Ezra Collective celebra o hoje em seu segundo álbum

Femi Koleoso fala sobre o excelente “Where I’m Meant to Be” – que, para ele, tem “cara de primeiro disco”; “O mundo mudou tanto entre os dois álbuns, que eles parecem dois projetos isolados”

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Fotos: Aliyah Otchere

Femi Koleoso é um cara de papo fácil, sorriso largo e musicalidade inerente à sua personalidade. Essas características certamente estão presentes em cada um de seus trabalhos musicais, seja ao acompanhar o icônico Gorillaz (primeiro como DJ e, agora, baterista) e Jorja Smith nos shows, ou ao integrar o sublime Ezra Collective da bateria à produção.

Logo no início da chamada por Zoom, o músico britânico, de ascendência nigeriana, soube que eu era de São Paulo e imediatamente mandou um “Vai, Corinthians”. “Eu amo essa cidade, é meu lugar favorito do mundo”, disse ele, emendando com lembranças de feijoadas, Avenida Paulista aos domingos e saudades dos amigos que moram aqui.

O grau de pessoalidade que Femi trouxe para a conversa desde os cumprimentos iniciais combinou perfeitamente com as perguntas preparadas para a entrevista, todas baseadas, não por acaso, na resenha de Where I’m Meant to Be, segundo e mais recente álbum de sua banda.

 

A base é no jazz, mas há de hip hop a afrobeat no meio do seu som. Vocês tentam entender, ou decidir, o tipo de banda que Ezra Collective deve ser, ou a identidade aparece organicamente?

Acho que nós queremos ser uma banda honesta. Queremos ser honestos em relação a de onde viemos, ao que sentimos e ao que pensamos. Eu quero que isso esteja presente na música –  o que quer que isso signifique, porque tudo muda com o tempo. Eu não quero afirmar hoje que queremos ser a melhor banda de jazz do mundo para, daqui cinco anos, só querer saber de samba, de tanto que eu gosto de curtir em São Paulo. Então, só quero ser honesto. Se eu curto o que vivi em SP, quero que minha música carregue isso. Se me sinto preso em Londres, quero que a música seja assim também.

Como foi saber o que vocês queriam para um segundo álbum? Foi diferente da experiência de realizar um primeiro trabalho?

Se nós tivéssemos um tempo “normal” entre o primeiro e o segundo álbum, eu teria pensado muito mais no que queria fazer. Mas, por causa da pandemia, tudo foi interrompido. Para mim, o segundo disco tem cara de primeiro, porque eu fiz tudo em um território muito desconhecido. Não estávamos viajando, não estávamos tocando [ao vivo], estávamos só em casa. Por isso parecia que estávamos compondo o primeiro álbum de novo, se é que isso faz sentido. O mundo mudou tanto entre os dois álbuns, que eles parecem dois projetos isolados. O próximo disco que fizermos, depois deste, deve ter aquela sensação de um segundo disco, de continuidade.

“Queremos ser uma banda honesta em relação a de onde viemos, ao que sentimos e ao que pensamos. Eu quero que isso esteja presente na música – o que quer que isso signifique, porque tudo muda com o tempo”

Por falar na pandemia, vocês afirmam que Where I’m Meant to Be é uma celebração da vida. Qual a importância para você de poder comemorar estar vivo?

A pandemia me ensinou que o amanhã não é uma promessa. Então, você tem que aproveitar o hoje ao máximo. E isso, para mim, é imperativo na música que tocamos, na vida que eu quero viver, etc. Eu não dava o devido valor, sabe? Quando terminei os shows de 2019, pensei que em 2020 faria uma nova turnê, mas isso não aconteceu. Você tem que fazer o dia de hoje valer a pena. Cada conversa conta, cada vez que eu paro para tocar bateria, também. Entende?

Como você entende que a música pode ser um bom meio para espalhar uma mensagem positiva?

Acho que música é aquilo que todos temos em comum, como humanos. Por exemplo, uma boa linha de baixo faz qualquer pessoa sorrir, te causa alguma coisa. Você pode usar a música para quebrar qualquer barreira que se pode ter. Acredito neste deus e você, naquele deus, ou eu acredito neste político e você, naquele outro. Mas nós dois concordamos que aquela linha de baixo é ótima. Acho que o poder da música está aí. Você pode usar a música para reduzir nossas diferenças… Eu amo olhar para o nosso público nos shows e ver que tem gente pobre, gente rica, jovens, velhos, héteros, gays, homens, mulheres… Tudo o que eles querem é escutar nosso som. Isso, para mim, é forte.

Como vocês souberam quem estaria com vocês no disco? Sampa the Great, Nao…

Eu não sabia. Nós estávamos criando músicas novas e pensamos em quais dos nossos amigos ficariam bem naquelas faixas. Só isso. Tinha uma música que ficou super bacana, com um sampler de Fela Kuti, também uma influência de House da África do Sul, era meio hip hop, mas menos Jay-Z e mais Lauryn Hill. Se você unir tudo isso, dá Sampa the Great. E, pela graça de Deus   , eu tinha o número dela. Foi assim que aconteceu com todas as participações.

Isso responde o que eu ia perguntar em seguida. Vocês, então, não compuseram as músicas com essas pessoas em mente, só fizeram as composições e, depois, foram atrás dos convites.

Sim. Você pode ter essa intenção, a de compor uma música específica para um vocal incrível. Mas quem será essa pessoa, a gente só descobre depois, sabe? Aí, na hora que escuta os vocais gravados, você pensa: Era isso, ficou perfeito.

Na resenha do álbum, escrevi que a maneira com que os vocais dos convidados são usados foi dentro da mentalidade mais clássica do jazz. Você tem um timbre ali, aí pensa como ele pode ser usado dentro dessa composição. Foi esse o caso?

Sim, foi exatamente isso. Eu não consigo enxergar as vozes de uma maneira diferente de um saxofone ou um trompete. Tudo é instrumento para mim, e você precisa ver como encaixar com o restante da orquestra. Então, sim, você está certo.

“Acho que música é aquilo que todos temos em comum, como humanos. Uma boa linha de baixo faz qualquer pessoa sorrir. Você pode usar a música para quebrar qualquer barreira que se pode ter. Acredito neste deus e você, naquele deus, ou eu acredito neste político e você, naquele outro. Mas nós dois concordamos que aquela linha de baixo é ótima. O poder da música está aí”

Dito isso, eu adoraria ouvir de você o que esses convidados específicos acresceram ao disco, na sua perspectiva, em termos de identidade, ou do repertório de cada um.

Acho que Sampa trouxe uma vibe e um espírito africano ao disco. Começar o álbum desse jeito, com aquela agressividade… Ela trouxe uma dança e uma agressividade que eu achei lindo. Kojey Radical trouxe o som dos africanos de Londres, inspirados por Fela Kuti. Ele articulou isso com sua voz do mesmo jeito que fizemos com os instrumentos. Emili Sandé, para mim, trouxe maturidade para o disco. Ela trouxe experiência de uma maneira muito bonita. Ela fez com que Ezra Collective parecesse uma orquestra, sabe? Ela teve uma presença muito marcante no álbum. E Naomi (Nao), acho que ela nos deu algo similar, ela soprou vida à letra de uma maneira muito especial. Ela às vezes me lembra uma flauta. Ela tem um registro bastante agudo, e uma voz delicada que nunca se impõe em cima dos outros timbres, mas repousa sobre eles. Ela fez com que nós tocássemos de um jeito mais suave do que costumamos. Todas essas participações fizeram com que o disco tivesse uma “jornada”, ao invés das músicas serem todas muito parecidas.

Outro aspecto que para mim é evidente em Where I’m Meant to Be é que a obra mostra Ezra Collective como um grupo de produtores, sendo um trabalho bastante “de estúdio”, diferente de outros trabalhos de jazz que têm uma cara de “jam session gravada”. Quando vocês souberam que esta seria a cara do disco? Foi só por conta da pandemia e do isolamento, ou houve uma intenção estética?

Acho que foi uma evolução natural que veio com nossa experiência como músicos. Toda vez que entramos no estúdio com alguém, aprendemos algum truque que pudemos trazer para Ezra Collective. Um determinado trabalho ensinou alguém a usar a mesa de som, aí um outro me fez me apaixonar por sintetizadores, por exemplo. Para este disco, James [Mollison] usou um pedal no saxofone. Tudo isso contribuiu para a experiência, e toda vez que entramos no estúdio aprendemos um pouco mais. Para Chapter 7 (2016), nosso primeiro EP, nós sentamos em um círculo, tocamos as músicas e gravamos. Não houve nenhuma pós-produção. Já em Juan Pablo: The Philosopher (2018), foi a primeira vez que fizemos overdubs, porque eu toquei bateria e percussão no disco, e não dá pra tocar os dois ao mesmo tempo. Eu me apaixonei por esses aprendizados. E cada experiência dessas nos capacitou a produzir esse disco do começo ao fim.

E como esse processo mais intenso de estúdio impactou sua performance nos palcos?

Ah, essa pergunta é ótima. (Pausa) Eu vou poder responder isso melhor neste ano, depois de termos tocado mais essas músicas, porque várias dessas músicas… Na verdade, não. Quando tocamos o álbum no dia em que ele foi lançado, uma das coisas que impactaram foi que precisamos mudar muito da bateria. O que era mais livre e solto antes agora virou algo mais “toca assim porque é como está no disco”. E também nos fez pensar melhor em como queremos usar o saxofone e o trompete de uma maneira que eles crescessem no palco. Porque, nas gravações, fizemos muitos overdubs com eles, então parece que tem oito instrumentos de sopro, mas são só duas pessoas. Então, tivemos que pensar “como fazemos parecer que tem oito pessoas tocando?”. Tudo isso influenciou nosso show, mas ainda estamos pesquisando e descobrindo como as apresentações serão daqui para frente.

Fiquei pensando muito no título Where I’m Meant to Be. Refleti se ele se referia a uma fase – “é aqui que eu preciso estar agora” –, ou se ele se refere mais a uma questão de identidade…

(Interrompendo) Uau, quer saber? O título é vago de propósito, porque eu quero que as pessoas decidam o que ele significa para elas. Eu não vou te contar o que eu penso, porque a minha resposta não é a correta, é apenas a minha versão, e o que você acha é a sua versão, sabe? Porque pode sim ser sobre identidade – “eu era aquela pessoa no outro dia, mas este é quem eu sou hoje” –, ou pode ser sobre diferentes estágios da vida, porque ele foi composto durante uma pandemia e eu sentia que não deveria estar ali, porque eu queria estar em turnê. É vago de propósito. E essa é a beleza da música instrumental. A Love Supreme, de John Coltrane, o que isso significa? Ninguém sabe exatamente. O que você acha que significa é diferente do que eu acho, porque não há letras para guiar nosso pensamento. Tudo o que temos é a beleza daqueles arranjos, sabe? Para mim, essa é a vibe.

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Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.