Esse som é Clementaum

A artista relembra momentos sonoros da infância, reflete sobre a conexão entre moda e música eletrônica e discute a importância de se manter autêntica – especialmente em contato com o mainstream

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Fotos: @gudelgado

A música eletrônica, muitas vezes, é vista como um uma coisa só – quando, na realidade, trata-se de um mosaico em que diferentes gêneros, ritmos e emoções cravam um lugar específico de criação. Clementaum, DJ e produtora de São José dos Pinhais (PR), é uma das representantes atuais dessa pluralidade e, mais do que isso, da possibilidade de inventar e manusear múltiplas referências de maneira autêntica. Dona de uma produção camaleônica, Gabriella Clemente demonstra como não há a necessidade de se colocar em uma caixinha. Tudo – com cuidado e dedicação – pode ser. 

Livre de rótulos, o som de Clementaum desafia categorizações: é techno, funk, tribal, pop, vogue beat… E por aí vai. Aqui, a artista fala sobre suas conquistas – das produções ao Boiler Room e à residência na Rinse FM –, relembra marcos musicais de sua infância e reflete sobre a profunda conexão entre a moda e o universo eletrônico – elementos que se entrelaçam em sua identidade artística.

Você é de São José dos Pinhais, no Paraná… Antes da música, como era a sua vida? A sua rotina, infância?

Olha que loucura. É legal você querer começar falando sobre a infância. Acho que fui uma criança muito artística, sabe? Não sabia o que queria pra minha vida, mas já fazia implementações de várias coisas, fazia cursos de teatro da prefeitura. Então, eu era bem ligada, gostava muito. Minha irmã me apresentou muitas coisas também. A Britney Spears, o próprio funk, a Gaiola das Popozudas… Em questão musical e de videoclipe, lembro que a gente assistia muito MTV e Mix TV. Lá pelos meus oito, nove anos de idade, já tava muito antenada. Lembro que eu era muito fã da Kelly Key e fã de Rouge também! Sempre gostei muito de música e divas.

E a música já estava ali em seu dia a dia…

Sim, sim. E, por exemplo, o meu pai é uma pessoa muito musical, ele toca violão. Mas a referência dele é a do universo sertanejo. Nas festas de família, ele pegava o violão e começava a tocar. Como eles são do interior, né? Era o que eles, quando crianças, adolescentes, ouviam em um radiozinho.

Mesmo que eu não gostasse de sertanejo, ainda assim, estava ali num ambiente musical. Quando já era adolescente, eu era presidente do Grêmio Estudantil da minha escola. Era uma escola pública, a diretora deixava uma caixa de som para a gente usar no intervalo e eu tinha um celular. Não vou lembrar o nome do modelo, mas é aquele Nokia que você conseguia colocar as músicas MP3, que a gente baixava no 4shared. Então, eu era meio que a DJ do babado. Isso na sétima série.

E na música, como começou sua trajetória?

Comecei primeiro nas festas, conhecendo a cultura clubber e me apaixonando pelos rolês de música eletrônica de Curitiba. Em 2015, comecei a ser hostess em algumas festas.Esse era o momento que eu tinha para me montar, colocar o look que eu mesma fiz, esse tipo de coisa. Aí, em 2016, um amigo meu falou: “Ah, Gabi, você não quer tocar? Tem uma festa nova aqui”. No momento, fiquei meio indecisa, não sei… Mas aí ele disse que a dona da boate me ensinaria o básico, aí topei. Depois disso, outras pessoas começaram a me chamar, só que eu não era uma DJ profissional, eu mais selecionava músicas. E foi nesse mesmo ano, em 2016, que eu larguei o meu trabalho fixo porque eu já estava fazendo muita festa e ganhando praticamente a mesma coisa de trabalhar no CLT. 

E aí, em 2017, foi o ano que mais gente me chamando pra tocar, ser DJ de fato. Considero que foi o ano que eu virei DJ. Comecei a me dedicar, a estudar. Comecei primeiro sendo DJ e depois eu fui para a produção musical. Eu fui entrar na produção musical, realmente, só em 2019, o ano que eu consegui comprar um computador que preste, porque antes eu não tinha.

Sei que eu demorei para começar, mas foi mais na pandemia que eu me dediquei mais à produção musical. E eu juro para você: a minha vida mudou. Uma coisa é você ser um DJ que seleciona as músicas, toca a música das pessoas, outra coisa é você começar a tocar as suas próprias músicas. E no começo, minhas músicas eram bem simples e um pouco fracas.

Como você enxerga a evolução do seu som e do seu estilo ao longo dos anos? Há algum gênero que gostaria de explorar, mas que ainda não teve a oportunidade? 

Gostaria de instrumentar, só que eu não sou instrumentista, eu só sou produtora musical… Pego os pedaços das paradas e boto. A Clementaum está tendo um som bem único, tenho várias referências, mas pensando em um estilo de som que eu gostaria muito de produzir, seria o samba mesmo, do zero. Talvez com vocais, uma composição de alguém. Não sei se eu conseguiria fazer isso de uma forma tão fluida e real, só com samples… Mas é uma vontade que eu tenho.

Como foi o seu primeiro contato com a cena ballroom? De que forma essa cultura te influenciou?

Em 2017, quando comecei a tocar mais, eu tinha muitas pesquisas de sons da América Latina, como também do Brasil, toco muitos produtores do Brasil. Mas eu tinha uma pesquisa em vogue beat, e a partir disso, conheci alguns amigues de Curitiba que dançavam o vogue, eles sempre falavam que a gente poderia fazer uns experimentos. Em 2018, a gente fez os primeiros experimentos de ball e eu estava fazendo parte da organização. 

Mas foi em 2020 que a gente fez a primeira ball organizada por uma kiki house, que é a minha casa atual. E eu falava “gente, mas eu não danço, eu não faço nada”, e eles disseram “não, não é só sobre dança, é sobre estética”. Uma das categorias que eu venci na época era a fashion best dressed. Agora eu não faço mais porque não tenho muito tempo. Então, essa é uma categoria que eu caminho, como eu também caminhava em face, às vezes. Tem vários outros tipos de performance. Principalmente aqui no Brasil, tem muitas categorias que são totalmente brasileiras e isso faz toda a diferença. Tem uma categoria chamada samba no pé, outra que chama Bate Cu, que é quem vai rebolar mais… Rebola a raba, mexe a raba.

Eu fui convidada pelo meu pai, que é a Kisha, para entrar nessa house. Aqui em Curitiba, a gente se movimentava muito. Inclusive, eu sou uma das primeiras DJs do Paraná da cena ballroom. Não vou dizer que eu sou a primeira, porque essa coisa de, “ai, eu sou a primeira”… A gente nunca sabe. Dentro das casas tem tipo uma “hierarquia”, aí eu me tornei princess e hoje eu sou overall princess. Eu também sou de outra house que é mainstream, que é House of Rich. Minha ligação com a ballroom veio muito pela minha pesquisa e pela necessidade de quem estava à minha volta.

Qual foi o momento mais marcante da sua carreira até agora?

Nossa, são tantos, mas 2024 foi um ano muito legal, muito bom. Você fazer um Boiler Room… O Boiler Room é importante para muitas pessoas e para os DJs, principalmente para o nosso circuito de música eletrônica. É como se fosse uma confirmação, é um bafo você ter um Boiler Room, eles estão de olho no que está rolando e o que eles querem, as coisas que representam cada país ou região. 

Eu tive um Boiler ano passado, no festival Rock The Mountain, só que infelizmente ele não foi gravado em vídeo, na época eu fiquei muito triste. Mas sabe quando você sente? “Vai chegar um momento melhor para mim”. E meses depois, apareceu um e-mail convidando para o Boiler Room em Barcelona, no festival Primavera Sound. Foi uma honra, eu nem acreditei! Quando saiu o line-up, aí que eu não acreditei mesmo. Um monte de gente foda lá… Arca, Safety Trance, DJ Ramon Sucesso, th4ys, enfim, vários!

Sabe aquela síndrome de vira-lata? Parece que quando tá aqui no Brasil, o povo não valoriza, e eu sou uma pessoa que nunca me encaixei muito em várias coisas. Eu toco no rolê de techno, mas eu não toco techno. Eu toco no rolê de funk, mas eu não toco funk. Agora eu também toco, às vezes, numa cena tribal. Tento fazer um set um pouco mais pro tribal. Eu sigo a linha de ritmos afrolatinos. Eu me encaixo nesse rolê de techno, me encaixo no rolê do funk, me encaixo no rolê de tribal, mas a minha linha vai ser baseada nesses ritmos aqui. 

Mas voltando ao assunto! É uma confirmação que eu tive que realmente eu tô indo para um caminho, e que é um caminho mais difícil, né? Porque a gente sabe que, se eu quisesse ganhar dinheiro, poderia escolher tocar outras coisas – mas, não. Eu quero fazer esse babado específico, que eu sei que eu vou ficar nichada. Ao mesmo tempo, vou criar um público fiel, vou criar uma galera… Ah, isso é a cara da Clementaum, esse som é Clementaum.

Voltando para o Primavera Sound, você tem alguma história de bastidores que aconteceu que você pode compartilhar com a gente? Algo inesperado ou engraçado que aconteceu antes, durante ou depois. Inclusive, a sua bolsinha virou um sucesso! [risos]

Menina, eu uso bolsa faz um tempo! Em 2019, tem foto minha tocando com bolsa. É uma bolsa pequena, eu pego e esqueço. Só que eu já fui roubada duas vezes, e uma dessas vezes, eu tava tocando. Deixei as minhas coisas na mesa do DJ enquanto eu tocava e roubaram meu celular.

Mas, deixa eu ver, uma coisa bem de bastidor… É que foi tão corrido, por exemplo, no Primavera Sound mesmo eu não consegui conhecer muita gente. Conheci o Safety Trance, que é um produtor que eu sou muito fã, inclusive que eu saiba, a primeira música minha que tocou no Boiler Room, foi ele que tocou. Era um mashup de SOPHIE com o MC PIPOKINHA. É um mashup meu bem bombadinho, assim. E ele tocou no Boiler Room, quase morri.

Você também é residente da Rinse FM, uma rádio de Londres. Como surgiu essa oportunidade e como rolou tudo isso? 

Juro para você que eu sempre sonhei em ser residente de uma rádio. Tanto faz a rádio. Queria ter um programa numa rádio para poder gravar mixes e principalmente convidar pessoas. Você incentiva as pessoas também – acho que esse é o meu propósito. Recebi esse convite da Rinse ano passado, e é esse o conceito. No meu programa, eu sempre trago convidades e com o foco em pessoas racializadas, principalmente da América Latina. É uma forma da gente estar se movimentando. 

Você já colaborou com Pabllo Vittar, e em seu mais recente single, “PASSAÇÃUM (ÉoQquerida?)”, com a Karol Conká. Como foram essas parcerias?

Eu fiz o remix de “A Meia Noite”, do álbum After, da Pabllo, e acho que foi das top coisas da minha carreira, com certeza. Isso é uma das coisas que mudou a minha vida. Desde que fiz esse remix, ganhei muita visibilidade como produtora musical, mesmo sendo algo que não é feito do zero. Se eu fosse fazer hoje em dia, faria diferente, confesso. Mas, ao mesmo tempo, não ousei muito porque era uma música que era muito famosa. Então eu também tava meio assim, não vou pirar tanto no remix também para as pessoas não acharem muito estranho.

Já a música com a Karol, olha só que loucura. Foi a grande realização de um sonho, porque eu sou muito fã da Karol Conká, desde quando tinha 16 anos, desde quando conheci ela em “Gandaia”. Fui ao show da Karol no lançamento do Batuk Freak… Acredito que foi nessa época. Se não foi, foi no primeiro show dela por aqui. 

Lembro que rolou numa boate em Curitiba e foi muito legal, muito incrível, foi a grande realização do meu sonho. Essa conexão quem fez foi o Gorky. Ele falou que eu precisava muito fazer uma música com a Karol Conká, e eu falei que seria meu sonho. Aí ele fez essa conexão, tanto que nessa música, ele mexeu e o Zebu também participou da produção musical. 

E como é para você, que conversa diretamente com o underground, respirar novos ares e produzir músicas para o mundo com mais visibilidade e alcance?

É uma vontade que eu tenho de produzir mais para artistas, para outros artistas, cantores. Mas eu acho que você tem que ter um tato para produzir para essa galera, acho que tem que ter um pouquinho de tato, realmente, de mainstream – umas sacadas, umas coisas assim, que também é sobre estudo. Não só estudo técnico, estudo de entender. Ah, isso aqui vai hitar, isso aqui não vai hitar. Mas, atualmente, o que eu faço é fazer uma coisa minha. Então, quem quiser fazer comigo, que é uma pessoa que a gente se identifica, a gente faz.

Li em uma entrevista que, desde a adolescência, você frequentava brechós e adorava fazer customizações para montar seus próprios looks. De que forma você acha que a moda influencia a sua arte? Ela tem algum papel no processo criativo da sua música? Por exemplo, você se inspira em determinadas estéticas ou tendências visuais na hora de compor e criar seus sets?

Olha, antigamente, eu batia mais a cabeça para montar looks. Desde quando começou a ficar mais corrida essa rotina de show, eu falo que eu tenho os meus starter packs. Então, o look da Clementaum vai ser salto alto, ou vai ser bota, ou vai ser sandália. Sempre vai ter uma bolsinha e sempre vai ter ou uma saia curta ou um top ou um vestido curto. Eu tenho um guarda-roupa que é só look de show. Inclusive, eu faço assim: de dia, eu sou crente evangélica. 

Aí a Gabi vem, domina!

A dona Gabi usa saia longa, precisa ir ao banco. Eu só uso vestido longo, crente, assim, bem evangélica. Aí, à noite, é piriguete. Então, daí eu já monto o starter pack, que é, tipo, eu gosto de brilho, eu gosto de cor, mas vai ser sempre a bolsinha e o salto, uma saia curta, é isso.

Agora para a gente finalizar essa conversa, se você pudesse colaborar com qualquer artista, vivo ou morto, quem seria e por quê?

Eu não sei como seria isso, se daria certo, mas nem que fosse vocais, sei lá, do Bebeto. Sou muito fã de Bebeto. Acordo de manhã e coloco. Nossa, gente, Alcione. Mas dessa galera mais nova do Brasil. Tem tanta gente nova que eu amo. Mas a primeira, que eu não tenho nada com ela, eu queria muito fazer é a Urias, sem dúvidas. Eu acho que tipo assim, Azealia Banks e a M.I.A, óbvio, as canceladas que eu mais amo! [risos] Tem a Tokischa, eu sou muito fã dela, a Bad Gyal também. Ah, tem a Anitta, Irmãs de Pau, Chencho Corleone. Enfim, são vários. 

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ARTISTA: Clementaum