Discos Distópicos

Alguns discos que retratam um pouco da universo de sociedade distópicas, passando por David Bowie e Radiohead

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O que você acha do Big Brother? Não o reality show holandês televisivo de gosto duvidoso, exibido em vários países, mas o grande ditador, maior vilão dos tempos modernos. Gosta dele? Não sabia que era um vilão? Faço uma referência óbvia em termos de distopia, no caso, 1984, célebre obra de George Orwell sobre o futuro da humanidade. No caso, o Big Brother do livro é uma entidade totalitária, que domina o poder num país chamado Oceania, que está sempre em guerra com outras duas super-nações, a Eurásia e a Lestásia. Ele e seu contemporâneo e compatriota, o inglês Aldous Huxley, que escreveu Admirável Mundo Novo, são dois grandes responsáveis por uma visão aterradora de futuro, na qual, com o perdão da palavra, a humanidade e tudo de bom que havia nela, foram devidamente remetidos para o beleléu. Orwell e Huxley previram em seus livros, que a sociedade do futuro seria caracterizada pela distopia, ou seja, viveríamos num mundo em que teríamos o contrário da utopia.

Vamos explicar melhor. Quando pensamos numa sociedade perfeita, igualitária, ideal, imaginamos o que Platão relata em sua República (cerca de 300 a.C) ou Thomas Moore define em Utopia, livro escrito no século XVI (1516), impulsionado pelas notícias da descoberta da América e pelas conquistas do Renascimento. Sociedade ideal, quase imaginária, algo que, infelizmente, jamais conseguimos realizar. Esses pensadores, cada um em seu tempo, vibravam com conquistas e avanços experimentados, que refletiram em suas respectivas obras. Huxley (1894-1963) e Orwell (1903-1950), dois ingleses comunistas, nascidos na virada do século XIX/XX, testemunharam um tempo em que o ser humano avançou tecnologicamente em vários terrenos, seguindo, no entanto, incapaz de erradicar desigualdades ancestrais, trazendo sucessivos conflitos armados, entremeados por acordos entre os vencedores, gerando mais opressão e desnivelamento. A sociedade controlada pelo poder da informação, descrita em Orwell em 1984, e o mundo de castas geneticamente concebidas, que materializa-se em Admirável Mundo Novo, são duas faces de uma visão esclarecida e terrível de mundo, algo que, apesar de pessimista em alguns momentos, mostrou-se bastante plausível com o passar dos anos.

Com o advento do Rock no fim dos anos 50 e seu estabelecimento a partir da década seguinte, a distopia não tardou a aparecer como tema importante na composição de canções e discos. A partir da década de 1970, com a aproximação do Rock em relação ao mundo erudito e acadêmico (via Progressivo, Art Rock ou Psicodelia), é possível notar que o amor não correspondido ou o desejo sexual cederam algum espaço a temas mais complexos. Estranho que um artista como Bob Dylan, por exemplo, talvez o primeiro a tornar o rock algo um pouco mais erudito, não tenha abordado a distopia em suas obras. Podemos dizer que há momentos em que ele prevê um futuro ruim ou critica o presente, que piora a cada dia, em canções como Masters Of War ou The Times They Are A Changing, que também dá nome ao seu terceiro disco, de 1964. Pouco tempo depois, era formada um grupo de Blues e Rock em San Francisco, California, com o singelo nome de Big Brother And The Holding Company. Em 1966, uma jovem cantora, chamada Janis Joplin, entraria para a banda.

Stevie Wonder incluiria uma canção chamada Big Brother em seu sensacional disco Talking Book, de 1972, mas David Bowie seria um dos pioneiros na adaptação do tema para o formato da música pop. A própria história por trás de Ziggy Stardust, seu disco do mesmo ano, que narra a saga de um alienígena, a ser encarnado pelo próprio Bowie em shows, como um personagem, já apontava para algo nesse sentido. Em 1974, o tema seria visitado explicitamente em Diamond Dogs, disco que trazia, entre outras canções importantes, 1984 e Big Brother, dedicadas ao livro de George Orwell. Na mesma época, é possível notar uma guinada estética em direção a uma visão mais sombria do futuro, implícita no Rock alemão (Krautrock) de bandas como Can e Kraftwerk, que iniciaria suas atividades como uma formação de inspiração progressiva, mas adotaria a estética futurista como meio de expressar crítica social e comportamental. Discos como Autobahn (1974) e Radio Activity (1975), já mostram uma visão aguçada sobre o futuro e como ele poderia significar algo não exatamente feliz.

O trio canadense Rush, pisando fundo no rock progressivo a partir de 1976, forneceria um significativo disco sobre o assunto. Em 2112, o Rush fala de uma história de ficção científica sobre um império opressor e a luta de um povo pela libertação. David Bowie retomaria o tema no mesmo ano, a partir de seu disco Station To Station, e iniciaria uma jornada estética, na qual Berlim seria seu cenário e o produtor suiço Brian Eno o guiaria. Na verdade, foi um movimento coincidente de artistas importantes, Eno (egresso do Roxy Music e um verdadeiro artesão sônico), Robert Fripp (guitarrista do King Crimson, um gênio enlouquecido) e o próprio Bowie, um artista sempre disposto a experimentar novos conceitos e atualizar sua obra. Juntos eles conceberam, influenciados pelo momento – 1977 – em que o mundo pressentia o fim gradativo do chamado Estado de Bem Estar Social, uma criação europeia do pós-guerra, na qual havia o sistema capitalista, mas com salvaguardas do Estado, sob a forma de assistência social, aposentadoria e outros benefícios que significavam o abrandamento da lógica do sistema. O clima era cinzento, a Europa enfrentava crises de desemprego e descontentamento, que traduziam-se no punk e nos avanços do chamado Art Rock. Discos como Low e Heroes (ambos de 1977) significavam esse avanço de conceitos, de uso da eletrônica, do estúdio como um instrumento musical.

As influências dessa estética fizeram o próprio Pós-Punk adquirir seus contornos clássicos. Tristeza, abraço à eletrônica e aos sintetizadores, letras depressivas sobre amor não correspondido e inadequação numa sociedade criticável. Mesmo assim, até com a presença de discos oitentistas de Kraftwerk, David Bowie, King Crimson e a presença de artistas correlatos, como Peter Gabriel, por exemplo, essa vertente informal e esclarecida foi aparecer com mais evidência em 1997, quando o Radiohead lançou seu terceiro disco, OK Computer. Em termos mais imediatos, OK Computer significou o fim do Britpop e um abraço à eletrônica dos anos 90. Em uma perspectiva mais ampla, OK Computer significou uma retomada vigorosa da estética distópica, num disco estéril, árido, expressão de uma tensão pré-milênio que oprimia mais pelo fato do futuro parecer presente desde o início da década, quando o mundo ingressou num período de grande transformação, no qual a sensação de falta de alternativas era o maior mal. O “there’s no alternative”, expressão cunhada por Margaret Thatcher sobre o caminho capitalista abraçado pelo Ocidente de forma enfática e irreversível, está em toda parte. Respingou no Rock independente inglês e americano, forneceu combustível ao Grunge, moveu o Trip-Hop, sempre no sentido de revestir tais estilos com uma aura de resistência a uma conjuntura opressora e sutil, mas presente nas mínimas coisas do cotidiano.

O Radiohead de OK Computer influenciou várias bandas que ainda estão em atividade, como Coldplay e Muse, que anotou o tento mais recente nessa relação Rock/distopia, quando gravou United States Of Eurasia, em 2009, em seu disco Resistance. Com menção explícita a um dos países de 1984, o Muse fez um disco conceitual, com tema semelhante a 2112, do Rush, cheio de momentos interessantes e raros dentro do que se tornou o Rock atual. De tempos em tempos, o Rock revisita a condição humana na modernidade, algo que está em constante mutação, mas sempre passível de ser mapeada pelas mentes mais angustiadas.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.