específicos que surgem para quem vive nesse espaço, e que podem não fazer tanto sentido pra quem vive em outros.

Eu sempre tive um pouco de dificuldade em entender o porquê de tanta gente, tanta extensão de espaço, tanta correria e agonia pras coisas. É difícil de entender São Paulo às vezes. Até mesmo dentro do próprio Brasil. Ela é uma coisa meio diferente mesmo. Acho que eu fico tentando achar as raízes desse lugar que arranca todas as raízes. É um conflito.

E pensando em elementos da natureza, você se sente mais terra, água, ar ou fogo?

Acho que tenho mais afinidade com a água. Me sinto bastante maleável. Mas para fazer música, tocar bateria, por exemplo, tem tudo a ver com terra, com raiz, fundamento, centro. Cantar tem tudo a ver com ar, viajar, voar, com passarinho. Para eu tocar bateria e cantar são dois acessos opostos. Quando eu tô tocando bateria, busco ser o mais terra possível, porque eu preciso dessa firmeza. E quando eu vou cantar, tento voar o mais alto que consigo.

Bonito isso. Eu me lembrei que em “Paris Vila Matilde” você cantou “Eu todo ar, ela é toda terra”. A coisa mudou… E você tá num momento mais terra e água, então.

[Risos] É verdade… [mas] essa letra não é minha, é da Anelis. Acho que ela viu esse lado todo ar. É interessante, a gente acha que é uma coisa, mas às vezes as outras pessoas nos sentem de outro jeito.

“É difícil de entender São Paulo às vezes. Até mesmo dentro do próprio Brasil. Acho que eu fico tentando achar as raízes desse lugar que arranca todas as raízes. É um conflito”

Também é interessante quando você diz que busca ser muito terra quando toca bateria, porque fico com a impressão que ela e seu som são a plataforma da tua música.

Acho a minha música parte mais do ritmo do que da bateria. Eu gosto que a música sempre esteja fazendo você mexer com o seu corpo. Que faça você se movimentar. Na música angolana, por exemplo, tem o semba, onde muitas músicas são lamentos, têm letras tristes, mas sempre um ritmo muito acolhedor. Você sente o sofrimento, mas você também sente o calor do ritmo, sente que a vida pulsa em você. Sinto que posso falar de qualquer coisa se estiver sempre balançando.

De fato, em entrevistas recentes você comenta muito da influência do semba na produção do disco, e eu não tinha compreendido como isso aparecia. Agora, faz todo o sentido. Mesmo que o disco trate da urgência em mudarmos de direção, a condução sonora não transmite desconforto.

Total. “Flecha do Dedo”, por exemplo, é uma música que faz um pedido dentro de um lugar triste, vazio. E tem tudo a ver com as coisas que a gente vai perdendo, os desejos que a gente tem, o que a gente pensa, quer e sonha para esse mundão.

E você percebe algum impacto dessas conjunturas na sua postura e no seu papel enquanto artista?

Ah, quando a gente vai fazer um disco, uma música, a gente sempre tenta pescar o que tá permeando as cabeças. Claro que são sempre muitas questões possíveis, mas sempre tem uma tentativa de leitura da sociedade, do que as pessoas querem, gostam e estão sentindo. Acho que eu sempre fiquei atento nisso na hora de fazer música.

“Quando a gente vai fazer um disco, uma música, sempre tenta pescar o que tá permeando as cabeças. Claro que são sempre muitas questões possíveis, mas sempre tem uma tentativa de leitura da sociedade, do que as pessoas querem, gostam e estão sentindo”

No texto do release você traz provocações críticas sobre o capitalismo, algo que permeia também algumas entrevistas recentes suas. E o disco foi pauta de veículos como Carta Capital e Brasil de Fato, que têm posições editoriais bastantes posicionadas à esquerda. Você não sente que talvez este seja o seu disco mais explicitamente engajado, político?

Ah, não sei, é difícil dizer. Agora você me pegou. Vou deixar isso aí pros ouvintes do disco. Mas não sei se é o mais engajado, eu acho que não… Todos são um pouco engajados. Talvez o primeiro não tanto, mas sempre tem um questionamento dessa sociedade, desse sistema que tá todo errado. Até acho esse mais sutil.

Curumin, uma vez ouvi uma fala de Anelis sobre as diferenças poéticas entre vocês. Ela definiu você como um romântico. Eu tendo a concordar e fico instigada em ver essa sua carga afetiva se esparramar para além das letras de romance neste disco. Mesmo que de forma ambígua. Adoro o maravilhamento com a fibra do Jacarandá em “Jacarandá” e acho fantástico que uma das maiores love songs do ano seja “Mexerica Mineira”. É uma música tesuda que deixa o Baco Exu do Blues no chinelo. Qual sua análise sobre esse desenvolvimento do léxico afetivo das tuas composições?

Acho que já ouvi a Anelis dizer que eu era muito romântico nesse lugar do compositor e achei que precisava ser um pouquinho menos [risos]. Não foi consciente, mas tentei fugir um pouquinho disso. Quando ela falou, e eu me percebi, e pensei “ah, realmente, às vezes esse romance todo é um pouco bobo”. Mas isso também é o que eu sou, eu sou um pouco bobo. Mas também pode ser interessante ser um pouco outras coisas, sair desses lugares que você já está acostumado.

“Gosto que a música sempre esteja fazendo você mexer com o seu corpo. Na música angolana, por exemplo, tem o semba – muitas músicas são lamentos, têm letras tristes, mas sempre um ritmo muito acolhedor. Você sente o sofrimento, mas também o calor do ritmo. Sente que a vida pulsa em você. Sinto que posso falar de qualquer coisa se estiver sempre balançando”

Romance é uma palavra-armadilha, a gente nem a usa pensando no conceito dela. A gente fala enquanto sinônimo de amor, de afeto. É interessante que em vez de você achar que precisava ir para uma poética mais dura, menos sutil ou sensível, você viu que era mais sobre abrir essa palavra. Você não é o romântico do romance, você é o romântico do afeto, e isso é diferente.

Acho que tem tudo a ver. Mesmo as músicas mais engajadas têm uma coisa romântica. Eu não sei nem explicar, acho que tem esse lugar de uma esperança [risos], um amorzinho bobo, assim.

Ah, eu discordo que seja bobo. Mas também acho ótimo ser bobo.

Mais inocente.

Em outras ocasiões, você já afirmou que vê a música como um todo. Uma visão que você coloca em prática nos seus discos, atuando como compositor, produtor, músico, arranjador e intérprete. Mas há alguma faceta que se sobressaia em Pedra de Selva?

Acho que não tem nada que se sobressaia. Tiveram muitas músicas que fui gravando praticamente uma jam session comigo mesmo. E isso também é uma coisa do produtor, é ele quem pensa como vai gravar as coisas. Não pensei, só quis fazer assim – ao mesmo tempo. Mas já tendo feito vários discos, sei também que isso enriquece o disco. Ele precisa de coisas mais lapidadas e também de coisas mais brutas.

Você nos apresenta uma paleta sonora que passeia entre o silêncio e o barulho, a pulsação e a delicadeza. Tudo isso sob uma produção musical refinada. Quais foram os balizadores dela?

É difícil você querer ouvir um disco do começo ao fim hoje em dia. Para você querer, ele precisa te surpreender. Acho que uma forma de fazer isso é equilibrando esses estímulos. Uma hora morde, outra assopra, uma hora é super envolvente, outra hora é mais duro. Esses contrastes são importantes para mantê-lo numa zona de interesse. Acho que um disco tem que ter um colorido.

São 17 faixas, entre canções, interlúdios e mensagens de áudio. Em algum momento você ficou receoso ou inseguro do disco soar exagerado?

Sim. Em certo momento, achei que era muita coisa. Mas aí, ouvindo, não soava assim. Mostrava pra algumas pessoas também, elas não achavam um disco grande. Ele não soava maçante nem cansava em algum momento. Eu tentei balancear, fui investigando e vi que tava harmônico.

E superlotar o disco com essas faixas foi uma ferramenta intencional para  provocar uma “tumultuação”?

Não. Foi o que foi. Ele veio desse jeito porque ele quis vir assim. Quando ele veio desse jeito eu falei “Ah, será?”. Mas aí vi que dava pé.

Loading

ARTISTA: Curumin

Autor: