Desenredando Nabru

“Escrevo desde que aprendi a ler – era como se ler não fosse suficiente”; a rapper mineira destrincha as motivações, resoluções e histórias que circundam “Desenredo”, seu disco de estreia

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Fotos: @pedefeijoao

No dicionário, “desenredar” está firmemente atrelado, em oposição, à palavra enredo – ou melhor, ao verbo enredar, o ato de se amarrar pequenas partes para formar um todo, como o ato de tecer uma rede, por exemplo. Desenredar significa desfazer um enredo, desemaranhar, fazer com que algo complicado se torne mais simples, mais compreensível. Foi com essa mesma intenção, de desatar os nós do passado para desembolar o presente, que a rapper mineira Nabru deu vida e nome ao seu primeiro disco Desenredo, lançado hoje, 15 de novembro.

Para além da simbologia e da etimologia do termo, a nomenclatura do álbum de Nabru carrega uma inspiração ainda mais profunda na obra de outra artista mineira: a poetisa e professora Adélia Prado – e seu poema homônimo.  “[No meio do processo do disco] eu fui para o Rio de Janeiro e tava com o livro da Adélia Prado. Li essa poesia, “Desenredo”, falei: mano, essa poesia é muito louca, ela não pode morrer aqui, ela não pode morrer comigo, ela não pode morrer com a Adélia, ela precisa virar outra coisa”, conta Nabru. A poesia “Desenredo” faz parte do livro Coração Disparado, vencedor do prêmio Jabuti de 1978.  E, assim como Adélia escreveu,  comparado a todo o desejo contido no coração de Nabru, o mar parece somente uma gota.

Com 18 faixas e colaborações de Matheus Coringa, Bonsai e Alra Alves, além de um time seleto de produtores como SonoTWS, Ciano, EricBeatz, Gust e GvTx,  Nabru, em Desenredo, condensa o que foram os anos mais recentes de sua vida – em meio a paixão por literatura, a experiência paralela como pixadora e a solidificação de uma sinceridade com ela mesma e com o público. Agora, ela deixa de lado a suavidade Lo-Fi presente no EP Marquises e Jardins (2019) e abraça o boom bap.

Estudante de Letras da USP e cria da comunidade da Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte, Bruna Helena tenta conciliar as demandas acadêmicas e a vida de rapper como pode, quase como uma super-heroína de identidade secreta. Aos 26 anos, Nabru é uma das expoentes de algo como uma quarta geração do rap mineiro – mesmo que, para ela, a ficha ainda não pareça ter caído, seja quando abre um show dos lendários Matéria Prima e De Leve, ex-integrantes do Quinto Andar, ou quando outros alunos a reconhecem no bandejão da Universidade. De qualquer maneira, ela diz que hoje entende mais de si mesma e de sua arte do que quando começou sua trajetória. “Eu acho que o Desenredo é a resolução para o enredo que começa a ser escrito no Marquises e Jardins. E a Bruna do Marquises e Jardins definitivamente não existe mais depois do Desenredo”, reflete. “Não cabem reflexões sobre ser ou não um dos melhores ou um dos piores álbuns de rap do ano. Eu acho que é um dos álbuns de Rap do ano, ponto”.

Desenredo, como a própria artista define, é o seu simbólico aniversário de 15 anos no cenário do rap nacional – e talvez por isso, Nabru, ao longo da entrevista que você lê a seguir, soe tão entusiasmada e leve ao falar do disco.

Primeiro, quero te perguntar: como anda a faculdade?

[Risos] Isso passa pelo processo do álbum. O álbum começou antes da faculdade e, quando terminou, eu já estava na faculdade. No início, eu tava passando por uma depressão bem violenta, a pandemia me deixou meio frustrada. Comecei a pensar: eu vou lançar esse álbum e vou parar de fazer rap, vou fazer faculdade, uma pós, um concurso público, dar aula em Universidade, abandonar tudo e virar acadêmica… Uns meses depois encontrei o Tiago Frúgoli e descobri que ele fez Letras na USP também. Ele me falou que na metade do curso decidiu que o que ele iria fazer da vida dele era a música e que ele [apenas] gostava de estudar Letras. Aí pensei que era isso. Abracei a minha vontade de estudo acadêmico, mas não no sentido de ganhar dinheiro com isso, aí comecei a me divertir mais.

Esse ano eu fui muito mal, mas meio que entendi o que eu quero. A faculdade é muito importante para mim e pretendo continuar indo, independente do que aconteça daqui para frente. Pretendo fazer essas duas coisas ao mesmo tempo.

Os dois mundos conversam ou estão mais separados na sua vida? A Bruna Helena estudante de Letras leva as vivências do rap da Nabru para a sala de aula?

Não! Meus professores não sabem que eu sou rapper. Até porque na USP não tem muito um acolhimento por parte dos professores. É tipo: “Você quer ser doutora ou você quer ser rapper?”. Sinto que eles não estão nem aí. Mas no meu estágio as pessoas sabem, aí aliviam um pouco. O professor que coordena meu estágio adora saber que eu faço rap. Quando preciso viajar, fazer um show, eu trabalho remoto. Então, em algumas partes se mistura e em outras, não.

“O disco não podia ficar pronto enquanto eu não terminasse de ficar pronta”

Além de fazer Letras, você vem da poesia. Como surgiu esse interesse pela literatura e o quanto disso você carrega até hoje na sua música e na sua forma de fazer rap?

A minha mãe ama ler! Inclusive, ela conta que lia para mim e para minha irmã durante a gestação. E ela tinha um medo que a gente crescesse e não gostasse de ler. Então, leio desde sempre, às vezes não tinha comida na minha casa, mas sempre tinha livro. Decorei a organização de todas as bibliotecas de todos os lugares em que estudei, era frequentadora religiosa da biblioteca estadual que tem lá na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. E ali na alfabetização, comecei a escrever mini-histórias, minha mãe tem várias coisas guardadas. Escrevo desde que aprendi a ler, era como se ler não fosse suficiente. No ensino médio, escrevi um verso livre e mostrei para uma professora, que me ajudou escrever os versos em soneto […] Dali, comecei a escrever mais poesia e a frequentar uns saraus. O rap vem uns anos depois… Mas faz muitos anos que o rap me tirou desse lugar.

Mas você acha que o rap te tirou da literatura? Você não traz nada da literatura pro rap, uma coisa não conversa com a outra?

Então, acho que voltou a se misturar depois da faculdade. Mas sinto que, nos meus primeiros anos de rap, eu lia menos do que lia antes do rap. Penso que li muito durante minha pré-adolescência e adolescência, então, quando comecei a fazer rap, não queria ler, queria subverter as coisas. Já tinha colocado tanta coisa na minha cabeça que queria botar essas coisas pra fora. Passei uns anos escrevendo sobre o que eu já tinha lido. “Tereza Batista Cansada de Guerra” não foi quando eu li Tereza Batista – foi para tirar Tereza Batista de dentro da minha cabeça.

Desenredo chega cinco anos depois do seu primeiro EP, Marquises e Jardins, nesse meio tempo, o que você acha que mudou daquela Nabru de 2019 pra Nabru de 2024?

Depois que ouvi o álbum, entendi que tinha mudado. Sabia que estava mudando, mas o disco não podia ficar pronto enquanto eu não terminasse de ficar pronta, por isso levou tanto tempo. Mas acho que [o que mudou foi] a consistência. A Nabru do Marquises e Jardins era meio uma massa amorfa. Faz quatro anos que eu não bebo álcool, deve fazer três que não uso nada sintético, tem dois que não fumo maconha. Então, eu fui alcançando um lugar de entender tudo de outra forma. E a Nabru de agora entende.

A narrativa do Marquises e Jardins é: sou uma mulher que vive nas ruas, eu claramente pixo, mas também amo um pixador, e tudo também é sobre ele, sobre esperar ele, sobre o que ele pensa. Agora não é. Agora eu estou no mesmo lugar que o Ogi quando escreveu o Crônicas, ou o Shomon quando escreveu Pixadores. Agora é o meu ódio, a minha tinta, a lata que eu comprei. Não é sobre os outros.

O que o Desenredo significa pra você?

Eu acho que ele é um ponto final, ou um ponto e vírgula. Uma solução para problemas que eu estava procurando há muitos anos. O encerramento de um ciclo de sete anos.

Você é uma das artistas mais relevantes a abraçar o Lo-Fi no Brasil como estética possível. Como você decidiu tornar isso uma identidade do seu trabalho? Essa sonoridade se mantém em Desenredo?

Não se mantém. O Lo-Fi eu acho que é mais do que uma sonoridade, ele é um jeito de fazer música. Por exemplo, Laura Muller Mixtape é Lo-Fi porque o Makalister gravou no celular, porque ele sampleou o barulho da máquina de tatuagem, tá ligado? O Lo-Fi é fazer em baixa fidelidade, fazer da forma que você pode e como você pode. Então, quando eu entrei no Lo-Fi, tinha a sonoridade daqueles beats, mas era mais porque eu estava gravando na minha casa, no meu celular. E hoje não é essa a minha realidade. Hoje eu gravo num estúdio foda, com um mic que capta até meus pensamentos, o GvTx é um puta engenheiro de áudio… Isso já não é Lo-Fi há alguns anos [risos].

“Nunca escolhi o underground, o underground me escolheu. Talvez eu seja underground porque nasci na margem dessa merda mesmo, eu sou underground de sociedade”

E qual sua música favorita do álbum?

[Risos] Nossa! Que difícil…

[Risos] Então, pode ser um top 3.

“4shared”, porque é de uma época específica e muito boa. “Cidade Encantada”, porque essa música não pediu nada de mim, ela é muito leve, é o alívio cômico do álbum. E eu ficaria entre “Letramento” e “Passarinho Urbano”.

“Passarinho Urbano” me emociona muito. É a que mais fala sobre a Pedreira [Prado Lopes], sobre meu pensamento de uma vida boa, sobre as crianças irem para a escola… Mas “Letramento” fala sobre essa relação com a academia…

Era uma música, virou um top 3 e terminou com 4 músicas escolhidas [risos].

São 18 faixas! É muito difícil escolher! Eu fico com medo de magoar os outros também. Tem o Ericbeatz,tem o Gust, tem o GvTx, tem o Ciano, tem o SonoTWS… Como é que eu escolho? Difícil!

O que é ser uma artista underground no Brasil?

Sou capricorniana, né? Então inegociavelmente faço dinheiro com rap, desde que eu comecei a fazer. Seja vendendo umas camisas, fazendo uns bagulho, consigo vender show… Quando preciso de grana, vou lá e faço uma festa. Consigo me virar com certa inteligência financeira maior do que outros manos que passam uns perrengues violentaços. Não briso quando as pessoas falam “você precisava ter mais reconhecimento”. Acho que tenho tudo que eu preciso. Se eu tiver mais não vou reclamar. Mas eu acho que sou reconhecida pelas pessoas que têm que me reconhecer.

Esses dias eu tava com o Jamés [Ventura], com o Parteum, quando eu penso nisso, chego a passar mal. Vi a foto depois e pensei: isso aqui não é rap underground, isso aqui é rap nacional. Gosto de pensar que eu faço rap. Não me apego nesse discurso não e eu acho ele perigoso, inclusive. Porque depois você deixa de ter oportunidades por estar preso ideologicamente no discurso que você fez.

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ARTISTA: Nabru

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