Faroeste Caboclo – Além da Canção e do Videoclipe

Canção épica do Legião Urbana ganha versão cinematográfica muito bem adaptada e com brilho próprio

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Há cerca de trinta anos que lidamos com a possibilidade de Faroeste Caboclo, sucesso da Legião Urbana, gravado em 1987 (e composto em 1979) se transformar em filme. Desde as primeiras audições da canção, lá na “década perdida”, era possível perceber que Renato Russo havia composto um épico, uma história totalmente atípica, cinematográfica, algo até hoje distinto da produção do rock nacional oitentista.

Após idas e vindas, finalmente a epopéia de João de Santo Cristo é abraçada pela tela grande e o resultado é surpreendente e muito maior que um mero “videoclipe”. Os fãs mais xiitas da Legião Urbana vão reclamar por conta das adaptações na história narrada pela letra da canção (todas bem sucedidas e capazes de conferir fluência à narrativa) e bater o pé por conta de algumas omissões. Neste ponto, talvez o único fato que vai contra o resultado final, eles talvez estejam certos, sobretudo em relação a uma hipotética tentativa da ditadura militar em aliciar João para “botar bomba em banca de jornal ou em colégio de criança” e “proteger general de dez estrelas, que fica atrás da mesa com o cu na mão”. O caminho encontrado por Rene Sampaio, diretor estreante compensa as lacunas e oferece um belo filme de vingança, morte e redenção.

João (Fabricio Boliveira) nunca teve vida fácil e já avisa no primeiro minuto de filme que já nasceu com dívidas. Como os anti-heróis clássicos, ele vai atrás da quitação desses débitos e, bem cedo, já experimenta dores intensas de perda e punição. Ao chegar em Brasília, vindo do interior baiano, vai procurar seu primo Pablo (o excelente ator uruguaio César Troncoso), traficante de drogas, que tem certa influência nas cidades-satélite da capital federal. Após confirmarem o parentesco, os dois se tornam amigos e passam a trabalhar juntos. Mesmo castigado pela vida, João tem lampejos que lhe dizem para escolher o caminho do bem, no caso, tornar-se carpinteiro mas, por conta das circunstâncias, vai para o lado negro da força, servindo como avião para levar droga vendida por Pablo para clientes de Brasília. Num episódio mal sucedido, João conhece Maria Lúcia (Isis Valverde, linda como sempre, estreiando no cinema), filha de um senador (Marcos Paulo em seu último papel), que vive só e consumindo grande quantidade de drogas, enquanto tenta escapar do assédio de Jeremias (Felipe Abib), jovem rico e também traficante.

Outro grande acerto do filme – e algo que a canção nunca deixa 100% claro – é ambientar com perfeição a trama no mesmo período em que Russo está compondo suas primeiras músicas, ou seja, na Brasília da virada dos anos 70/80, com respeito total a elementos de cena e trilha sonora. O roteiro de Marcos Bernstein e Victor Atherino revela aspectos humanos e sensacionais de personagens como Pablo, tornando-o uma espécie de Michael Corleone sulamericano fora de lugar, e Maria Lúcia, quase uma junkie sem perspectivas em crise com o pai, além de inserir a figura de Marco Aurélio, policial corrupto, que atua em parceria com Jeremias.

O fim do filme é de conhecimento público mas, até lá, o espectador terá surpresas aqui e ali e esperará até o fim da execução da música, que surge logo após a última cena. Tudo bem que a caracterização cafajeste anos 70 deixou Jeremias muito parecido com os integrantes de Hermes e Renato, mas este é o único – e pequeno – problema de Faroeste Caboclo, um filme com final triste, cheio de anti-heróis, ambientado numa Brasília sem lei, tomada pelo poder informal de traficantes e policiais corruptos, trafegando nos subterrâneos do poder da ditadura militar. Rene Sampaio fez um filme do qual Renato Russo ficaria orgulhoso e, maior qualidade de todas: capaz de existir sem a canção. Seu Faroeste Caboclo tem brilho próprio.

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MARCADORES: Filme

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.