“Esse é o trabalho social. A música que muda a atitude das pessoas, que entra na mente”. O trecho de uma fala de KL Jay, que introduz a faixa “Obrigado Mainstrem”, define não apenas o trabalho dos Racionais, mas a carreira de Febem. Com rimas afiadas e ideias sagazes e incisivas, o rapper se renova de forma contagiante e acolhedora no disco ABAIXO DO RADAR, com produção de CESRV e lançado três anos após Jovem OG.
Produzido entre pausas das turnês dos artistas que além dos trabalhos individuais tocam ao lado de Fleezus o projeto Brime, ABAIXO DO RADAR chega como um disco de responsabilidade. “Esse disco teve muito de ter sido uma obrigação, mas, no meio dele, teve milhares de obrigações para serem feitas e o processo foi pausado várias vezes. […] Diria que ele é um disco de responsabilidade, não deu para parar e só fazer um disco. Tinha que fazer disco, família, trabalho, viver, bloqueio criativo e todos os problemas que o ser humano tem no meio de ser um artista. É o disco que tentei transparecer a forma mais humana possível do artista”, reflete Febem.
Febem chafurda traumas, inseguranças e medos de forma transparente – como em “Super Hip-hop” e “Mais Um Dia” – e justamente pela coragem de encarar a si próprio, além de reconhecer as vitórias, ilumina novos caminhos daqui para frente. “Me mostrar vulnerável foi difícil. Fui criado na periferia, preto, tá ligado? Infância da quebrada. Várias vezes já ouviu que ser vulnerável era coisa de fraco, frases homofóbicas para quem era vulnerável. Mas com a maturidade da vida, você aprende que coitadas das pessoas que pensam assim, irmão. Se a gente tivesse informação direta para todo mundo seria bem melhor, porque às vezes a pessoa pensa assim porque ela teve que sobreviver”.
Como ele canta em “Mais Um Dia” (“Aqui não é Hollywood, mas tem um filme em cada quadra: ação, ficção, comédia, drama e aventura – terror nenhum, todo dia o dever chama e nada vai mudar se eu não levantar da cama”), Febem encarna diferentes personas ao longo do repertório – ele soa confiante, combativo, romântico e sensível e, ao mesmo tempo, resguarda uma essência inabalável. Questiona a indústria musical e os comportamentos sociais, ao passo que explora sua vida e personalidade, deixando claras visões e ideias – que entram na mente dos ouvintes.
Aqui, a dupla, indiscutivelmente uma dobradinha já clássica do rap nacional, destrincha ABAIXO DO RADAR, faixa por faixa.

“ABAIXO DO RADAR”
Febem: Ela é o índice desse livro que é o álbum, nela tem a autoafirmação do que é estar abaixo do radar. Ela tem como participação o Smile, que faz a oração do São Jorge para abrir os caminhos.
CESRV: Quando pensamos em começar um disco, foi uma das primeiras faixas, até por colocar o clima do álbum e dar a intenção do que ia vir nas próximas músicas. Quando fizemos esse beat, estávamos no Rio, voltamos para São Paulo, começamos a gravar e demos início no álbum. Parece que vai ser tranquila, mas, na verdade, ela é uma música bem pesada.
Febem: Tipo passar o fim de semana no Rio de Janeiro. Praia de manhã e de noite Pedra do Sal.
“SEM FERIR NINGUÉM”
Febem: É um rap de quem já foi incendiário e hoje está mais para bombeiro. Faz alusão a um assalto a banco bem-sucedido, só que com poesia e música. Sem ferir ninguém, a gente só quer o que é do patrão. “Abaixo do Radar” abre os caminhos e fala sobre a tese, “Sem Ferir Ninguém” são as ferramentas usadas para viver a tese.
“OBRIGADO MAINSTREAM”
Febem: Foi a primeira música a ficar pronta e veio num contexto fora do disco, por isso foi o single. Escrevi avulsa, sem ter o projeto todo em mente, o legal é que conseguimos amarrar tudo. Ela surgiu de um hiato em que eu não lançava coisa há muito tempo. Nisso, tinha certa cobrança corporativa e de público por eu não ter lançado nada e essa música chega como resposta para tudo isso. Sei que o corporativo e os algoritmos precisam, as pessoas querem ouvir mais, mas está tudo bem. Aguenta aí, não vou morrer se eu não lançar nada, estou canalizando as ideias. Esse disco teve muito de ter sido uma obrigação, mas, no meio dele, teve milhares de obrigações e o processo foi pausado várias vezes. Não foi igual ao outro, em que era pandemia e eu fui morar na casa do Cesinha por praticamente um mês e a gente fez o disco. Esse não. Diria que é um disco de responsabilidade, não deu para parar e só fazer um disco. Tinha que fazer disco, família, trabalho, viver, bloqueio criativo e todos os problemas que o ser humano tem no meio de ser um artista. É o disco que tentei transparecer a forma mais humana possível do artista, que é endeusado toda hora pelas pessoas. Não gosto disso, esse lance de ser endeusado, não curto isso. Se não tivessem endeusado Jesus Cristo, o planeta terra seria outra parada.
“NAVE”
CESRV: Essa entrou na primeira leva de músicas que fizemos. Já tínhamos algumas ideias para ela e rolou uma versão antiga que jogamos fora. O Luccas Carlos fez uma sessão com a gente e ficamos trocando ideia. Ele gravou em casa e depois mandou para gente, foi aí que demos continuidade no disco. Tínhamos a introdução, “Obrigado Mainstream” e “Nave”, até então essa seria a ordem.
Febem: A inspiração que tive para escrever “Nave” foi o Luccas Carlos. Ele me ligou e falou que comprou um carro, aí escrevi a parada e chamei ele. Eu e o Cesinha já tínhamos a pretensão de colocar um beat eletrônico e chegamos no Jersey, porque tínhamos como referência os games de corrida, como o Gran Turismo. E a música passa a ideia de superação, várias vezes na vida as pessoas colocam nossa vitória material como algo baixo. Só eles que têm dinheiro podem ter as coisas materiais e quando comemoramos alguma vitória material estamos ostentando. Nunca vi falarem que rico está ostentando, só pobre que ostenta. Sempre que eu estiver fazendo um disco vai ter alguma coisa relacionada a isso. Dessa vez a inspiração da música foi o Luccas Carlos e nada mais justo que ele estar comigo nessa.
“CHUCRO BUARQUE”
Febem: Falava com o Cesinha que um dia íamos fazer um EP de músicas românticas e ia chamar Chucro Buarque. Mas somos tão chucros, que deu para fazer uma música só, quem sabe um dia [risos]. Essa foi inspirada em uma vivência massa que tive. É muito bom estar apaixonado, mas às vezes é eterno enquanto dura. Quando tive a brisa de colocar o sample do NX Zero, o Cesinha falou que eu era muito doido, mas falei que como somos 30+, o NX Zero é da hora, é vanguarda, não é mais emo e o bagulho deve ser lembrado. Os caras são nossos brothers e piraram quando falamos que íamos usar a parada. Tenho vontade de fazer essas paradas mais vezes e gerar essas misturas.
“SUPER HIP-HOP”
Febem: Parece que foi uma trava que tive no meio do processo do álbum que não conseguia escrever mais nada. Foi necessário escrever essa para por o que estava me impedindo de seguir adiante. Fiquei com muita vergonha de ter lançado essa música, estou até hoje, mas ela está aí. Depois deu certo orgulho porque muita gente veio falar comigo sobre essa música, as músicas que eu mais recebi mensagens sobre foram “Chucro Buarque” e “Super Hip-Hop”. Está mais que na hora da gente procurar alguém para trocar ideia quando não se sente bem, nem que seja amigos e família. Mas não ficar guardando tudo porque uma hora a gente vira uma nuvem de frustração, não consegue viver e fica uma pessoa amarga. Nós já somos amargos de graça, imagina com os problemas na cabeça. Essa música é uma troca de ideia para quem está precisando.
CESRV: Esse beat foi construindo para passar essa atmosfera. Quando estamos no estúdio eu falo para o Febem rimar e vou construindo em cima. A música saiu até que rápido, depois que o Febem foi embora eu escutei ela sozinho e entendi que estamos fazendo um trampo bem mais sério que os outros.
Febem: Você me mandou mensagem depois, de madrugada. Cesinha tocou até guitarra, ele já foi guitarrista de banda há muito tempo e ele odeia que fala disso, ele odeia tocar guitarra. Ele até extraiu um bagulho que, no fundo, ele deve amar, que é uma guitarra, só que é um bagulho que ele odeia hoje em dia.
CESRV: A referência que estávamos usando tinha uma guitarra bem legal e eu tentei chegar mais ou menos nessa referência. Mas eu realmente evito usar guitarras nas músicas. Só em casos de construção de sample, nesse caso, estávamos construindo um sample e essa atmosfera da música.

“Está mais que na hora de a gente procurar alguém para trocar ideia quando não se sente bem, nem que seja amigos e família. Mas não ficar guardando tudo porque uma hora a gente vira uma nuvem de frustração, não consegue viver e fica uma pessoa amarga. Já somos amargos de graça, imagina com problemas na cabeça. Essa música é uma troca de ideia para quem está precisando” – Febem sobre “Super Hip-Hop”
“NOIS É ISSO AÍ”
Febem: Essa remete mais ao meu estilo dos trampos antigos. Dá uma bica na porta e quem tiver na frente vai tomar uma pá de soco. A entrada da música e o refrão eu já tinha desde o começo do álbum, só que em outro beat.
CESRV: A primeira versão está muito longe da que está agora, gravamos em um BPM mais acelerado, depois desaceleramos e regravamos o som. Esse som remete muito ao Running e às coisas antigas. No disco tem coisas novas e algumas são responsáveis por resgatar coisas que o Febem já fez, essa é uma delas.
Febem: Esse estilo de música e beat é nossa marca registrada. Quando eu o Cesinha faz música, chega nessa brisa. Talvez são as coisas que referenciamos de rap gringo, coisas que gostamos de ouvir mesmo de rap internacional. O BPM é próximo do footwork, que é um estilo de música eletrônica que o Cesinha produz e gosta muito de tocar também. Junta eu e o Cesinha em tipo um “super gêmeos ativar” e dá essas músicas aí.
CESRV: Música de festa com teor de revolta e com uma letra um pouco ácida.
“Música de festa com teor de revolta e com uma letra um pouco ácida” – CESRV sobre “Nois É Isso Aí”
“RELÓGIO”
Febem: Essa é A música que eu mais gosto do disco e talvez o beat que eu e o Cesinha fizemos juntos que eu mais gosto. senti que superamos tudo que já fizemos em tentar criar uma estética nova de batida. Gosto muito do refrão que escrevi, ele tem um segredo que eu nunca vou divulgar, senão vai acabar a magia, que eu e o Cesinha ficamos rindo durante horas. Gostei muito de ter feito essa música, ela surgiu da primeira pausa que fizemos. A última pausa já era uma pressão enorme de gravadora e de todo mundo falando os prazos, nisso fiz “Super Hip-Hop” e veio as outras de uma vez. Chegou nas últimas horas e virou um trabalho com hora marcada, mas era difícil escrever e lidar com prazos. Foi um processo difícil, esse disco tem muita emoção dentro dele. Altos e baixos de todo mundo que trabalhou nele, eu absorvi tudo isso. Esse disco tem absorção de tudo que passamos, não só eu, todo mundo que estava ao meu redor. Por isso ele tem o peso que tem.
CESRV: Depois de ter feito Brime, Running e outros projetos, provarmos para nós mesmos que conseguimos nos reinventar. Traz uma energia, uma energia de superação e uma energia de vontade. Nós amadurecemos fazendo música e tivemos um resultado bom, acho que o Febem estava tentando resumir esse sentimento e colocar em música e transformar em algo concreto.
Febem: O bagulho é gasolina mesmo, mano.

“Esse disco tem muita emoção dentro dele. Altos e baixos de todo mundo que trabalhou nele. Eu absorvi tudo isso. Tem absorção de tudo que passamos – não só eu, todo mundo que estava ao meu redor. Por isso ele tem o peso que tem” – Febem
“O DOBRO OU NADA”
Febem: Mais uma marca registrada do time. Só que cada ano que passa, essas músicas que são marcas registradas vão ficando com teor mais maduro. Elas continuam ácidas, mas elas amadurecem, são versões atualizadas do que a gente já fez. Ao mesmo tempo em que o disco é mais maduro e, vamos dizer, mais calmo no sentido da revolta, essa música lembra quem somos. O bagulho ainda é rap e a marretada vem. Do mesmo jeito que o aperto de mão vem de um lado, se der mancada, o murro já sobe do outro lado. Essa música reforça que o jogo não está ganho e continuamos aí, dobrando a aposta. Eu e o Cesinha no estúdio e na vida é sempre o dobro ou nada, não gostamos da zona de conforto. Tirando a hora do chope e do Corinthians, o estúdio também é um momento em que ficamos fortões.
CESRV: Por ser uma das últimas músicas que fizemos do álbum, já estávamos com essa energia de vitória. Essa música é bem autoafirmativa e cheia de autoestima.
“MAIS UM DIA”
Febem: Foi a música que senti que eu tinha que escrever para mim mesmo. Consequentemente, para quase todo mundo que ouviu o álbum e se identificou. Depois que passa a onda vem outra onda, então fica esperto e fica de pé. Tenho síndrome do pânico e tive várias crises no meio do processo desse álbum, todos esses caras me ajudaram a me lembrar que era só mais um dia. O César, Renato, Caíque, Fleezus. Essa música eu escrevi para mim mesmo, sabendo que ia ter muita gente que passa pela mesma coisa que eu e que precisava ouvir a mesma coisa que os meus amigos falaram; para eu me lembrar que era só mais um dia.
CESRV: Esse som tem a frase que eu mais gosto do disco que é o resumo: “Cabeça erguida para fazer o que ninguém fez”. E o disco fala muito sobre isso, essa música é um ótimo resumo. Melodicamente falando, ela é introspectiva e esperançosa. Musicalmente, estávamos muito inspirados em sons que curtimos de rap de L.A..
Febem: A estética de groove e as baterias que usamos lembra muito coisas que gostamos de consumir de Los Angeles e Detroit. Só que, por várias vezes, eu e Cesinha falávamos que os caras só falavam merda nas músicas, então construímos as nossas falando uns bagulhos da hora.