E o resto é história

Dono de um dos álbuns mais singulares do Rap nacional recente, Joca destrincha seu trabalho de estreia com exclusividade para o Monkeybuzz

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Fotos: João Victor Medeiros / Monkeybuzz

João Caetano não escolheu virar artista. Produtor musical, MC e percussionista, foi por meio do pai, poeta e artesão, e da mãe arte-educadora que a semente foi plantada desde cedo. Nesse caldeirão, ainda entra a geografia: em seus breves anos vividos, Joca carrega em sua formação a influência de diversos lugares.

Por conta da primeira infância em Minas Gerais, ele traz a proximidade com congado, folia de reis, tambores, além da torcida pelo Atlético Mineiro. Dos cinco anos até a adolescência, viveu na Região dos Lagos, de onde vieram as aulas de música, as noções de comunidade e a lembrança da “Cápsula do Tempo”. Na quinta série, a mãe do artista propôs uma atividade na qual os alunos deveriam escrever o que queriam ser no futuro e a caixa só poderia ser aberta no Terceiro Ano, ao sair da escola. “Escrevi que queria ser técnico de som, era a referência que eu tinha na aula de música. Me interessava ter um laboratório para manipular sons”, comenta Joca. Aos 19 anos, o terceiro momento: a criação do coletivo Ujima Gang e o florescer definitivo da semente – apresentações em festas da crew, experimentos musicais mais intensos e o entendimento do próprio processo artístico.

O Monkeybuzz bateu um papo exclusivo com o músico, que contou os detalhes e processos de seu disco de estreia, A Salvação é pelo Risco – O show do Joca.

1. ROYAL

É o tema de abertura da série, do “Show do Joca”. É uma série de comédia e drama, nessa dualidade. Aquela piada que você ri  e depois pensa “que bad, o maluco tava pra pensar nessa piada”. Quando penso na visualidade dessa música, penso umas vinhetas, animações, videografismo, é uma música que ambienta. A faixa intro mesmo não está na versão final e vai sair em breve, chama-se “A Barca”, a faixa zero. Organizei meus versos no 94 – meu Home Studio –, no estúdio gravei as acapellas, peguei o beat [do Romão] aberto e trabalhei algumas coisas no arranjo, chamando amigos músicos para gravarem. Todas as músicas aconteceram desse jeito, eu organizava no 94 e quando tava com tudo pronto, levava pro estúdio da Reurbana.

O Gabriel Medeiros gravou as guitarras desse som no 94 e no estúdio Reurbana, e selecionando os takes decidimos manter um pouco de cada. No último refrão dá pra ouvir uma guitarra de cada lado e é ele em dois estúdios diferentes, em dois momentos diferentes. Esse som tem um pouco de pergunta e resposta e a gente tentou trazer isso na dinâmica da guitarra. O baixo era do sample e é muito importante pra mim, é uma referência de composição que tenho do Itamar Assumpção. Um dos produtores do CD e diretor técnico, o Luigi Tedesco, regravou o baixo. Por último entrou o Rodrigo Maré, que gravou conga e timbales.

E o resto é história (ri).

E esse lance de Jay-Z e Kanye que você comenta?

Tem músicas do Jay-Z que já escutei muito durante minha vida, mas acho que a gente se identifica mais com os personagens dos artistas quando a gente vê como eles se posicionam e lidam quando em atribulação. O Jay-Z tem uma performance que eu não me identifico ao máximo, nunca tive uma vivência em relação a drogas e violência como ele, nunca foi a minha. Já o Kanye, no momento que ele chegou no College Dropout, ele se apresentou com questões diferentes dos outros rappers…. E tem também o mapa astral que bate com o meu. Jay-Z é um liricista foda, mas me identifico com trajetória e escolhas artistas do Kanye.

2. BREVE

Os moleques da Reurbana me mostraram o sample no dia que eu fui gravar “Eternos”. Eu, como percussionista, desenvolvi muito mais um estudo rítmico do que harmônico/melódico, então gosto quando o sample dá essa orientação harmônica. Quando me mostraram, eu já sabia que queria esse timbre. Foi um processo de recolher os meus fragmentos de escrita automática e colocar na música. Algumas estrofes eu já tinha, outras eu fui preenchendo tentando entender como eu poderia colocar palavras nos momentos onde tinha espaço. E eu queria muito fazer essa com a Ciana. Já tinha tentado produzir em outros momentos algum beat para ela cantar e não tinha rolado por não sentir firmeza nas minhas escolhas de sample, no meu processo de construção de arranjo. E nós [eu e Ciana] dividimos processos desde 2015, já estávamos querendo fazer algo junto há muito tempo, aí convidei ela para essa música.

Ela teve a ideia de escolher algum trecho que já existia em outra música, alterar a estrutura dele e trazer pro refrão, com a voz dela. O entendimento que a gente pode falar a mesma coisa de formas diferentes. Apresentei a letra de “Baby Não Me Espere (Interlúdio II)”, e ela teve o tempo dela de compor. Um dia fui na casa dela mostrar as músicas novas e a primeira vez que ela cantou eu já falei “pô, vamo gravar, do jeito que der”. A gente fez um esquema dela ouvir o beat pelo computador no fone e me mandar um áudio no WhatsApp cantando e aí o aúdio virou acapella. Juntei no Garageband, fiz essa gambiarra e levamos pro estúdio.

Todas as músicas têm um quê de comédia, então muitos tensionamentos não são verídicos da maneira que eu estou falando. Gostaria de deixar registrado que eu jamais responderia minha sogra daquela maneira.

3. THROWBACK

Essa música foi o single. É o segundo beat que eu não produzo do álbum, ele é do Drei. Moramos juntos em Niterói, cada um produzindo no seu quarto, trocando, botando cara na porta e zuando… Lançamos intencionalmente primeiro, porque ela não entrega tudo do álbum, mas entrega o conceito e é acessível.

Ela é tipo um trailer, então.

Justamente, um aperitivo. Também foi o encontro estético do álbum. Queria que fosse uma capa de álbum de Jazz, convidei o @debeija para tirar fotos minhas no Palacete dos Amores, depois mandei as fotos pro Manoel Manoel que fez a capa do single e do álbum. Podia ser a capa de um filme VHS ou de um disco de Jazz.

Me conta mais da capa do disco…

O processo está acompanhando o álbum desde a primeira música, que não entrou. O Manoel Manoel já me fotografou, já me filmou, recolhemos revistas e desenhos dele pra ele fazer scans e estávamos entendendo que o processo do álbum tinha muito de sample, então colagem tinha tudo a ver com a proposta. O personagem principal da capa é um dinossauro, é o último dinossauro e a primeira ave. O nome é Archaeopteryx, pode ter sido o animal que deu origem às primeiras histórias de dragões. Manoel já retratou esse animal em outros momentos e eu acho que tem tudo a ver com o disco. Ele está em um híbrido de seres e eras. As aves estão nesse processo, é outra dinâmica de pensar corpo, espaço, locomoção.

E esse refrão?

Foi a primeira coisa que consegui balbuciar quando ouvi o beat: “tudo vem tudo vai”. O sample é Summertime Madness [do Kool & The Gang], muito usado na música no mundo inteiro; a partir disso fui preenchendo os outros espaços; “Dormi e acordei tipo”… É uma noite com ou uma noite sem a pessoa também. E o cara se contentando e é isso, vamos lidar ou não vamos lidar –  ficar batendo cabeça. Eu achei interessante fazer a brincadeira com os termos em inglês, porque na época que eu estava compondo, o pessoal estava usando muito no Trap e outro pessoal estava criticando, então quis brincar com algumas palavras em inglês que já estão dentro do nosso vocabulário, o #tbt, flop, detox, flashback.

E essa segunda voz participante que faz perguntas a cada linha, é uma segunda pessoa ou uma voz na cabeça?

O eu lírico é essa pessoa de raciocínio lento, que acaba se vendo sempre numa nostalgia por causa da dificuldade que tem de tomar uma atitude, ou da falta de segurança para puxar um assunto além do clichê que é perguntar se está tudo bem. Ao mesmo tempo que quer um flashback, não sabe se aproximar da pessoa pro que quer que seja. Então, a Juliana Thiré acaba sendo esse personagem, da pessoa que o eu lírico está sentindo saudade, mas ao mesmo tempo está confortável em ter lembranças. Tem referência em dois filmes do Adam Sandler. Como se fosse a primeira vez – quando ela [a protagonista] esquece tudo que viveu quando dorme e acorda, a alternativa é ela ver a vida inteira dela em throwback para que se contextualize e possa viver o hoje. De alguma forma, toda memória está sujeita a alterações, é ficção mesmo. Os diferentes momentos da nossa vida vão interferir em como a gente entende no presente. Nise da Silveira tem um trabalho muito interessante com o teatro da arte como terapia nesse sentido.

O outro filme é Click, que é o timelapse. Entrar em piloto automático e acabar deixando escapar momentos e intencionalmente perder várias memorias, porque você só quer pular pro momento onde você não esteja sentindo dor, angústia, ou mesmo ansiedade.

4. KATARA

Katara é uma daquelas músicas que os MCs sempre falam que escreveram com a gata dormindo do lado (gargalha). Fiz no meu quarto, de fonezinho com minha amada. No meio da madrugada, acordei com a ideia de fazer um beat e a minha amada na época tava dormindo no meu quarto, a gente assistia muito Avatar e tinha a identificação com Aang, ela com a Katara…

Na verdade, esse beat foi feito e eu não sabia muito bem como rimar nele, então considerava uma obra fechada, íntima. Mostrei o beat para ela, mas ficou nesse lugar por muito tempo. O verso eu escrevi quando esse relacionamento já não funcionava na mesma dinâmica. Sampleei minha própria voz, coloquei no refrão de outra maneira, colocamos plugins de ruído, fita cassete, delay, saturando o uso do efeito para voz ter esse aspecto flutuante. A sensação que tentamos trazer era de que estava sendo gravado dentro de um aquário.

Fala muito sobre essa correria, piloto automático focando na produção e tentando viver o afeto pra se sentir inspirado. Ao mesmo tempo que se imergir demais acabamos deixando a produção de lado. Nem sempre as duas pessoas que estão vivendo o relacionamento estão no mesmo momento. Quando a gente abdica da vivência com alguém por causa de trampo, bate uma culpa por talvez pensar que a pessoa não faria o mesmo e que isso é injusto. Tem que ser responsável nesses momentos, mas o tempo passa e a gente precisa se posicionar. Me atravessa muito o pagode, então me debruço muito sobre as questões do afeto.

5. A PRAIA

Essa foi a última música que compus, em maio de 2019. Um amigo postou “olha o Amauri com 16 anos”, eram três beats que ele [Amauri] tinha feito quando mais novo. Pedi pra ele os beats, trabalhei em todos, mas, no de “A Praia”, vi a possibilidade de trabalhar a inércia, aquele momento deitado na cama olhando pra cima e me debruçar sobre essa angústia.

Quando eu falo do “cigarro novo” é uma metáfora sobre fetichismo da mercadoria. O cigarro e o cinzeiro são dicotomias muito presentes. Quando estou com muito cigarro, não penso na merda que é um cinzeiro cheio, fedendo. Trabalhando nessa dialética, e de como nós jovens negros como artistas, atletas ou em qualquer ambiente de destaque somos obrigados a estar nesse lugar do cigarro sempre bonito e impecável, seguro do próprio trampo e disposto a trabalhar. O tempo todo estar trabalhando para provar que a gente merece dinheiro para trabalhar.

O áudio [no final da faixa] eu recebi do Alceu, um dos fundadores da Ujima Gang. Eu tava indo dormir após uma noite insone e ele estava indo pro trampo novo dele. Sempre esteve presente no rascunho das faixas e entrou no recorte final.

6. ETERNOS

Na verdade, eu que fui convidado para estar nesse som pelo LT e depois propus a ele de colocar no meu álbum. Ele veio com a referência em uma música do Trippie Redd e eu vi ali a oportunidade de explorar mais a linguagem do Trap. É o momento de injeção de energia depois que eu escuto o áudio do Alceu. Olhar para frente, ter força e ver o quanto eu caminhei. Acho que temos que focar nisso, porque o desânimo inevitavelmente vai sempre bater.

7. BABY NÃO ME ESPERE

Essa música eu escrevi bem solta, comecei versos com baixo e voz na mesma cadência rítmica. [No beat] a Jacquelone sampleia uma faixa e apenas com elementos do sample ela construiu uma nova célula rítmica, associando com música experimental e até o House. Coloquei mais algumas coisas, escolhi uns timbres para deixar mais em evidência a bateria.

Os versos do final, “tenho amores e ódios repentinos por você” são sampleados do filme do Karim Ainouz, Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009). No momento no qual ele está saturado de escrever cartas que não vão chegar nunca, que são muito mais dispositivos de memória dentro da solidão.

Eu acho que, quando o Rap chama instrumentistas e intérpretes de outras vertentes, acaba deixando muito dentro de uma caixinha, tipo “a gente consegue dialogar com você só até aqui.”

Gosto de como você faz a intersecção com outros gêneros sem cair nesses clichês de Rap com MPB, Rap com Samba.

Vem muito disso, de escutar desde criança todos os tipos de música, em casa ou na rua. Naná Vasconcellos, À procura da batida perfeita, que é um trabalho muito foda de pesquisa do DJ Nuts e do Marcelo e me influenciou muito em termos de música brasileira para dançar. No Rap, me identifiquei mais com uma galera que não ia muito para os mainstream, mas estava preocupada em fazer um som fiel que fosse agregar na história da música. E fritar muito nas combinações e experimentar onde fosse confortável para mim.

Eu acho que, quando o Rap chama instrumentistas e intérpretes de outras vertentes, acaba deixando muito dentro de uma caixinha, tipo “a gente consegue dialogar com você só até aqui”. E quando vai fazer um Rap explicitamente nesse lugar, acaba se apropriando de uma referência que, como diria o Trevo, lá da Bahia, não é “nada de novo sob o sol”. Uma parada muito plástica. Você olhar e pensar “esse som não me desafia, eu consigo estar no meu lugar culto e curtindo uma coisa de periferia ao mesmo tempo”. Meu trampo não está longe de acabar caindo nesse lugar, mas faz parte também, acontece.

8. IN SÔNIA

Chegamos no início, foi a primeira música criada. Fiz o beat em 2013, enquanto ouvia 1999 (2012), do Joey Bada$$. Quis fazer um som de Rap gostoso, que desse pra curtir. Fui para Nova York um tempo depois e vivenciei a cidade junto a essas paisagens sonoras que o Joey retrata. Coloquei samples de “Ocarina Of Time” de Zelda e ficou lá.

E aí, no início do estúdio da Reurbana, o pessoal fez um beat e disseram que remetia à nostalgia. Ali eu já rabisquei “Saudade real, o frio que bate é o baque que toca no bairro natal…” e deixei no caderno também.

O refrão veio em um terceiro momento, influenciado por Castelos & Ruínas (2015), onde eu entendi que poderia me expressar de maneira autêntica e sensível, mas ao mesmo tempo me posicionando perante o mundo.

O segundo verso iria para um projeto de um amigo, isso em 2016, que acabou não acontecendo. Dois anos depois eu estava colando com o Filipe Vellozo, baixista da Duda Beat e ele demonstrou interesse em colaborar em criações minhas. Mandei esse beat [de 2013] e mais um. Quando ele mandou de volta, quis muito aproveitar. Reconstruí a batida, gravei verso, programei os baixos. A guitarra de Ivo é montada quase que como a paranoia: coloquei no intervalo dos meus versos para ficar meio solta, até desconfortável mesmo. Tentei traduzir esse sentimento.

E a participação da Ana [Frango Elétrico], como veio?

Ela tem um gravador Roland e me emprestou. Fui fazer o backup para ela e tinham gravações de 2016 do Almoço Nu, banda que tocamos juntos. Eu tinha escrito In Sônia e ela tava compondo as primeiras músicas da carreira solo. Dentro desse gravador, achei uma música que eu gostava muito e que não tinha sido usada em nenhum projeto, então resolvi samplear.

Quando mandei o esboço com o sample, ela quis regravar. Nessa, abrimos espaço dentro do beat para ela cantar e colocamos auto-tune, ad-libs no estilo Ana. A parte dela, para mim, traz um acalanto pro eu-lírico da narrativa, que está no auge do stress da insônia. Como se estivesse em uma queda livre e brota ela com aquelas roupas estilo esquilo voador, planando e sobe de novo.

Qual o recado de Joca pro mundo?

Seja você mesmo, não acredite no hype. A salvação é pelo risco.

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