Franz Ventura em mais de 88 teclas

Compositor, pianista e youtuber, o “Virtuoso de São João Del Rei” leva a música clássica a novos públicos com informação, teoria e bom humor

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Fotos: Divulgação

Compositor, pianista e youtuber. É esse combo de palavras que compõe a bio de Franz Ventura no Instagram. De São João Del Rei, Minas Gerais, o pianista de 30 anos é uma das poucas pessoas que eu e você vamos conhecer que se dedicam a estudar, compor e praticar música sacra e clássica, mantendo um canal com mais de 240 mil inscritos.

Ventura acumula milhões de visualizações com vídeos informativos e bem-humoradíssimos. “Eu já era assim”, ele diz. “A edição valoriza”. Em seu conteúdo, Franz testa pianos de silicone – e teclados do Sandy & Jr. –, critica sua versão adolescente (o “Franz Arrogante“), comenta – e incrementa – músicas de inscritos. Não existe assunto intocável, mesmo no tema um tanto intocável que é a música clássica.

Ele fala o que pensa – isso inclui até criticar Mozart.

“Mozart ficou grande porque o nome dele era legal pra caramba e as histórias são incríveis, muita curiosidade, muita polêmica. Ele era o Justin Bieber da época dele”, Franz brinca. “[Mas] o Mozart, além de quadrado, eu acho ele chocho. Mozart é uma máquina quadrada chocha de compor”.

Basta vê-lo falando para entender que, apesar do olhar no passado, Franz está absolutamente presente. É um comunicador, um professor que se dedica profundamente ao seu conteúdo, e reconhece o resultado disso tudo: “Muitos dos meus grandes feitos na internet são referência. Eu sou reconhecido como uma pessoa que despertou um gosto nas pessoas por coisas que elas não imaginavam”, afirma. Seus vídeos são usados em universidades; um mar de elogios domina os comentários, vindo de pessoas que se emocionam pela emoção de Franz. Ele é o seu “guia de bolso” para todos os compositores clássicos que você imaginar.

Mas tudo isso tem lá seu preço. Franz está ciente do privilégio que é viver 100% de música nesse país, mas entende que só o consegue por muito esforço em um universo que não é simples. Ele rapidamente começa a se descrever como uma pessoa obsessiva e estressada, que tem que se preocupar em criar conteúdo toda semana: se o artista é angustiado por natureza, que dirá o artista youtuber. No fim das contas, Franz é alguém que só queria passar o dia inteiro debruçado sobre o instrumento, manuseando tecla a tecla. Pianíssimo, fortíssimo.

“Eu tô sempre querendo, tô sempre criando, eu não paro de criar. A música nunca me deixa entediado. É sempre maravilhoso”, afirma.

“O piano, você morre e não aprende tudo. Não tem como saber tudo. São muitos compositores, músicas, maneiras de interpretar, técnicas de se expressar. Ele é a orquestra”

Ainda assim, nada disso parece necessariamente leve para ele. Se para alguém como João Donato o piano dá liberdade – “não é um trambolho pendurado no pescoço” –, para Franz, o instrumento é quase uma prisão. Mas o prende como um grande amor, a quem ele está comprometido dia e noite por escolha, monogamicamente.

Essa relação começou arrebatadora desde o primeiro dia: acompanhado da mãe e do irmão, Franz visitou uma professora de piano ainda adolescente (até então, para tentar se tornar membro de uma banda). Eis que a professora toca “Sonata ao Luar”, de Beethoven – compositor que, mais tarde, seria o grande ídolo de sua vida.

“Não tem nada imperfeito ali [em Beethoven]. Ele é alienígena”, Franz começa, com brilho nos olhos. “É extraordinário, inacreditável o que ele faz no arranjo, como ele escolhe o desenvolvimento. Ele tem jazz, ele tem rock… ele é muito louco. A ambientação que ele cria me mata, literalmente. Eu deito no chão quando escuto”.

“Beethoven é alienígena. Extraordinário, inacreditável. O que ele faz no arranjo, como ele escolhe o desenvolvimento. Ele tem jazz, tem rock, ele é muito louco. A ambientação que ele cria me mata, literalmente. Eu deito no chão quando escuto”

Tamanha foi a emoção de Franz ao encontrar a música de Beethoven que o que se sucedeu é quase lenda. Assumindo seu Transtorno Obsessivo-Compulsivo, ele mergulhou na sonata, ainda adolescente, sem Google ou tecnologia para buscar a partitura. Na semana seguinte, era capaz de reproduzir a música completa.

“Você não é normal”, respondeu a professora, imediatamente. O pianista ouviria variações dessa frase com tamanha frequência que, lá pelos 17 anos, já era conhecido como o “Virtuoso de São João Del Rei” – assim mesmo, sem rodeios. Daí o surgimento do “Franz Arrogante”, uma consequência inevitável na autoestima de um adolescente.

Prodígio? Virtuoso? Franz se entende como obstinado: a música fez com que ele parasse toda a sua vida em torno de cada notação. Não havia aula ou compromisso que batesse de frente com uma partitura. Ainda que tocasse como nenhum outro jovem da região, o piano nunca deixou de ser sua maior vontade. “O piano, você morre e não aprende tudo. Não tem como saber tudo. São muitos compositores, músicas, maneiras de interpretar, técnicas de se expressar. Ele é a orquestra”, diz.

E como bom músico, Franz se diz incapaz de ouvir música clássica sem estudá-la por completo: “sei de tudo que está acontecendo, cada compasso”. Mas, ao vê-lo como um estudioso de um assunto hermético como a música clássica, é de se esperar que ele não aprecie os meros mortais. Com tranquilidade, ele diz ouvir de tudo – da MPB ao sertanejo. Mas na tal “música popular”, o que mais o atrai é nada menos do que o rap feminino.

“O gênero que eu mais escuto no dia a dia, pra ficar fritando, que eu gosto mesmo de ouvir e me sinto envolvido, é hip hop, principalmente rap feminino.” Aqui, ele cita principalmente Doja Cat e Nicki Minaj. E continua: “Tem uma pegada rítmica muito envolvente pra mim. E a questão de como elas entregam a letra, com atitude…”.

Essa atração faz sentido: enquanto ouvinte, intérprete e compositor, o fascínio de Franz está na música que escapa da alegria utópica – seja o rap, a missa ou a sinfonia. Em suas composições, sobrepõem-se tensões e tragédias.

É difícil saber se ele tem um gosto pela melancolia ou a melancolia tem um gosto por ele. “Quando eu era mais novinho, vivia aqueles romances conturbados, as músicas eram maravilhosas. E tristezas, perdas. Ultimamente tá difícil de compor. Mas o processo é esse: viver intensamente as coisas”, reflete. “Eu sofri pra burro, nenhuma música que eu fiz eu tava feliz”.

Escondida sob a fachada piadista, existe uma angústia que ele me confessa pouco antes de anunciar aos fãs. Hoje, está em um vídeo chamado escondi uma doença crônica de vocês (“um clickbait honesto”, ele afirma). Perdendo os tímpanos ainda bebê, Franz tem hoje um ouvido médio totalmente exposto e uma otite média crônica bilateral. “Eu tenho há 30 anos essa questão. Por ser uma doença progressiva crônica, lá pelos 40 vou perder mais ainda. Já perdi 70% de um ouvido e 20% do outro”.

Aí, tudo se encaixa, suas dores e seus amores. Nas horas e horas descrevendo Beethoven, o que não sabíamos era que Franz se identificava com ele da forma mais íntima possível: nas mazelas. Mas, ao contrário de seu ídolo, Franz não é nem quer ser visto como alienígena – por mais interessantes que sejam sua história e suas paixões, ele é como todos nós. Ambicioso, mas vulnerável; talentoso, mas ansioso. Se por um lado ele tem milhares de fãs, por outro nunca se sente perfeitamente confortável, sempre preocupado com o próximo vídeo, mirando a próxima partitura ou o próximo aprendizado.

Franz é gente como a gente. Isto é, até ele se sentar ao piano.

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ARTISTA: Franz Ventura

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