Elliott, Sufjan, Nós e o Mesmo Palco

Coincidências no Oscar de Melhor Canção aproximam cantores

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Alguém lembra do que estava fazendo no dia 23 de março de 1998? Eu lembro nitidamente, especialmente na parte da noite. Era domingo, dia de entrega dos prêmios da 70ª edição do Oscar. Sempre vi a premiação, hábito que desenvolvi por conta da minha mãe, que adorava cinema e fazia peregrinações para tentar se informar o máximo possível sobre os indicados. Mesmo que eu tivesse meus preferidos e visto alguns filmes naquele ano (havia gostado muito de Titanic e Gênio Indomável, que disputavam vários prêmios, entre eles os de Melhor Diretor, Filme, Roteiro Original e mais alguns) nenhuma categoria me interessava mais do que a de Melhor Canção Original. E por quê? Porque um dos meus heróis musicais estaria presente: Elliott Smith, alçado a esta condição recentemente, estaria no palco da cerimônia, contra tudo e contra todos, defendendo a sua belíssima – e tristíssima – Miss Misery. Creiam, havia um sentimento compartilhado entre fãs – e que nunca foi declarado – de presença coletiva naquele palco.

Silenciosamente, sem aviso, sem qualquer combinação prévia, a presença de Smith e seu violão eram a senha para que todos nós penetrássemos naquela festa de bacana. E foi o que fizemos. Miss Misery, uma balada ao violão, com duração inferior a três minutos, presente na trilha sonora de Gênio Indomável, parecia pedir colo. Ela fazia parte de uma belíssima trilha sonora, de um filme ainda mais belo e importante. Dirigido por Gus Van Sant, estrelado pelos novatos Matt Damon e Ben Affleck, também responsáveis pelo roteiro, que seria premiado naquela noite. Além deles, o filme trazia a melhor atuação de Robin Williams em toda a sua carreira, como um psicólogo amargurado pela perda da esposa. Não por acaso, ele também ganharia o prêmio naquela noite, cravando o total de estatuetas que Gênio Indomável levaria, dentre as nove indicações que recebera. A trilha sonora é uma grata surpresa, trazendo de Al Green e Bee Gees a Dandy Warhol e o já mencionado Elliott, que cedeu canções já gravadas, caso de Angeles e Between The Bars, ambas presentes na sua obra-prima, Either/Or, de 1997. Miss Misery, portanto, fora especialmente composta para o filme, um passo e tanto para um artista recluso como Elliott.

A parada não era fácil para ele. Havia a concorrência de pesos-pesados da indústria do cinema presentes em animações e filmes açucarados, mas o obstáculo era gigantesco, mais precisamente, do tamanho de um transatlântico. My Heart Will Go On, tema de Titanic, gravada por Celine Dion, era a franca favorita para levar o prêmio, que foi anunciado por Madonna, logo após Elliott se apresentar. Evidente o deboche dela com o resultado, traduzido num desdenhoso “what a shocker”, dito antes de anunciar o nome da canção vencedora. A vida, no entanto, sorriu para Elliott depois disso. Ele saiu dos porões do underground alternativo americano para assinar contrato com a gravadora Dreamworks, lançado um disco belíssimo poucos meses depois, XO. Em 2000 viria Figure Of Eight e, em 2004, seu último registro de inéditas, From A Basement On The Hill. O triste fim de Elliott Smith mostra o quão atormentada era sua vida e não nos cabe falar quase nada a respeito, apenas que, naquela noite, sua felicidade era tão grande quanto seu desconforto e sua perplexidade. Tocar naquele palco foi um feito. Para todos nós.

Corta pra 2018. Vinte anos depois.

Talvez estejamos diante de uma nova ocasião especial neste 90º Oscar. Outra canção singela, folkie, triste, presente numa trilha sonora pouco ortodoxa, de um filme sem muita badalação em termos de bilheteria, mas forte nos festivais, promete levar todos nós de volta a um palco no qual não costumamos ir. Estamos falando, claro de Mystery Of Love, pequeno tratado emocional de Sufjan Stevens, presente em Me Chame Pelo Seu Nome, dirigido pelo italiano Luca Guadagnino. É, assim como Gênio Indomável, um longa sobre aquilo que chamamos de “rito de passagem”, em inglês, “coming of ages”. Se os personagens de Damon e Affleck eram dois amigos, vivendo uma adolescência marginal de Boston, aqui, Elio e Oliver são dois jovens que não se conhecem, mas cuja convivência, forçada por questões adjacentes durante o verão de 1983, trará uma série de descobertas para eles. Timothée Chalamet e Armie Hammer vivem os dois personagens, respectivamente.

Ao contrário de Elliot, Sufjan já tem uma carreira longa, que antecede sua indicação ao prêmio. Não é de hoje que sabemos de seu talento e manejo do idioma folk e suas canções já apareceram em séries como House e no primeiro episódio de This Is Us, que tem em Death With Dignity um elemento bastante importante. Mystery Of Love é da mesma cepa que Death…, e se parece demais com algumas canções de … Elliott Smith. Os vocais sussurrados, o clima mágico trazido pela alquimia de teclados, vocais e violões, a melancolia, a proximidade da morte em vários sentidos, tudo junto, nos dá a nítida impressão de que aquele palco, enfim, está ao nosso alcance. Novamente.

Me Chame Pelo Seu Nome tem quatro indicações, entre elas, Melhor Ator (para Timothée), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Canção e Melhor Filme. Sufjan, assim como Elliott em 1998, tem grandes adversários em seu percurso. Novamente surgem canções de animações da Pixar, temas do musical do Hugh Jackman, composição do mesmo autor de Let It Go, infeccioso sucesso do desenho Frozen, enfim, aquela sensação de enfrentar o mundo coletivamente está teimando em voltar.

Sufjan não promete levar mais ninguém com ele para a apresentação, mas, quem sabe, novamente subimos e encaramos aquela gente estranha ? Já terá bastado e fará justiça a hoje e a 20 anos atrás, de uma forma estranhamente coerente e cheia de amor. E mistério.

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MARCADORES: Artigo

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Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.