Fine Young Cannibals: Relançados e Redescobertos

Redescubra esse trio que, apesar de ser vítima do “one-hit-wonder”, compôs excelentes discos que valem a pena serem revistos

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Os anos 80 são pródigos na incidência de one-hit wonders. Várias bandas vieram e foram ao longo da década, às vezes passando totalmente despercebidas ou, no caso que vamos analisar agora, fazendo um sucesso mundial já no segundo disco e desaparecendo logo em seguida. Estamos falando dos Fine Young Cannibals.

O tal sucesso mundial foi She Drives Me Crazy, uma cançoneta pop’n’funk’n’soul, com instrumental oscilando entre o technopop e as levadas dançantes, devidamente pontuado pela voz marcante e rara de Roland Gift. Quem estava vivo no planeta Terra não conseguiu escapar do poder chicletudo da canção e o disco que a continha, The Raw And The Cooked, segundo da banda, alcançou o topo de todas as paradas de sucesso possíveis, inclusive no Brasil, batendo ponto nas rádios FM. Mas quem eram esses caras? E por que eles sumiram logo depois?

Muito antes do FYC, no início da década de 1980, havia uma banda inglesa muito querida dentro e fora dos domínios da Rainha. Seu nome era The Beat, ou, fora da Velha Ilha, The English Beat. Formada em Birmingham, em 1978, seus integrantes eram Rankin’ Roger (vocais), Dave Wakening (guitarra e vocais), Andy Cox (guitarra), David Steele (baixo) e Evert Moreton (bateria), além do velho saxofonista Saxa. A ideia do Beat era aproveitar a onda ska/two tone que varria o país e explorar as possibilidades das fusões entre rock e ritmos africanos e jamaicanos. Logo estavam abrindo shows para uma das grandes bandas da época, o Selecter e ganharam brilho próprio quando tiveram a ousadia de gravar uma versão para um clássico da Motown, Tears Of A Clown, de Smokey Robinson, em ritmo ska. Esse single antecipava o lançamento de seu primeiro disco, I Just Can’t Stop It, em 1980. Além da cover, o Beat cravaria outras duas canções no Top Ten inglês, Hands Off She’s Mine e Mirror In The Bathroom. Pouco depois, já em 1981, Best Friend também foi longe nas paradas, além de outra versão sensacional: Twist And Crawl, nada menos que Twist And Shout, devidamente adaptada para o ideário two tone.

A inspiração era tanta que, menos de um ano depois do primeiro trabalho, o Beat soltou Wha’ppen?, dando continuidade ao sucesso. A sonoridade alegre, cheia de metais, guitarrinhas envenenadas e vocais que oscilavam entre Jamaica e Inglaterra, faziam do Beat um preferido da casa. Wha’ppen era mais experimental que a estreia, mostrava vontade de flertar com o rock pós-punk e aprofundar a viagem pelos território inexplorados das conexões da diáspora musical. A experimentação continuou com o terceiro disco, lançado em 1982, Special Beat Service.

À medida que a onda ska/two tone ficava para trás, afetando formações como Madness, Selecter, Specials, entre outras, o Beat foi vitimado por mais um disco ousado e experimental. Mesmo que houvessem canções maravilhosas de sobra por aqui, caso de I Confess, Salvation She’s Going e Pato And Roger A Go Talk, o Beat foi perdendo a força até encerrar atividades em 1983. Apesar de parecer evidente que a banda já não rendia o mesmo, Steele e Cox não esperavam pelo fim das atividades e foram surpreendidos quando Rankin Roger e Dave Wakelin haviam formado uma nova banda, General Public. Sem banda e sem planos para o futuro, o ex-guitarrista e o ex-baixista do Beat queriam continuar na ativa e só tinham como objetivo encontrar um vocalista diferenciado.

Reza a lenda que cerca de 500 candidatos foram testados para a função, mas ela foi delegada a um desconhecido cantor de bar, encontrado por acaso numa noite qualquer. Roland Gift já havia feito teatro, tocava saxofone e pretendia ser famoso. O trio estava formado e o nome veio de um antigo filme dos anos 60. Contratado pela London Records, o Fine Young Canniballs estreiou em disco em 1985. A mistureba sonora ampliava o que o Beat havia feito, substituindo a experimentação e as incursões no jazz por groove funk puro e simples. O primeiro hit do disco, Johnny Come Home já vinha pontuado por guitarras sinuosas, um solo insuspeito de metais em brasa, bateria aerodinâmica (a cargo de Jenny Jones) e a presença do velho Saxa nos pianos e metais. Na produção, Robin Millar, que também pilotava os primeiros discos do Everything But The Girl. Além de Johnny, o FYC colocou outras duas canções nas paradas: Blue, que trazia vocais de apoio de Jimmy Sommerville, e uma cover maravilhosa para Suspicious Minds, grande sucesso de Elvis Presley. Mesmo sem sucesso fora da Inglaterra (o disco chegou a sair no Brasil), o FYC ainda estava por assinar sua obra de arte.

Em 1989 a banda retornou com um disco superlativo. The Raw And The Cooked vinha com a proposta de trazer um inventário pop de sons ingleses de todos os momentos da década. Talvez não exatamente isso, mas o resultado trazia acenos ao mod, ao jazz mais clássico, aos pianos boogie woogie, além de manter intactas as influências de soul e funk de antes. Com participação de gente como Jools Holland nos pianos e Jerry Harrison, dos Talking Heads, na guitarra, o FYC arrombou as paradas de sucesso com She Drives Me Crazy. Em seguida veio um hit menor, Good Thing e preferidas da casa, como I’m Not the Man I Used to Be e Tell Me What, que davam ideia da versatilidade e competência do trio.

No ano seguinte, ainda sob os efeitos do sucesso do segundo disco, a banda foi convidada para participar do tributo a Cole Porter, Red, Hot And Blue, com uma versão para Love For Sale. Esta foi a última canção que o trio gravaria até 1992, quando encerrou suas atividades por conta das aspirações cinematográficas de Gift. Em 1996, o trio se reuniu em estúdio para gravar uma nova canção, The Flame, para a coletânea The Finest.

Este pequeno capítulo da música pop oitentista foi devidamente reempacotado pela indústria fonográfica. A Rhino Records acabou de lançar os dois discos do Fine Young Cannibals em versões especiais duplas. Ao o disco homônimo de estreia foi adicionado um segundo volume, contendo os maravilhosos e datados remixes e extended versions da época, num exercício de nostalgia total. Essas versões eram raríssimas e, em pleno 1985, eram inalcançáveis para quem não morava na Inglaterra. Além dos remixes, a cover de Love For Sale também está presente. No caso de The Raw And The Cooked, outra profusão de remixes da aurora da house music, extended plays maravilhosos, oscilando entre o exagero e o sensacional e a inclusão de três pepitas de ouro: The Flame, a última canção registrada em estúdio pela banda em 1996, além de Trust e Take What I Can Get, duas canções de David Steele em parceria com o grande Lamont Dozier, dono de extensa folha de serviços prestados ao soul da Motown.

São dois belos e raros discos, completamente desvinculados da sonoridade que se fazia nos anos 80, mais voltados para o passado mas, ainda assim, cheios de charme e brilho próprios. Vale a pena conhecer e redescobrir o FYC.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.