Devendra Banhart e a Definição de Alegria

“Rejoicing in the Hands”, seminal disco do músico, completa dez anos e um sonho revela o poder de sua obra

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Já era tarde da noite quando eu terminei de escutar pela centésima vez Rejoicing in the Hands , talvez a obra mais sincera de Devendra Banhart, disco basicamente acústico e que trazia dez anos atrás um músico jovem e diferente do que pudemos ver ano passado no Brasil. Após o término do disco, me vi pegando no sono, uma noite em que a realidade parecia tão tangível, apesar de estar evidentemente vivendo um sonho. No campo onírico, pude ter um contato, mesmo que imaginário, com o cantor e esse é o meu relato .

Era começo de tarde, aquele período em que o Sol começa a bater no seu corpo e passa do clarão quente desagradável ao quente aprazível. Estava andando por um ambiente urbano, mas misturado, árvores se confundiam com casas, casas se confundiam com prédios e tudo parecia fazer parte do mesmo todo. Resolvi entrar em uma casa com portão aberto e estilo colonial, algo que me remetia ao Rio de Janeiro e que claramente era minha mente brincando com as minhas referências e mostrando no meu imaginário o que era a Venezuela, país que Devendra cresceu até a adolescência.

Dentro da casa, tinha um jardim convidativo para conversas regadas a chá, cervejas e o famoso cachimbo do músico. No entanto, não sabia que o encontraria ali sentado até me dar conta que toda a floresta daquele lugar esconderia atrás de uma palmeira um músico na metade dos seus 20 anos. Cabelos longos, barba igualmente comprida e com um aspecto mal cuidado, o típico de hippies e de como o víamos antes, Devendra me chama para sentar-me junto a uma mesa de madeira. Antes que eu pudesse falar nada, ele me disse:

Esta a barba que eu sempre deixo crescer, esta é a fumaça que eu estou sempre inalando, este é o café da manhã que eu compartilho com você e este é o jeito que sempre parto.

Sem que eu pudesse perceber a clara referência a This is the Way, faixa de abertura do disco, sendo entoada em uma voz aveludada e sem nenhum auxílio de instrumentos, Devendra pega seu cachimbo e começa fumá-lo. Levanta da mesa e diz:

Mas quem sabe? Yeah, eu posso ir pra casa, sim, eu posso voltar.

O que aquilo significava? A sua casa não era a Venezuela? Antes que as coisas ficassem ainda mais incertas, eu aproveito e questiono:

– O que é o amor?

É como achar sua casa em uma antiga canção Folk. Aquela que você nunca havia escutado antes, mas que, mesmo assim, conhece a letra e consegue cantar junto.

A compreensão amorosa vinha sob versos de Sight and Behold e, com olhos já marejados, sinal de que aquele sentimento não parecia pertencê-lo naquele momento, Devendra começa a reclamar. Seu corpo não parece mais responder a seus esforços apesar da idade jovem e, melancólico, afirma em uma mistura de dor física e do coração:

O corpo dói e essa dor leva tempo. Mas você vai conseguir superá-la assim como eu irei superar a minha. E o Sol continuará a nascer e a Lua a se levantar.

Como já diria sua canção, The Body Breaks, o corpo cede ao tempo. A dor pode não ser somente física, mas também dos amores não realizados, da melancolia latente ou simplesmente da tristeza sem sentido. Mas isso vai passar com bons companheiros e o sonho viria a confirmar isso quando, no meio da sombra de um limoeiro, surge um cachorro. Vira-lata de cor dourada, macho, o cão vinha com os olhos com fundos brancos e reluzentes, daqueles que só um amor sincero consegue transmitir, e com seu rabo abanando.

Will é meu amigo – diz Devendra com um sorriso no rosto -Will é o passado, é bastante. É um grande amigo para mim.

Dessa vez já com a voz com soluços de um choro guardado, continua após citar Will is my Friend:

Os cachorros enfrentam a escuridão que tange as montanhas. Eles se movem sempre rumo ao mar.

A metáfora, que vinha de Dogs They Make Up in the Dark, mostrava o amor que o músico tinha com cachorros ao mesmo tempo em que o Sol começa a cair e a noite a surgir. Ele pega pela primeira vez seu violão, acende novamente o cachimbo e começa debulhar-se sobre o violão em um momento claramente introspectivo. Uma mistura de viola espanhola e tropicalismo, ambos em versões raivosos, viria a se tornar Tit Smoking in the Temple of Artesan Mimicry. Ele respira profundamente, solta um último acorde e olha o horizonte. Recomeça sua instrumentação, mas desta vez muito mais calmo.

Todo los Dolores ya se van y el grafitti dice Peter Pan. Cada casa tiene llave, o no se abre.

Evidenciando suas origens latinas – sua mãe o criou na Venezuela – Devendra arrisca um espanhol macarrônico, mas compreensível, exercício que mesmo imperfeito o deixa muito feliz. Ele pede para eu bater palmas e acompanhar o ritmo de sua viola – 1,2,3,4 -, enquanto seus dedos passam cuidadosamente pelo instrumento que portava cordas de aço, e o músico canta:

Então, eu sei que eu nasci quando escorreguei do ventre de minha mãe e eu sei que ele era quente, muito quente. Eu sei disso porque era uma tarde quente. Eu sei que tinha Sol naquele dia.

De alguma forma, ele tentava indicar outro mundo, diferente daquele que se anunciava no horizonte. A escuridão, apesar de dominada, não o agradava. There Was Sun sempre foi uma das minhas faixas favoritas dele e o contato onírico mostrava que a canção era igualmente importante para Devendra. No entanto, ele abaixa a cabeça como que cedesse ao fato de já ser noite e canta um dos seus momentos mais tensos e obscuros, Insect Eyes. Ao terminá-la, o músico parecia mais tranquilo, como se tirasse um peso imenso de suas costas, e eu, ainda absorto com este sonho tão real, pergunto o que eu sempre quis perguntá-lo:

– Por que esta escolha pelo natural, pelo tropical e pelo acústico? Seu estilo de vida parece remeter a um tempo cada vez mais distante.

Com um olhar irônico, como se soubesse o sentido da vida e claramente da pergunta que eu havia lhe feito, ele diz:

Nós sabemos, nós sabemos que tínhamos uma escolha (na vida). Nós escolhemos nos alegrar.

A citação do final de sua faixa de abertura, This is the Way, não poderia terminar melhor aquele sonho tangível que misturava inspirações e citações em um ambiente que Devendra Banhart conhece tão bem. Ao acordar, cheguei à conclusão de que, após dez anos de seu surgimento, Rejoicing in the Hands ainda é um trabalho que nos faz rever conceitos de vida, nos leva a tentar viver de uma forma mais serena e alegre, algo que claramente a idade e o tempo tenta sempre nos tirar. Viver é duro, nem sempre é fácil e qualquer desvio de nossos padrões de conforto nos deixam medrosos e receosos. Escutar o terceiro álbum do músico é um exercício para se aventurar rumo ao desconhecido, mas sem pressa para se chegar ao resultado final, uma lição que deve ser aprendida.

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MARCADORES: Aniversário

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.