Entre o céu e o inferno

Os anjos e demônios da cantora Urias, em nossa COVER STORY de janeiro

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Fotos: Eduardo Urzedo/Monkeybuzz

Ela se autoproclama Diaba, do tipo que encanta, enfeitiça, deixa o corpo em brasa. Avisa que anda com a navalha debaixo da língua, a engolirão por bem ou por mal, está sempre pronta para a briga. A figura que cria, no entanto, é o oposto da garota de 25 anos que nos recebe na República, em São Paulo, no apartamento que divide com a amiga e cantora Mel. Urias deixa escapar entre uma pergunta e outra “sonhos, sonhos, eu sou uma mulher de muitos sonhos”. Coloca um R&B para tocar, flutua nos gestos e tem uma imagem sobretudo angelical. Pergunto, então, por que tanta força afiada na performance artística? “Não quero que sintam do LGBT dó. E nem quero pedir por espaço. Se tudo vem da gente… Arte, moda, tudo! Então este espaço é nosso. E se a gente não o ocupa por completo a coisa está bem errada.”

Como foi crescer em Uberlândia?

A minha infância foi como a de muitas crianças LGBT, com momentos difíceis. Mas eles não me impediram de estar aqui. Eu sempre fui criativa, danço desde os 6 e me apresentava nos concursos da cidade com as meninas e as viadas. Eu sonhava em ser cantora, mas era aquela história de desejar ser bailarina, jogador de futebol e entender que não vai rolar. Era mais uma aspiration.

O que te influenciava?

Lady Gaga. Ela foi uma artista que me criou interesse. Abriu a minha mente para arte, moda. Eu fui conhecer estilista, procurar desfile por causa dela. Claro, existiram outras divas. Uma boa Rihanna, uma Björk, uma Grimes. Eu era esquisita também. Inspirada nelas que eu comecei a dar aula de dança, a vender coreografia. É, menina, a gente não aparece assim do dia para a noite, não.

E foi desse jeito que tudo começou?

Mais ou menos. Uberlândia é uma cidade universitária e se você não passa em uma federal você perdeu. Eu deixei de lado os sonhos e foquei na universidade. Passei no curso de tradução, depois mudei para relações internacionais e comecei a trabalhar no telemarketing. A minha ideia era juntar dinheiro e estudar lá fora um curso de moda. Eu até ganhei uma bolsa para estudar moda aqui, em uma faculdade particular, mas eu precisava da autorização dos meus pais. E, você sabe como é, não rolou.

Com ela [Pabllo Vittar] que eu compartilho coisas que não divido com mais ninguém. Só ela consegue entender. A gente troca entre a gente. – Urias

Mas rolou juntar o dinheiro?

Eu juntei um pouco, mas fui demitida. Eles disseram que era corte de funcionários. Eu procurei o intercâmbio e também não cabia no meu orçamento. Então vivi dois anos da minha vida com este dinheiro juntado. Depois, a produção de uma marca de cerveja me viu em um festival e me convidou para fazer o primeiro comercial como modelo. Depois, fiz Casa de Criadores, São Paulo Fashion Week…

Nessa época você já fazia drag?

Eu fiz drag, mas nunca foi a minha arte. Um dia a Pabllo [Vittar] chegou em mim e falou ‘amiga, vou lançar um clipe chamado Open Bar e quero você participando toda montada’. Foi aí que eu comecei o drag. Só para ficar bonita no clipe. Eu consegui? Claro que não. [Risos]. Por isso, não vejam este clipe. De qualquer forma eu continuei a me apresentar de drag, tocando nas festas. Eu fazia parte de um grupo, chamado ‘As Dildos’. Era eu, Kido e Fido. Uma tocava, outra performava e a última fechava os negócios.

E quando você percebeu que a Urias existia?

Enquanto eu crescia, principalmente dentro da comunidade negra, eu sentia um medo ao meu redor de que eu fosse LGBT. Eu não tinha ideia do que significava ser trans, travesti, mas sabia que não podia. Não deveria. Com o drag, tive um primeiro contato com o meu eu feminino de uma forma libertadora. Foi algo que eu nunca tinha permitido experimentar antes e só aí comecei a entender. Eu então fui atrás de um acompanhamento psicológico para saber o que eu estava sentindo. O processo demorou dois anos até eu entender que queria transicionar. Há três anos eu me transiciono.

Como foi este processo?

Eu não pedia mais dinheiro para os meus pais e precisava de um emprego novo. Comecei a trabalhar em um shopping, mas era pesado. A carga horária é absurda, foge das leis trabalhistas. Fora que eu tinha medo de ser demitida, em função da transição. Eu tinha medo de ter que morar na rua, como acontece com tantas de nós. Foi quando a Pabllo me chamou para ser assistente dela, em 2017. Eu enfim tive dinheiro para o procedimento hormonal, sem medo de ser mandada embora. Eu não dava o próximo passo antes porque precisava de um chão sólido. Este momento foi o meu chão sólido, quando as coisas aconteceram.

O que significa essa sua relação com a Pabllo?

Nós somos irmãs. Com ela que eu compartilho coisas que não divido com mais ninguém. Só ela consegue entender. A gente troca entre a gente. O que aconteceu em nossas vidas é um babado que só nós duas compreendemos.

E quando você decidiu dar o pontapé na carreira de cantora?

Eu comecei a pensar realmente no que gostaria de ser. E decidi tentar. As pessoas de Uberlândia me ajudaram muito. Um amigo me arrumou um estúdio, fiz alguns covers e lancei. Com o meu salário eu fiz os clipes, do jeito que dava, com as ideias que eu tinha. E, na terceira semana, o primeiro cover já tinha um milhão de views.

Os covers têm uma brasilidade. De onde vem isso?

Eu decidi que ia fazer música que eu gostava de ouvir quando era criança. Eu escutava pagode, axé e sertanejo. Lá em Minas Gerais você não pode chegar assim do nada para a sua mãe e falar que não gosta de sertanejo. É uma afronta. Eu ouvia bastante Só Pra Contrariar, Raça Negra, Molejo, Alcione.

Tudo o que eu canto, falo e faço é de uma perspectiva de pessoa trans. E não existe música que fale da gente para a gente. – Urias

E como foi tirar o primeiro EP do zero?

Eu queria ressignificar as músicas que eu ouvia para a minha realidade. Tudo o que eu canto, falo e faço é de uma perspectiva de pessoa trans. E não existe música que fale da gente para a gente. Ficamos nos procurando nas letras, tentando nos encaixar nas palavras, mas elas não são pensadas para a gente. Decidi fazer as minhas músicas. Podem não gostar, mas ao menos as T gatas sabem que é para elas. Como eu nunca fiz composição foi muito novo. Fui juntando do meu jeito. O Zebu, o Gorky e o Maffalda me ajudaram a construir músicas com as imagens que eu tinha na cabeça. O Hodari me ajudou a escrever Diaba. Ele me ajudou com o ‘navalha de baixo da língua’ depois que eu contei como as travestis se protegem nas ruas. Em Rasga eu e Kika Boom brincamos de fazer uma música com possíveis legendas de Instagram. E foi rolando…

Tudo, sempre com amigos…

Sim, ninguém faz nada sozinho nessa vida, não.

Você reafirma uma força nas letras. Você é assim mesmo ou mais sensível, tranquila?

Sim, eu sou [sensível], mas sempre tive que me reafirmar. Não tenho outra opção, preciso ser forte. Quando entro em um lugar cheio de mulheres cis, por exemplo, eu preciso provar que sou mulher. Quando entro em um lugar cheio de homens cis eu também preciso que provar que sou mulher e ainda lidar com a misoginia. Isso cansa. Eu tenho que ser forte toda hora. Eu tenho que ser a melhor para me provar. Coisa que as outras fazem com pouco eu tenho que fazer com perfeição. Quem tem privilégio não se dá conta disso. Então não existe travesti que não seja forte. E eu nem estou falando de levantar a voz, de peitar de frente. Estou falando de entrar no quarto, olhar para o espelho depois da transfobia diária e ainda seguir bem.

No clipe de “Diaba” todos se matam para chegar perto de você, mas ninguém consegue encostar. Por que?

As pessoas sentem atração por mim. Esta é a realidade do país. O Brasil é o que mais consome pornografia transexual no mundo. Os caras querem muito. Mas é o Diabo. O caos acontece por querer encostar e não poder, não dever. E eles se perdem ali sozinhos, no próprio ódio. Enquanto que eu fico de boa. Essa é a história do desejo. Ao andar na rua, a gente percebe muito isso, os olhares dos homens. Quando eu saio na rua que eu entendo bem como sou percebida na sociedade.

Em “Rasga”, porém, você diz que ‘a gata sabe que é bela’. Você sempre soube? Ou precisou entender aos poucos sua beleza?

Ao longo do meu acompanhamento psicológico sempre ficou claro que uma transição envolve mudanças e que eu não saberia como ia ficar. A médica sempre me colocou no lugar, me falou para não criar ideais na imagem de outras mulheres trans. Então eu sempre tive essa coisa do ‘eu estou bonita’, ‘eu estou arrasando do meu jeito’. A partir do momento que você coloca isso dentro de você ninguém mais tira.

E o que podemos esperar deste ano?

Eu vou lançar o álbum. Tem gente me ajudando a escrever, como a Alice Caymmi. E tenho ouvido conselhos muito valiosos de pessoas como a Karol Conká e a Liniker. Vou estar no CD do Baco, também. E a nossa música é tudo. Aqui é artista pop, né, amor. O material vem completo, com clipe, com close de beleza.

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ARTISTA: Urias