Damon Albarn em Versão Introspectiva

Seja com Blur, Gorillaz ou solo, seus melhores momentos são também os mais sombrios

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Eu não sei vocês, mas eu prefiro quando Damon Albarn parece estar introspectivo e com certo bode do mundo. É raro ele demonstrar isso em forma de música, uma vez que sempre procura reunir galeras consideráveis em suas criações mais recentes (à frente de seu Gorillaz) e dividia os louros autorais com seus comparsas dos tempos dourados de Blur. É bem verdade que esses momentos são raros, mas eles existem e podem reunir as melhores qualidades do cantor, compositor e multitalentos de Essex. O último disco com Gorillaz, projeto paralelo de Albarn, que adquiriu ares de principal, The Now Now, vem se juntar a este raro cânon de obras introspectivas do inglês.

Antes é bom que eu diga: meu disco preferido de Gorillaz é The Fall, lançado em 2010 e gravado por Damon em dispositivos portáteis enquanto excursionava pelos Estados Unidos. São momentos de intensa solidão, ainda que possam não parecer. Quando você está na estrada, automaticamente está fora de sua normalidade, mesmo que esteja acostumado a fazer este tipo de movimento, algo que deve ser frequente entre músicos de fama internacional. Ainda assim, a vida na estrada é complexa e coloca as pessoas numa condição distinta da habitual. Por essas e outras, Damon registrou sonoridades que fazem de The Fall um caso distinto na discografia de Gorillaz. E também de seu Blur. E dos seus projetos paralelos.

Os discos de Gorillaz são acontecimentos badalados. Há vários mecanismos que acabam desviando o foco da presença de Albarn em meio ao sem-número de convidados, participações, excentricidades, sem falar no tempo/energia para sustentar a narrativa dos integrantes do grupo, cujas vidas e existências têm rumo próprio, mantendo a lógica de serem personagens de quadrinhos ou algo no gênero. Albarn acaba funcionando como um recrutador/organizador, determinando funções e administrando fluxos de informação, como se fosse o CEO da banda e não um membro criativo. Tal fato nunca impactou no resultado dos discos, que sempre são interessantes. Até que surgiu The Fall, com uma aridez existencial, uma simplicidade instrumental, uma aura de Eletrônica quase amadora, um pequeno milagre da realização digital. Como convidado, saltava aos ouvidos a presença do laureado soulman americano Bobby Womack, cujo último disco The Bravest Man In The Universe, seria produzido por Damon dois anos depois.

Esta pequena solidão on the road, no entanto, não surge só em The Fall. The Now Now é uma espécie de primo mais jovem e menos contido. Suas faixas trazem presença de gente tão diferente quanto George Benson e Snoop Dogg, e apontam para mais um deleite em terras estadunidenses, desta vez, com a permissão de flertar com o universo do Yacht Rock ou Adult Oriented Rock (AOR), aquele gênero que existiu nas paradas de sucesso do início dos anos 1980, com teclados, harmonias, preciosismo de estúdio, que os roqueiros adoravam dizer que era “música comercial”. Ouvidos mais atentos irão fazer a conexão desta sonoridades com uma faixa presente no último disco do Blur, The Magic Whip, intitulada The Ghost Ship. Nela, com a presença dos velhos parceiros de banda, surge uma levada ensolarada, com guitarras em chacundum e baixo/bateria funkeados na medida do possível. Talvez seja um caso único em meio a todas as gravações realizadas pela banda desde que iniciou suas atividades há quase 30 anos.

Este clima de contemplação é a tônica de The Now Now, um álbum americano em sua inspiração, tanto quanto The Fall, mostrando um outro lado da mesma moeda. Sai a eletrônica minimalista e entram os anos 1980, mas não os que são saqueados diuturnamente pela maioria dos artistas, mas aqueles que se prestam a assumir forma de realidade alternativa. Damon constroi um painel de verão na terra do Tio Sam, com Funks eletrônicos, baterias sintéticas, Rap e Hip Hop e gente andando de patins e skate na rua. Claro, é uma América ideal, que talvez nunca tenha existido de fato. O legal é que a música produzida lá na época e suas reinterpretações – caso deste disco de Gorillaz – tem este poder de criar realidades alternativas.

Albarn também foi capaz de criar momentos contemplativos e introspectivos quando só havia Blur. Como esquecer de canções como The Universal, End Of A Century e Tender, críticas ferozes à descartabilidade da vida e ao abraço neoliberal ao cotidiano das pessoas, tornando-as dependentes de uma lógica predatória. Ou então, como não admirar os traços pós-apocalípticos dos próprios personagens de Gorillaz, quando eles surgem pela primeira vez ao mundo, em 2001, com Clint Eastwood? E mais: seu disco homônimo, de 2014, uma pequena pérola musical, pronta para ser redescoberta a qualquer momento, se tivermos sorte.

Para muita gente, Damon Albarn ainda é “aquele cara do Blur” ou “um dos integrantes do Gorillaz”, mas o cara adquiriu importância enorme para a boa música feita por aí. Seus momentos de introspecção geralmente passam batidos em meio a tanta distração, que talvez ele mesmo disponha para confundir o ouvinte. O pessoal mais atento há de valorizar e dar a dica pro maior número possível de potenciais entendedores.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.