A logística e o autoentendimento que cercam o lançamento de um disco de estreia podem resultar em um processo que diz mais sobre o meio do que sobre o fim. Para a banda QAMPO, essa relação foi o pano de fundo do material que forma Ao Espírito da Hora Passada — lançamento independente. Apesar de lançado em março desse ano, o disco traz músicas de diferentes momentos do quinteto, formado em 2015 em Olinda (PE). “Esse disco traz boa parte das composições desses anos todos, como um compilado inicial. Mesmo depois de um tempo a gente viu que algumas músicas antigas ainda faziam sentido, mesmo que numa estética diferente”, introduz o vocalista, compositor e guitarrista da banda, Rafael Zimmerle. Com um som que passeia entre os encontros geracionais do rock alternativo, a banda dialoga com a psicodelia do rock pernambucano dos anos 1970, o indie neo psicodélico nacional dos anos 2010 e o prog rock dos anos 1960. Longe de soar pretensioso, o combo entre a lisergia e o lúdico que marcam o som da QAMPO tem origem na identificação com o rock na adolescência. “Todo mundo na banda tem um background no rock clássico, no prog, é um lugar-comum para quem está aprendendo a tocar e compor”, contextualiza Zimmerle.
“Algo que queríamos [com o disco] era dar contexto em como essas referências clássicas conversam com a gente, de onde a gente veio. Isto é, um som brasileiro e diverso”
Em meio a essas concepções consagradas de canção pop, a banda encontrou na cultura local as referências que expandiram as possibilidades musicais que formam Ao Espírito da Hora Passada. “Algo que queríamos era dar contexto em como essas referências clássicas conversam com a gente, de onde a gente veio. Isto é, um som brasileiro e diverso”, reflete o vocalista. Na busca pela autenticidade, a banda teve Fábio Trummer como padrinho e produtor, que, à frente da banda Eddie no fim dos anos 1980, juntou punk, frevo, reggae e música eletrônica. O contato, feito através da mãe do baterista Pedro Laporte, foi providencial para juntar as pontas soltas das músicas que nunca tinham sido experimentadas em estúdio. “Fabinho foi importantíssimo pra gente, não só pela visão musical, mas no andamento das coisas. Antes, a gente nunca tinha estado num estúdio pra gravar”, relembra Pedro. Com as ambições alinhadas, a banda deu início às gravações no final de 2019 e enfrentou, durante a pandemia, contratempos que adiaram o processo de produção do álbum, mas que acabaram por contribuir para a identidade final do trabalho. “Esse tempo serviu para maturar algumas ideias, deixar as músicas respirarem um pouco, para ver se queríamos mexer em algo. Enfim, colocar em perspectiva o que tínhamos feito lá atrás”, pondera Rafael.
Se em um primeiro momento a ideia era assentar tudo que ocupava o imaginário criativo do som da banda, a execução trouxe mais possibilidades. Depois da pandemia, a banda que antes consistia nos amigos de colégio Rafael Zimmerle e Pedro Laporte, junto do guitarrista Pablo (Beró) Ferreira, ganhou a adição de Marco D’Almeida, no baixo, e Rafael Durão assumindo guitarra, violão, voz, pianos e synth. Com isso, grande parte das músicas, compostas no violão, foram incrementadas em arranjo. “Com maturidade de ensaio, eu e o Rafael (Zimmerle) fomos trocando demos em cima do que já tínhamos e as músicas foram pedindo um acréscimo de instrumentos, synth, percussão, samples, etc. Mas a base, que é a formação de acordes, veio da guitarra e do violão”, comenta Pablo.
O encontro entre o orgânico da canção e arranjos modais dá o tom do pluralismo musical que marca o álbum. Ao longo das nove músicas, entre fuzz e feedbacks, os riffs se desenrolam em um crescendo típico do rock dos anos 1960, que se mistura aos vocais sincopados e linhas de guitarra característicos do udigrudi — movimento pernambucano dos anos 1970 que se popularizou por meio de nomes como Ave Sangria. “A forma como a gente pensou as progressões tem muito das nossas primeiras influências, de rock dos anos 1960, como Jimi Hendrix. Mas também tem algumas referências nacionais como Paulo Rafael (Alceu Valença) e Ivinho (Ave Sangria)”, contextualiza o guitarrista Beró.
“Por mais pretensiosa que uma música soe, por misturar diferentes referências, o que importa é se foi feita genuinamente. Antes de tudo, fazemos uma música que gostamos de ouvir, com elementos que falam com a gente”
Complementando a parte sônica do álbum, as letras também partem de uma estética psicodélica, com projeções imagéticas, de cenários e figuras metafísicas. Acenando aos artifícios quase hipnóticos do prog rock, músicas como “Leão de Fogo, Galo de Briga” e “A Janela” contam com metáforas que tangenciam o sublime e o íntimo, de ambições generalistas como abraçar o mundo a desencontros amorosos. “Mesmo as músicas já estando prontas há um tempo, a gente queria trazer uma narrativa que conversasse com essa nossa massa sonora, com a sensação de viagem dos instrumentais”, adiciona Beró.
“A forma como a gente pensou as progressões tem muito das nossas primeiras influências, de rock dos anos 1960, como Jimi Hendrix. Mas também tem algumas referências nacionais como Paulo Rafael (Alceu Valença) e Ivinho (Ave Sangria)”
Essa dinâmica entre camadas circulares e exposições mais suite brilha na sequência de meio de álbum “Eucalipto” e “A Janela”. A primeira mescla melodias barrocas que remetem a Jethro Tull com vocais de prosa acenando a Alceu Valença; já a segunda, conta com dedilhados iridescentes que lembram progressões como a de “Dear Prudence”, dos Beatles, se abrindo em um refrão cheio com o coral da banda. “Por mais pretensiosa que uma música soe, por misturar diferentes referências, o que importa é se foi feita genuinamente. Antes de tudo, fazemos uma música que gostamos de ouvir, com elementos que falam com a gente”, define Rafael.
A zona de contato entre o abstrato do rock progressivo e a efervescência de referências psicodélicas da MPB foi algo trabalho em estúdio, mesmo ante os contratempos. Num primeiro momento, a banda, já sob produção de Fábio Trummer, teve como base o estúdio Fruta Pão Records, em Olinda. Já a retomada e a finalização das músicas só aconteceram no final de 2022, no Secreto Studio, na zona norte de Recife. Desde o começo do processo, a inexperiência da banda em estúdio foi um canal para aprimorar o caldeirão de ritmos que marca a autenticidade de Ao Espírito da Hora Passada. “Em ‘Eucalipto’, por exemplo, Fabinho (Trummer) e Homero Basílio (técnico de som no disco) foram muito importantes para moldar a música. Tínhamos uma ideia muito viajada de como essa música seria e eles trouxeram ideias que ao mesmo tempo que deixaram as coisas mais redondas, a música ficou mais experimental”, relembra Zimmerle.
Ao longo da construção do álbum, a banda contou com colaborações importantes, não só para o material final quanto pela experiência conjunta em estúdio. Uma participação célebre é a do percussionista Jam da Silva, conhecido por trabalhos com nomes como Roberta Sá, Marisa Monte e Elba Ramalho. Além dele, somam-se o baixista Missionário José (Mombojó), e o baixista André Mucuim (Malícia Champion). Foram conexões que abriram as percepções da banda sobre arranjo e cara final das músicas. “Hoje eu vejo que a gente pensa tanto sobre arranjo quanto sobre composição, e isso foi algo que fomos pegando no estúdio, na hora. Nisso, Fabinho foi muito essencial em nos apresentar outras pessoas. Ter a colaboração de caras como o Jam da Silva, despertou muito nossa criatividade sobre como víamos nossas músicas”, adiciona o baterista Pedro Laporte.
O contato com nomes importantes da música pernambucana trouxe a QAMPO não só repertório em arranjo como também pertencimento e contexto à identidade da banda. Porém, essas raízes estão longe de ser um rótulo “regional”, mas sim sinônimo da pluralidade da música pernambucana. “Acho que pela dificuldade de chegar a outros espaços, como no sudeste, algumas bandas pernambucanas são lidas e vinculadas ao manguebeat e só — por falta de referência. Na cena atual tem muita coisa diferente rolando”, reflete o guitarrista Beró. Entendendo suas raízes e propondo novas rotas, a QAMPO equilibra inspirações e ambições inventivas. Com as composições de Ao Espírito da Hora Passada vindas de diferentes períodos, boa parte percorrendo mais de cinco anos, nos próximos passos a banda procura explorar a paisagem da janela aberta no álbum de estreia, mas sem esquecer o endereço. “Esse é o grande dilema: de entender o que está além e o que se parece mais. Mas no fim esse não é o ponto, trocar e compor a partir de algo que a gente queira ouvir e dançar naturalmente vai nos colocar em outro lugar”, explica Zimmerle. Se uma definição plausível para um bom disco de estreia é a banda já soar “pronta”, o caso da QAMPO corrobora essa perspectiva. Em Ao Espírito da Hora Passada, o quinteto olindense catalisa referências, refresca elementos clássicos e brilha em inventividade.