Don L faz política (e rap)

“O Hip Hop é uma fonte da juventude. É sobre não deixar envelhecer as ideias”; em seu segundo disco de estúdio, “Roteiro para Ainouz Vol. 2”, o rapper imagina uma “utopia dentro da distopia” sem dispensar o apreço pela arte de juntar batida e rima

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Fotos: Bel Gandolfo

O Monkeybuzz, que completa 10 anos em 2022, tem como uma de suas principais propostas apresentar novos artistas. Dito isso, esses três ou quatro parágrafos antes da entrevista poderiam servir como introdução a esse artista. Um breve resumo da carreira, o estágio em que ela se encontra atualmente, como a obra desse artista dialoga com a música contemporânea, coisa e tal.

Cheguei a ficar tentado a abreviar ou até pular essa introdução e partir logo para o papo. Por uma combinação entre dois fatores: 1) você já deve conhecer o Don L; 2) seu mais recente lançamento já foi tema de diversas entrevistas e resenhas por aí e é um dos discos nacionais (mais comentados) do ano. De qualquer maneira, concluí que, mesmo com uma longa caminhada, Don L é, sim, um artista novo. So Fresh, So Clean. O cearense é inquieto e apaixonado por correr riscos, por ativar novas possibilidades com seu som. “É confortável para um artista [mais velho] repetir fórmulas que já deram certo, até mesmo os jovens fazem isso”, ele pontua.

Em “Êxodo e Êxito”, música de 2010, Don L comenta sobre uma “crise de meia idade aos 25”. Já na terceira faixa de Roteiro para Ainouz Vol. 2 (2021), o tema retorna: “deslanchar a carreira com meia idade?/ ​nah, duas idades na verdade/ ​quando a probabilidade era viver metade”. Com cerca de 20 anos de carreira, o Don L que queria “mandar o mundo se fuder”, que conheci no início da década passada com o lançamento de Caro Vapor, Vida e Veneno de Don L (2012), certamente não é o mesmo de Roteiro para Ainouz Vol. 2. E essa dialética parece fundamental para que o MC – mais guerrilheiro – siga imaginando a “utopia dentro da distopia” e buscando elevar a potência da palavra.

Além de seu domínio técnico ímpar, recorrente na obra de Don L há apenas a busca pelo próximo. O próximo flow, a próxima batida, a próxima vida (ainda nessa vida). Novos sonhos, nova trilha, novo filme. A evidente carga política de Roteiro para Ainouz Vol. 2, claro, aparece nessa entrevista. Mas se, nos caminhos de Don L, política e Rap sempre se cruzam, diria que aqui, no geral, pegamos as estradas do Rap em uma conversa com um dos artistas mais intrigantes e surpreendentes do gênero no século 21.

 

Seu disco abre com um interlúdio, que é a fala de um pastor. Por que essa escolha?

O disco tem toda essa temática que volta ao Brasil Colonial, tem uma ambição decolonial no bagulho, com toda minha humildade possível de que isso é uma proposta, uma tentativa. O colonialismo só foi possível com uso da religião, principalmente deturpando as ideias de Cristo. Com o imperialismo norte-americano vem o neo pentecostalismo protestante que é um lance mais liberal e isso foi usado pela direita para formar esse golpe que é um processo de recrudescimento da construção, que eu acredito ser praticamente linear desse Brasil, que vem dando certo pra essa parcela de classe dominante. Luther King foi pastor, Malcolm foi pastor. Vários revolucionários eram religiosos e Jesus Cristo era um deles. Em primeiro lugar, a figura de Cristo está em disputa.

Me chamou a atenção a rima do “sou mais guerrilheiro do que MC”, me lembrou a rima do Jay Z em “No Hook”, em que ele diz que é “mais Frank Lucas que Ludacris”. Você poderia desenvolver essa ideia?

Eu não pensei nessa rima quando escrevi, mas o JAY Z é muito foda, um dos maiores de todos os tempos. Você pensa “ah, mas o Frank Lucas era um caguete”, quando você pensa isso ele já tem a réplica.

Eu digo isso num sentido que de onde eu vim e na situação que eu vim o rap era muito distante para nós [Costa a Costa], o mundo artístico era distante. Eu sou artista, não nego isso, e minhas ambições são de grande porte, mas ela é indissociável desse bagulho de guerrilha. Isso tá lá [em “No Melhor Estilo”] quando eu falo “Um drink do melhor no gelo pra um dos melhores dos MCs/ um trago de green pelas batalha que eu venci/ não batalha de free, nem tempo eu tive/ de onde eu vim cena do rap é a cena do crime”. A gente tinha essa sede de fazer o bagulho artístico, mas eu não tive tempo, por exemplo, para me preparar como MC, tá ligado? Isso me torna um artista guerrilheiro. É mais ou menos por aí.

Tenho quantos anos de carreira? Consegui me estabelecer o mínimo há pouco tempo, e ainda assim é o mínimo, não tô nem perto.

Logo no começo do disco você fala sobre ter duas idades, e “despontar carreira com meia idade”. Você se sente jovem?

Na forma que eu vivo e na minha mente, eu sou juventude ainda. Em “Êxito e Êxodo” eu disse lá atrás: “eu tive minha primeira crise de meia idade aos 25”, porque, quando eu tinha 25, eu já tava pensando que não dava mais tempo de fazer o que eu queria fazer. Porque é isso que colocam na tua cabeça toda hora. O mundo artístico é isso, uma sede muito grande pra fazer o próximo hit, e despontar…

E estar na margem, como no nordeste, por exemplo, é um agravante.

É um agravante a mais. Ao mesmo tempo que você tá fazendo um corre pra se estabelecer na música, tá deixando de fazer outro corre pra se estabelecer na sua vida. O tempo que tu tá investindo na tua arte podia tá fazendo uma faculdade. Isso é uma luta de quase todo artista. O artista é quase o precursor do neoliberalismo enquanto ideologia de plano de carreira, que é essa coisa de “fique rico ou morra tentando”.

Você já chegou a acreditar nesse lema em algum momento?

Eu já acreditei, e não que eu ache certo, mas eu continuo acreditando. O que é rico pra nós? Hoje em dia tem o milionário e o bilionário. Rico para nós, artistas, é a única opção de vida, porque, se você não ficar rico, você vai se fuder quando tiver velho, quando cê tiver realmente precisando ter aquele pé de meia, uma terrinha pra plantar, uma casa. O que vai garantir que eu vou ter saúde pra fazer show pra sempre? Então pra mim ainda é uma [situação de] não-alternativa.

Perguntei isso da idade porque o Andre 3000, por exemplo, diz que não faz mais Rap com frequência porque ele acredita que é uma parada para jovens.

Eu concordo, Rap é um bagulho para jovem, mas você pode se manter jovem independente da sua idade, essa que é a questão. Talvez por isso seja uma tendência no rapper brasileiro que amadurece, se encaminhar um pouco pro samba, né? O samba é uma coisa que tem esse lance de florescer numa idade avançada.

Nesse disco eu tentei propor um caminho totalmente novo, que eu não conheço nada parecido com isso nem no Brasil nem no exterior. Conheço gente que compartilha das ideias, tipo a Noname, mas a forma que ela usa é totalmente diferente – ela coloca as ideias dela de um jeito agradável que dá pra curtir. Porque não precisa ser panfletário, eu não gosto de música panfletária.

O Hip Hop é uma fonte da juventude. Olha pro Nas. É sobre não deixar envelhecer as ideias. Tem aquela frase falsa de que não existe comunista velho, ou aqueles jargões de “isso é coisa de DCE”, ter a ambição de um mundo novo. Tento quebrar esses paradigmas e me manter o fresh do fresh do bagulho.

Qual foi a sua escola de rap?

Racionais MC’s foi o primeiro que bateu muito forte. Quando fui morar no Conjunto São Pedro, um parceiro meu do bairro, o Junior D me passou vários sons que eu não conhecia, Cypress Hill, Tupac. Eu gostava do Doctor MCs que soava um pouco como Cypress. Ouvindo os gringo criei um mundo paralelo na minha cabeça – uma palavra ou outra que eu entendia, o resto eu imaginava uma letra. Era como se eu, como ouvinte, tivesse que compor. Quando comecei a ouvir muito som no carro – que acho o melhor lugar pra ouvir som – eu comecei a pirar em “Life is a Bitch”, do Nas, na obra do Tupac em si. Quando conheci JAY Z, mudou pra caralho, aí conheci Dipset, a cena das mixtapes. Eu lembro que pra mim, os gangsters eram muito mais politizados do que realmente eram.

[No Costa a Costa] A gente tinha essa sede de fazer o bagulho artístico, mas eu não tive tempo, por exemplo, para me preparar como MC, tá ligado? Isso me torna um artista guerrilheiro. É mais ou menos por aí. Tenho quantos anos de carreira? Consegui me estabelecer o mínimo há pouco tempo, e ainda assim é o mínimo, não tô nem perto.

Qual seu top 5 MCs?

Eu nunca me decido.

Seu top 5 hoje.

É difícil concorrer com o JAY Z como melhor MC de todos os tempos. Apesar de ele ser o último bilionário que a gente vai desapropriar na revolução, vai ter que chegar a vez dele, mas ele fez coisas que é difícil de colocar outro no mesmo patamar. Talvez o Kendrick chegue, se ele continuar com a obra dele como tá, daqui dois discos supera o JAY Z. O Kanye eu acho um grande MC. O Biggie com certeza! É difícil não colocar ele, porque ele fez o que, dois discos? E só isso já coloca ele na prateleira. É inacreditável. Deixa eu pensar… Tem o Nas, mas a obra dele não é tão consistente. Ele tem tipo, três discos que eu gosto inteiro: Illmatic (1994), Stillmatic (2001) e God’s Son (2002). Tem Life is Good (2012), que entra nesse bagulho do Rap maduro. Acho ele mais foda que o 4:44 (2017). É JAY Z e essa galera, com Kanye na disputa. Menção honrosa pra Noname se ela quiser [alcançar isso].

Ela disse esses dias no Instagram que não consegue mais fazer música.

Imagina ser a Noname nos Estados Unidos. Eu vi uma entrevista dela e ela questiona até o lance do artista ser idolatrado. Ela é muito verdadeira nos questionamentos que ela faz e isso torna ela a pessoa mais interessante de seguir. Aquela nata de Chicago que talvez seja o polo criativo mais significativo do Rap nos últimos tempos, todo mundo tá ligado nela.

No disco você tem uma música chamada “volta da vitória”, que é o nome de um disco do Nipsey Hussle. O Nipsey era um cara que assim como o JAY Z tava envolvido com vários negócios e com a ideia de “black money”. Como você enxerga essa parada?

Eu tendo a gostar da visão da Noname sobre isso. O Black Money pode ser cooptado muito facilmente como um bagulho que realmente não vai mudar a condição dos negros, mas como um paliativo eu acho foda. Pode trazer condições necessárias pra que a gente possa realmente fazer uma revolução que vai mudar isso, um projeto de mundo pós-racial. Esse disco do Nipsey eu acho muito foda. Meu disco favorito da história é o Reasonable Doubt (1996) e pra mim o Victory Lap (2019) é um Reasonable atualizado. É essa parada do bandido introspectivo, que o JAY Z inaugurou. Esse bagulho de colocar as tretas da cabeça dele no meio do bagulho. O Nipsey era muito isso.

“O Hip Hop é uma fonte da juventude. Olha pro Nas. É sobre não deixar envelhecer as ideias. Tem aquela frase falsa de que não existe comunista velho ou aqueles jargões de ‘isso é coisa de DCE’. Ter a ambição de um mundo novo. Tento quebrar esses paradigmas e me manter o fresh do fresh do bagulho”

Recentemente você comentou no Twitter que se identifica com o rap do BK’. O que uma rima precisa ter, em forma ou conteúdo, para você se identificar?

Não sei nem te responder isso, mas o BK’ tem essa visão da realidade realista e melancólica. Que ao mesmo tempo é uma sede de vida, mas também um bagulho um pouco depressivo que toca meu coração de verdade. Muitas vezes as pessoas viram minha obra como uma coisa hedonista de viver no limite, no máximo, mas se você pegar as entrelinhas do bagulho isso é um desespero pra não querer morrer. Às vezes tem outros MCs que acho foda [tecnicamente], mas que não tocam meu coração dessa forma, tá ligado?

Eu vejo você compartilhar umas arquiteturas soviéticas, casa norte-coreanas e tudo o mais. Como seria a arquiterua de “élewood”?

Eu tô numa brisa de transformar minhas músicas em games, se tiver algum desenvolvedor aí querendo criar o donéleverso! (risos).

Se eu tivesse o poder de ir mudando as coisas como quem muda um set de filme, aí a gente pode começar a conversar. Em primeiro lugar é essa falta de encaixe, é o forasteiro, o estrangeiro… E num segundo momento a gente começa a criar algo novo a partir disso, desapropriar o Itaim, ocupar os jardins… Fazer uma utopia dentro da distopia, você imagina isso.

“élewood” eu tô cantando o presente, que a gente precisa viver essa utopia do futuro já agora. A gente tem um mundo colonial no qual as cidades não são projetadas pras pessoas serem felizes. O mercado constrói a cidade e cada vez mais isso é incompatível com a vida, a nossa vida, a animal, a vida microbiana que é necessária para nossa sobrevivência.

Agora, o que eu imagino? Eu imagino uma floresta urbana, o uso da nossa ciência e tecnologia a favor do bem viver. É óbvio que não é uma construção da noite pro dia, mas o caminho, a trilha – que é o mais importante – ela pode ser iniciada agora. Seria uma cidade dentro de uma floresta, com parques, museus, uma cidade guiada pela arte.

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ARTISTA: Don L