Dora Morelenbaum: no pique e em trânsito

“Pique”, disco de estreia solo da artista carioca, harmoniza o clássico e o contemporâneo – e reflete dualidade entre movimento e refúgio

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Fotos: @mariacaulevy

Em Pique, seu primeiro álbum solo, Dora Morelenbaum apresenta uma obra marcada por uma busca constante e íntima por sua identidade musical. Criada entre partituras e shows com os pais – Paula e Jaques Morelenbaum –, a cantora, compositora, instrumentista e produtora traz, em sua estreia, uma rica tapeçaria de influências que mesclam MPB, jazz, soul e R&B. Após o sucesso com o grupo Bala Desejo e a conquista do Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de Pop Contemporâneo Brasileiro, com o álbum SIM SIM SIM (2022), Dora embarcou em um caminho sonoro no qual explorou sua expressão artística com autenticidade e complexidade. Com uma turnê internacional em andamento, a artista tem show de lançamento marcado para o começo de dezembro — dia 1º em São Paulo, na Casa Rockambole, e dia 5 no Rio, no Teatro Rival, seguidos de uma turnê pelo Nordeste.

Lançado em parceria com os selos Coala Records e Mr Bongo, Pique reflete a dualidade entre movimento e refúgio, característica percebida tanto nas letras quanto na estrutura sonora. O processo criativo, realizado em colaboração com Ana Frango Elétrico – parceira desde o EP Vento de Beirada (2021) –, percorreu trajetos que redundaram em uma base instrumental de jazz, escorada em um quarteto formado por baixo, bateria, teclado e guitarra – harmonizando texturas clássicas e contemporâneas.

Pique foi muito importante para eu assumir mais as rédeas do que venho construindo. No meu primeiro EP, ‘Vento de Beirada’, ainda não tinha ideia de como aquilo funcionava, o que era possível criar, e como fazer. Com o Bala Desejo, isso já foi mudando, e, agora, nessa produção, já sabia melhor onde e como queria chegar. Chamei Ana para produzir, que também me deu muito espaço para assumir isso junto”, reflete Morelenbaum.

“Acho que cada projeto que se faz contribui pra gente saber discernir o que se leva em frente, o que se deixa para trás”

A maturidade e a maior experiência também podem ser notadas na forma como a carioca explora a temática do amor ao longo do disco – sob diferentes perspectivas, extrapolando o viés poético e expressando uma abordagem estética e abstrata. “Quando juntei as músicas do álbum, vi que o tema do amor prevaleceu. A maior parte das letras é dos meus parceiros Tom Veloso, Sophia Chablau e Zé Ibarra. Apenas ‘Sim, Não’ é somente de minha autoria. A partir disso, já se construiu essa diferença entre as músicas de amor, mas o álbum veio antes de um discurso sonoro do que poético. Então, sobre esse tema, pensei em textura e paisagem sonora. A produção e os arranjos acentuaram os vários lados da coisa”. No lugar de criar uma narrativa linear sobre o sentimento, Dora se utiliza do amor para brincar com gêneros, atmosferas e sonoridades, propondo uma experiência sonora contemplativa e, ao mesmo tempo, provocativa.

O álbum abre com “Não Vou Te Esquecer”, balada apaixonada e dolorida, embalada por um quarteto de jazz, formado por Sérgio Machado (bateria), Alberto Continentino (baixo), Luiz Otávio (teclados) e Guilherme Lirio (guitarra). O disco segue capturando a sensação de deslocamento, que se reflete tanto nas letras quanto nos arranjos, construídos de tal forma que novos detalhes e segredos são revelados a cada audição. “A base toda do álbum foi gravada em uma semana, em abril de 2023. Quando saímos do estúdio, já tava muito perto da sonoridade que buscamos. Depois foi só gravar as vozes, cordas e sopros, edições e mixagem. Isso tudo foi entremeado de shows que eu tava fazendo com o Bala e sozinha também, por isso demorou tanto. Mas acabou que foi importante pras ideias irem assentando, a gente conseguiu pensar com calma essas finalizações, ordem, capa, som, etc”, relembra.

Pique conta com a participação de Diogo Gomes, Marlon Sette e Jorge Continentino, além de Josyara, nos violões de “Sim, Não”, enquanto a mãe de Dora, Paula, participa de um coro afetuoso, e o pai, Jaques, colabora com arranjos de cordas. A contribuição de Jaques atesta uma sintonia musical incrementada desde a infância, mas que ganha ainda mais força ao ser desenvolvida em conjunto com a. “Eu já tinha algumas melodias na cabeça e referências de onde queria chegar e chamei ele pra gente buscar isso juntos. Sempre aprendi vendo ele fazendo os arranjos – dessa vez aprendi fazendo junto com ele”, diz Dora.

A parceria com Tom Veloso se destaca em “Petricor” e “Melhor Saída”, com melodias cíclicas, de um aspecto quase mântrico, que conduzem o ouvinte a um estado meditativo. Carro-chefe do disco, “Caco”, composto por Dora e Zé Ibarra, combina ironia, frustração e otimismo, em meio uma exploração leve e sincera das nuances do amor. “Eu e Zé fizemos o refrão dessa música anos atrás, ainda sem letra, mas um refrão claramente apaixonado, rendido. Quando fui compor o verso, senti que precisava dar uma acidez pra situação, uma entortada. Aí quando o Zé colocou a letra, essa dualidade ficou evidente”, conta a artista. Já a instrumental “VW Blue” traz um jazz improvisado e lúdico, com participação marcante de Arthur Dutra no vibrafone. “Como é meu primeiro álbum completo, eu tinha vários desejos que gostaria de colocar em prática na produção. Saí do estúdio de gravação com a sensação de ter sanado todos eles. A estrutura base das músicas que juntei pedia justamente que se construísse esse universo distinto de arranjos dentro desse mesmo pensamento sonoro, que partia de uma vontade estética, que pensasse não só a canção, mas a textura, a cor e o timbre. Acho que cada projeto que se faz contribui pra gente saber discernir o que se leva em frente, o que se deixa para trás”.

Em um belo equilíbrio entre rigor técnico e espontaneidade, Dora diz que demorou para encontrar sua própria liberdade musical – mas reconhece que cada projeto é uma construção: “Demorei a sentir essa liberdade dentro da música, não por pressão dos meus pais, mas da própria música. Me sentia oprimida, por mim mesma, na verdade, de reconhecer todos esses axiomas da música… Mas aos poucos fui descobrindo que ainda tem muitos outros parâmetros para explorar – na música e em mim”.

Além da sonoridade sofisticada e experimental, Pique conta com um visual cuidadosamente desenvolvido sob a direção criativa de Maria Cau Levy e Ana Frango Elétrico. A capa, com uma imagem em movimento, reforça a ideia de transitoriedade que atravessa o álbum, sugerindo uma obra feita para acompanhar o ouvinte em trajetos e momentos de passagem, como uma trilha sonora.

“Demorei a sentir essa liberdade dentro da música, não por pressão dos meus pais, mas da própria música. Me sentia oprimida, por mim mesma, na verdade, de reconhecer todos esses axiomas da música… Mas aos poucos fui descobrindo que ainda tem muitos outros parâmetros para explorar – na música e em mim”

O aspecto visual e sonoro trabalham em conjunto para fortalecer a sensação de um projeto que não se fixa em um único lugar, mas se move e se transforma junto com a artista. “Tive uma ideia sinestésica quando ouvi o álbum desde o princípio, antes mesmo de fechar o nome. Além de ter feito ele em trânsito, descobri ao longo do processo que ele era um álbum ótimo para ouvir em movimento, na estrada, correndo… Então quando fui fazer as fotos e todo o projeto junto com Maria Cau Levy – que fez o design, as fotos e direção criativa – e Ana – que também assinou a direção criativa junto com a gente –, quisemos registrar essa sensação, essa transitoriedade, também com essa transição de luz, o lusco-fusco, tempo passando. O processo do projeto gráfico acabou se assemelhando ao tratamento sonoro, no sentido de misturar o digital e o analógico, nessa ordem. Registro digital, tratamento analógico”.

Estreia solo que coloca Dora Morelenbaum em um novo patamar, Pique evidencia uma capacidade de navegar por estilos e influências com maestria. O álbum, disponível nas plataformas digitais e também em vinil, é um convite para um mergulho por várias camadas da música brasileira.

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