Com curiosa e coesa despretensão, a banda Exclusive Os Cabides bebe da psicodelia para criar figuras, cenários e piadas internas que são correspondidas pelas diversas contradições da vida jovem adulta. “Eu achava que esse ‘mundinho’ que temos nas músicas fosse algo que existia só na minha cabeça, mas as pessoas imaginam coisas parecidas e acaba ganhando sentido, mesmo não sendo esse o ponto — ter sentido”, elabora o vocalista e guitarrista João Paulo Pretto. Em seu segundo álbum, Coisas Estranhas (distribuição da Tratore), a banda de Florianópolis se vê num momento especial desse início de carreira, com a identidade do grupo sintonizada às descobertas e à identificação do público. “Fazer combinações inusitadas, ver o que de novo sai disso… É o que a gente busca quando tá fazendo música”, reflete o guitarrista Eduardo (Duds) Possa.
A partir de diferentes leituras do indie rock, do psicodelismo Lo-Fi aos sintetizadores do pop rock oitentista, o material conta com 10 músicas tão imprevisíveis e divertidas quanto o título sugere. As coisas estranhas que formam o som da Exclusive Os Cabides vêm de The Flaming Lips, mas também de Yard Act e Talking Heads. “A gente não tem uma direção específica, algo que a gente busque ser, é mais a junção de cada um”, diz a baterista Carolina Werutsky, sobre a definição do som da banda.
A colaboração e a performance compartilhada não são apenas um movimento espontâneo, como também o modelo que a banda seguiu para a gravação do álbum. “Tocamos todo mundo junto, o que nos fez alinhar as coisas desde o começo, porque se um instrumento errasse, começávamos de novo, e esse processo foi moldando como fomos tocando”, relembra Duds. De forma engenhosa, enérgica e nada protocolar, o álbum combina riffs penetrantes, puxados para refrãos cheios e entoados com todo pulmão. As faixas iniciais, “Coisas Estranhas” e “AAAAAAAAA”, trazem essa colisão e continuidade de melodias rasgadas, mas envoltas em vocais de canção pop — em meio a uma distorção texturizada, com pegada oitentista, de marcação do backbeat nas batidas. Se o som é direto, a imaginação é o que embala as letras. Na segunda música do trabalho, a sequência de letras A do título expressa bem a sensação de estar correndo (ou parado) em relação ao tempo, nunca conseguindo planejar como as coisas têm de ser. “Essa música é um exemplo de como a gente gosta de colocar as coisas. O final, onde a letra é ‘como é que eu vou saber se eu vou usar óculos pra ler?’, é um jeito diferente de ilustrar como é pensar no futuro”, diz Eduardo.
“É claro que a gente pensa na reação das pessoas [ao compor], mas não como um fim. Ser mais pop ou psicodélico ou estranho – é só como a gente estava se sentindo naquele momento”
Reimaginar como descrever o que está a sua volta é uma ação não intencional – mas muito utilizada – da banda catarinense no entendimento e criação do álbum em estúdio. Depois de uma mobilização junto dos fãs, a banda abriu para financiamento coletivo o processo de produção e gravação de Coisas Estranhas. A ação teve uma reação, que, por mais que esperada, surpreendeu os músicos. “Foi um momento que não só nos ajudou, mas nos mostrou o quanto as pessoas gostam da gente”, conta o guitarrista Eduardo. Gravado, mixado e masterizado por Paulo Costa Franco no estúdio ouié, na Praia da Armação, em Florianópolis, o álbum contou participações especiais no arranjo, com instrumentos como trompete (Paulo Lahude Costa Franco), piano e sintetizadores (Ana Nasario) e rabeca (Marcelo Santos Portela). “Ao trabalharmos com as participações, o Paulo coordenou muito bem, teve muita troca de experiências e visão de música”, pondera João Paulo, principal compositor da banda. Uma vez no estúdio, ao mesmo tempo em que gravar ao vivo trouxe sincronia para as composições, o modelo de gravação também teve seus desafios, como uma corrida contra o tempo frente aos recursos disponíveis. “Mais do que legal, foi necessário. Não conseguiríamos gravar o disco sem (o financiamento). Ponto.”, contextualiza Carolina. Ao longo das gravações, a tensão de fazer valer o tempo em estúdio não foi uma distração, mas sim o combustível criativo que impulsionou a cumplicidade da banda ao fim do processo. “Ver a dedicação de todo mundo, o quanto cada um se doou. Teve gente chorando no estúdio ouvindo as músicas finalizadas. É incrível a realização que tem sido pra gente ver esse álbum no mundo”, complementa a baterista.
“Ver a dedicação de todo mundo, o quanto cada um se doou. Teve gente chorando no estúdio ouvindo as músicas finalizadas. É incrível a realização que tem sido pra gente ver esse álbum no mundo”
Falando em sentimento, o álbum tem momentos em que as letras lúdicas e imaginativas em encontro com o rock solar do grupo trazem sensações nostálgicas, como se fossem a trilha sonora de uma viagem de férias que fica para sempre na sua memória. Ou como uma conversa com um amigo do bairro que você não via há muito tempo, mas que com poucas palavras faz surgir a familiaridade. “O estúdio foi incrível, porque as pessoas traziam uma visão de fora para coisas em que estávamos muito imersos, sem conseguir pegar as nuances. Além da colaboração, todo mundo falava muito sobre música”, relembra a Carolina. O ambiente foi devidamente registrado na quinta música do trabalho, “Música Para Achar Bruxa”, que num indie rock barroco, à la Arcade Fire, traz a vista para o mar como a busca por um respiro. Um dos destaques do repertório, a faixa se sobressai pela progressão folk, o ritmo de balada, e um arranjo levemente sinfônico. E quase ficou de fora do álbum, por parecer “sombria demais” num primeiro momento. “Nosso amigo Marcelo Portela (rabeca e percussão) que transformou a música de uma forma mágica. Agora ela traduz muito bem o Sul da Ilha de Florianópolis”, conta João Paulo.
Em seu disco de estreia, Roubaram Tudo (2020), o quinteto, completo por Antônio dos Anjos (voz e percussão) e Jean Lucas (baixo), soa mais visceral, explorando algumas variações do garage rock em guitarras que flertam com o pós-punk. Agora, a banda teve novos recursos e equipamentos analógicos (como o microfone de fita), para trabalhar texturas que tangenciam as produções noventistas Lo-Fi, de nomes como Daniel Johnston. Só que diferente do cantor-compositor e músico americano, os tons da paleta sonora da Exclusive Os Cabides são mais coloridos, com pontes e linhas de baixo pontuadas em escalas maiores — característica harmônica de clássicos do pop psicodélico dos anos 1960, de Beatles a Buffalo Springfield. A explosão aliada à sensibilidade pop é como um pacto dos integrantes pela busca por algo desafiador e novo – sem que isso se torne a ânsia por uma etiqueta estética. “Hoje em dia, tudo pode ser psicodélico. Basta sair um pouco do usual que fica sujeito a ser visto assim. Mas não vejo nosso som dessa forma. A gente gosta de partir de combinações que não são óbvias pra gente”, defende João Paulo.
Mesmo com detalhes que abrilhantam a produção das músicas, com diferentes licks, viradas e ganchos de subgêneros do rock psicodélico, a banda parece estar mais confortável com a definição sarcástica do título do álbum — uma junção espontânea, que é melhor explicada como um repentino desvio do usual. “As bandas que se definem ou são vistas como psicodélicas atualmente têm um padrão, e não acho que nos encaixamos nesse padrão meio rígido. Mas originalmente, na nossa banda, sempre teve uma vontade de buscar algo novo, que faça sentido pra gente como algo diferente”, explica Duds.
Talvez a sensação de se tratar de uma banda psicodélica venha das partes mais cantantes do disco, consequentemente as que mais ficam na memória. Ainda assim, é verdade que os backing vocals, ao invés da textura densa dos anos 1960, contam com sobreposições despretensiosas. Em músicas como “Pilha Eletrônica” e “Lagartixa Tropical”, os refrãos, mesmo que com linhas vocais melodiosamente memoráveis, têm sua identidade na ambientação de encontro de amigos cantando um hit da adolescência, fazendo as músicas soarem como clássicos instantâneos. “A gente escuta muita coisa, e sim, algumas dessas acabam entrando nas músicas, mas nada que nos dite a forma de tocar”, explica Duds, enquanto mostra os discos de vinil que estava escutando — Azimüth (autointitulado, de 1975), Casa de Rock (Casa das Máquinas, de 1976), Angela Ro Ro (autointitulado, de 1979), Contos da Lua (Beto Guedes, de 1981) e Songs From The Big Chair (Tears For Fears, de 1985). Instigada pela riqueza percussiva da MPB dos anos 1970 e o pop rock dos anos 1980, a Exclusive Os Cabides entrega um trabalho que não cai na previsível repetição de referências consagradas. Ao invés disso, a banda catarinense abrilhanta os 31 minutos de forma autêntica, acenando a diferentes nomes atuais que “brincam” com as mesmas perspectivas pop do psicodelismo, como o glam rock do The Lemon Twigs, ou o folk grooveado de Kevin Morby.
“Hoje em dia, tudo pode ser psicodélico. Basta sair um pouco do usual que fica sujeito a ser visto assim. Mas não vejo nosso som dessa forma. A gente gosta de partir de combinações que não são óbvias pra gente”
Essencialmente uma banda que pensa música de forma colaborativa, partindo da experiência da performance, a natureza enérgica e imprevisível do quinteto é também um motivo natural para o desprendimento de conceitos como fama e sucesso comercial. “É claro que a gente pensa na reação das pessoas (ao compor), mas não como um fim, sabe? Ser mais pop, ou psicodélico, ou estranho, é só como a gente estava se sentindo naquele momento”, conta João Paulo. Apesar de aparentemente idealizado, o universo fantástico das letras de Coisas Estranhas não é algo metafórico ou simbólico, mas sim uma junção de elementos lúdicos, de palavras curiosamente interligadas e provocativas entre si — e o sentido está nas subjetividades. “Eu comecei a escrever desse jeito, e achei massa. Então, eu só continuei fazendo o que eu já fazia. Às vezes eu faço por querer, tipo, — ah vou fazer uma música de amor, mas não vou fazer ela tão brega. É só a vontade de querer falar sobre as mesmas coisas sem soar repetitivo”, infere João Paulo.
Com jogos de palavras e humor relacionável, a Exclusive Os Cabides tem como aspecto mais singular não um mistério ou um engima, mas algo orgânico e explícito desde o primeiro segundo do álbum — o prazer de tocar e viver música em conjunto, com seus amigos. “Tenho um grande prazer no dia a dia de fazer parte de uma banda, que é o seguinte: eu não canto, então fico de lado no palco, vendo a galera e como cada um tá no seu lugar tocando. E é uma sensação muito prazerosa, de ver no mesmo espaço seus amigos e pessoas que você não conhece cantando e pulando com algo que você fez. É algo muito prazeroso”, resume Eduardo.