Entre o Desespero e a Euforia de Arcade Fire

Banda celebra a nostalgia com um dos mais belos discos de estreia da história

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Sabe aquele disco lançado há algum tempo que você carrega sempre com você em iPod, playlist e coração, mas ninguém mais parece falar sobre ele? A equipe Monkeybuzz coleciona álbuns assim e decidiu tirar cada um deles de seu baú pessoal e trazê-los à luz do dia. Toda semana, damos uma dica de obra que pode não ser nova, mas nunca ficará velha.

Arcade Fire – Funeral (2004)

- E se a neve enterrar a minha vizinhança?

Uma geração oprimida pelo medo, frustração e tragédia, mas, ainda assim, cheia de desejos. Você nasce, cresce e descobre os pequenos detalhes do mundo, amparado por sua família e amigos, e pensa ser intocável, invencível e jovem para sempre. Não demora muito para perceber que nem tudo é assim. Lida com a perda, com o amor, com a raiva, e se depara com o abismo de fragilidade que a realidade impõe – não por um caso específico, mas pelo único e simples fato de ser humano. Segura a barra até que os fardos, de um jeito ou de outro, logo caiam sobre você. Mas ainda sente a força para alimentar uma esperança de que o amanhã será melhor, amparada por uma grande saudade da infância, das primeiras experiências e dos sentimentos puros e livres.

E assim, mesmo com o medo, conseguimos construir nossas defesas de maneira sutil. Mas, ao invés de curarmos nossas feridas existenciais e emocionais, nos isolamos em meio à nossa própria solidão e escolhemos nos deitar sobre elas e consumir nossos martírios, quando no fundo, queremos voltar a acreditar na invencibilidade e não sentir absolutamente nada. Anestesiados e inatingíveis.

Para quem conheceu Arcade Fire tardiamente e passou pelo dançante e cheio de influências carnavalescas Reflektor, pela celebração nostálgica de The Suburbs e pela introspecção e obscuridade de Neon Bible, talvez não reconheça a banda em suas origens no álbum de estreia do grupo, Funeral, disco que completa dez anos em setembro deste ano. Tampouco, quem viu a apresentação do grupo no Lollapalooza Brasil 2014 não imagina que a banda, mesmo antes do lançamento de qualquer trabalho, já se mostrava preparada para expandir sua então contida grandiosidade em um futuro muito breve, como mostra esta rara apresentação de 2003.

Construída sobre os laços familiares de Win Butler, sua esposa Régine Chassagne, seu irmão Will, Richard Parry e os demais integrantes que mudaram ao longo dos anos, a banda ficou conhecida no início por suas intensas e teatrais apresentações ao vivo e pelo seu EP, que na época teve a qualidade questionada, mas era só a ponta do iceberg do que a banda realmente representava e do que estava por vir. Mesmo assim, o trabalho consistente e contagiante que veio em seguida logo serviu para que Funeral fosse considerado por muitos como um dos melhores discos do ano em 2004.

As composições e o nome Funeral vieram para marcar um período em que diversas perdas ocorreram para os membros da banda. A avó de Chassagne havia falecido em junho de 2003, o avô de Butler em março de 2004 e a tia do instrumentista Richard Parry no mês seguinte. As canções parecem reconhecer o poder da dor da morte de um ente querido, mas de uma forma leve e poética. Funeral evoca a doença, a passagem do tempo e a morte, mas também a renovação, a nostalgia, mesclando uma sutil inocência infantil à uma forte frieza da maturidade. Ao invés de abordar o tema de uma forma triste, traz à tona questões existenciais presentes em cada um de nós.

Os assuntos recorrentes das faixas Neighborhood #1, #2, #3 e #4 não focam necessariamente na vizinhança, mas sugerem um imaginário lírico que grita no desespero e na necessidade de ter seus medos enterrados e seus pedidos esperançosos atendidos. O enredo parece uma narrativa muito pessoal, sincera, doce e impactante. E para quem conhece os trabalhos da banda, sabe que todos os seus álbuns evocam uma história com começo, meio e fim.

O álbum todo vem como um sopro nostálgico de alguém lembrando de sua infância, como se as letras narrassem os sentimentos infantis que existem dentro de cada um. Não por alguma falta ou mal jeito com as palavras, mas pela sinceridade e pureza que as letras são apresentadas, misturadas com os diversos instrumentos e as vozes despejadas de Win e Régine. É como se o registro buscasse uma forma de contornar os medos, as inseguranças, as perdas, as frustrações e tentatasse lidar com o amor em sua forma mais crua e verdadeira. Ele tenta se conectar a um mundo maduro, quando na verdade, está gritando por amparo, enquanto o tempo parece destruir tudo o que se viu e viveu.

Se eu fechar os olhos, consigo me transportar para os meus tenros 12 anos, quando ingenuamente pensava que todo mundo com mais de 30 anos era ruim e todas as decisões estúpidas que eu fiz na época eram certas – inclusive, achava que sempre saberia o que seria melhor para mim. Funeral me joga nas mãos todos os elementos rebeldes da adolescência: a vontade de fugir de casa (Tunnels e Laika), a rebeldia (Power Out), a desconfiança e desilusão com as pessoas e meus pais (Wake Up, Rebellion (Lies)), a dor (In The Backseat), as esperanças (7 Kettles), a pureza (Crown Of Love), uma exaltação da cidade natal cheia de lembranças e dores (Haiti), e me leva além com a música, vagando entre o desespero e euforia de minhas memórias.

A sonoridade e teatralidade das músicas, gloriosas e brilhantes, ainda fazem meu queixo cair dez anos depois. As composições me permitem olhar para trás e reconhecer tudo o que eu vivi e fui um dia. Sensações maravilhosas e tristes, carregadas de nostalgia. Uma exaltação aos sentimentos que crescem dentro de nós desde sempre, e que ecoam em forma de saudade e lembranças.

Quando a última faixa, In the Backseat, toca, você pode sentir que a banda encerrará grandiosamente, mas, ao invés de um estrondo, ela acaba com um sussurro. No meio do realismo triste, “Eu gosto da paz no banco de trás. Eu não preciso dirigir. Eu não preciso falar, eu posso observar o campo”, canta Chassagne como uma sensação de segurança e libertação, tentando se esconder da dor por “Eu estive aprendendo a dirigir a vida toda” e agora apenas assumir o amor pela janela do banco traseiro. Liberdade. Mas esta música é a que ainda oferece consolo para o encerramento de um trabalho seminal de Arcade Fire, carregado de uma honestidade brutal entre as fortes emoções que cercam a morte, a doença e a aceitação.

Durante a última e recente apresentação da banda pelo Brasil no Lollapalooza 2014, Win ressaltou o significado da palavra “saudade”, dizendo não saber da existência de um termo que sintetizasse o tema de todas as músicas da banda. E aqui, encerro meu ciclo de constantes e obsessivas audições de Arcade Fire com um sussurro, cheio de saudade de ter visto recentemente um grande show, de uma grande banda, celebrando grandes clássicos como os presentes em Funeral. Saudades também da minha infância, do que fui, do que vivi. E o que sobra é a verdade que celebra o lirismo de um dos mais belos álbuns de estreia que já ouvi.

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ARTISTA: Arcade Fire
MARCADORES: Fora de Época

Autor:

Largadora por vocação. Largou faculdades, o primeiro namorado e o interior. Hoje só quer saber de arte, cinema, música, fotografia e sair correndo pelo mundo.