Dona Edite do Coco em: brincadeira é coisa séria

Como Dona Edite virou Mestra de Cultura do Ceará “brincando”, há mais de 40 anos, o coco – canto/dança que fascinou Mário de Andrade e perdura até hoje

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Fotos: Felipe Scapino

“Formamos uma roda. Uma pega na mão da outra, como se fosse um outro tempo, das brincadeiras que eu fazia quando era miudinha. É como uma ciranda”. É assim que Dona Edite do Coco, Mestra de Cultura do Ceará, começa a descrever a brincadeira do coco. “Vai rodando, vai cantando, vai rodando, vai cantando. Bato as palmas, tudo lindo. Aí já vai dar a roda, vem as pisadas, e os cavaleiros tiram as damas para dançar. Três passinhos para cá, três passinhos para lá”.

Para finalizar a explicação que dá por telefone, Dona Edite puxa com sua voz adocicada uma toeira, canção cantada em roda: “Minha sabiá, minha zabelê / Toda madrugada eu sonho com você / Se você duvida, eu vou sonhar pra você ver”. 

Aos 79 anos, mas com memória e vivacidade de menina, a agricultora Edite Dias é organizadora, cantora e dançarina do grupo Mulheres da Batateira composto por outras 16 mulheres de Crato, cidade no interior do Ceará, mais especificamente na sub-região do Cariri. Com mais de quatro décadas de atuação, as Mulheres do Coco da Batateira celebram em praças e festas populares um dos ritmos mais antigos da cultura popular brasileira.

O coco: “Canto-dança das praias e do sertão”

Como muitos dos ritmos brasileiros, que nascem de uma amálgama das culturas formadoras do país, é difícil dar berço ou precisar a origem do coco. Mário de Andrade, folclorista e escritor, documentou, entre os anos 1920 e 1930, o ritmo nas praias e sertões de estados como Paraíba e Rio Grande do Norte, e pôs em palavras a dificuldade de conceituar o estilo: “Antes de mais nada convém notar que como todas as nossas formas populares de conjunto das artes do tempo, isto é, cantos orquéstricos em que a música, a poesia e a dança vivem intimamente ligadas, o coco anda por aí dando nome pra muita coisa distinta. Pelo emprego popular da palavra é meio difícil a gente saber o que é coco bem.”

O pesquisador Câmara Cascudo atesta a influência africana nos instrumentos de batida, mas reafirma o papel formador do povo indígena. “Sabemos que a disposição geográfica coincide com as preferências dos bailados indígenas, especialmente dos tupis da costa”. O coco se popularizou e se arvorou em diferentes estilos no Norte e Nordeste do país. No Cariri, de Dona Edite, ele é dançado em roda e ritmado com os versos da toeiras, palmas e pandeiro. Embora a tradição dite que se dancem homens e mulheres, na roda da Batateira são só mulheres, metade trajada de vestido e sapatilhas, a outra de calça e chapéu representando os cavaleiros.

A relevância e longevidade do grupo de Dona Edite do Coco conferiu a ela o título de Mestra da Cultura do Ceará, uma honraria do governo estadual dada a guardiões da cultura popular, permitindo que elas deem aula em universidades. Depois de décadas de uma vida dedicada à preservação do ritmo, Dona Edite do Coco está pensando em aposentar os quadris e pés. Ela divide com o Monkeybuzz um pouco da sua trajetória.

“Mulher, nós sofremos muito no começo. Não existia nada de cultura na comunidade na época que começamos, só festas de banda antigas e feitas só por homens. Quando nós saímos, chamavam a gente de velhas fogosas, enxeridas”

Como é que a senhora começou a dançar coco? 

Eu nasci em Pernambuco, em 1940, na cidade de Bom Conselho. Lá tinha coco, mas eu nem dava atenção, não tinha nada que me atraía. Quando eu vim para o Ceará, já mulher feita, com quatro filhos, comecei a ser monitora no Mobral (programa de alfabetização de adultos na época da Ditadura Militar). Em 1979, na celebração da Semana do Folclore, o Mestre de Cultura Elói Teles propôs que a gente brincasse o coco. Uma das alunas sabia dançar, outra sabia cantar. Levamos as alunas para Praça da Sé, e foi tão querido o coco.

Mesmo quando o Mobral acabou, o Mestre nos incentivou a formar um grupo de coco entre nós mesmas. “Por que vocês não formam um grupo com cavaleiros e damas?”. Tentamos chamar nossos maridos, mas o meu foi o único que aceitou, mas mais porque ele gostava de obedecer ao que eu queria fazer. Então acabamos comprando tecidos, fizemos roupas de cavaleiros e damas, e só nós mulheres que formamos o grupo Mulheres da Batateira [referência ao bairro onde Dona Edite do Coco vive]. Continuamos até hoje queimando o pé de brincar coco.

Como se brinca o coco e por que se fala em brincar o coco, não dançar? 

Precisa ver muitos cocos para poder saber como é. Tem vários tipos. Nós brincamos o coco de roda, mas também o gamela, cururu, umbigadas. A gente pega uma mão na outra e forma uma roda, como se fosse no outro tempo, no tempo de menina. Uma ciranda. Aí começa o nosso hino. Saímos girando, abrindo e fechando a roda. Aí vai rodando, vai cantando, vai rodando, vai cantando. Aí para, bate as palmas, tudo lindo. E assim nós passamos a noite inteira.

A gente aqui do Nordeste chama os movimentos e danças de brincadeira. É brincar o coco, brincar de maneiro pau, de banda cabaçal, enfim, todo tipo de jogo. Não sei se é o jeito certo de falar, mas é assim que falamos.

“Escrevemos e cantamos, e fazemos as músicas dos momentos do dia a dia. Músicas do caminho da roça, da quebra do coco, da debulha do milho. Até a mexidinha do feijão de sempre dá para formar um bonito verso”

E sobre o que vocês cantam? 

Estas músicas que cantamos pegamos prontas de outras pessoas e outras inventadas por nós mesmas. Escrevemos e cantamos, e fazemos as músicas dos momentos do dia a dia. Músicas do caminho da roça, da quebra do coco, da debulha do milho. Até a mexidinha do feijão de sempre dá para formar um bonito verso. São coisas do cotidiano, como: Barra do Dia, ai flor do ar / Eu vou subir a serra, vou tirar maracujá / O benzinho tire eu, tire eu, tire eu.

Vocês tiveram dificuldade de aceitação na comunidade? 

Mulher, nós sofremos muito no começo. Não existia nada de cultura na comunidade na época que começamos, só festas de banda antigas e feitas só por homens. Quando nós saímos, chamavam a gente de velhas fogosas, enxeridas. Quando usávamos vermelho as pessoas falavam ‘onde vão as trancas ruas, as pomba-giras?’, era um encheção de saco. Tentávamos não dar bola, deixar passar.

Uma vez fomos nos apresentar no nosso bairro, na Festa de Nossa Senhora da Penha, e um menino foi jogar uma pedra, e não é que a pedra acertou justo a avó dele, que estava brincando junto? Serviu de um dó esse episódio. Mas era uma cultura nova, não tinha antes em lugar nenhum, e isso despertava muita ignorância. Hoje somos uma comunidade muito rica de conhecimento, tem capoeira, zabumbeiro. Nós fomos as primeiras que inventamos algo assim. Hoje as coisas estão muito melhores.

E o que a senhora pensa daqui para frente, do futuro do grupo e da importância da manutenção da cultura de vocês?

Do grupo original, já faleceu um bocado de gente, só sobraram três. Quando alguém fica doente ou sai do grupo, a gente já convida outra para não ficar incompleto, e aí vamos indo. Eu tô procurando alguém para me representar, já tô ficando cansada de dançar, já croco. Tudo senhorinha, tudo crucuzinha, dançando para morrer, mas estamos aqui na luta.

A gente quer que isso continue, e ensina nossas netas e bisnetas para eles terem um futuro dentro do coco. Acho que elas vão dar continuidade. Até as que já desistiram, são mães, suas filhas um dia podem entrar no grupo. A gente tem muito amor pelo Mulheres do Coco da Batateira. O grupo é igual filho da gente, teve dor ao nascer, mas o carinho é muito grande.

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