Transformar um sofrimento profundo, vindo de um período muito conturbado da própria vida, em uma obra de arte que serve tanto de válvula de escape para o acúmulo de sentimentos do próprio artista, quanto para dialogar empaticamente com um público que possa estar passando por dificuldades similares é uma tarefa que exige força e, ao mesmo tempo, parcimônia. Afinal, provocar uma catarse é um procedimento poderoso que precisa ser manuseado com cuidado para não criar o efeito oposto ao desejado. Já pensou deixar todo mundo deprimido sem querer? É sempre bom lembrar: a arte é terapêutica, mas não é terapia.
Por conta de uma experiência intensa e (pelo visto) bastante traumática, Peter Silberman, líder do grupo americano The Antlers, criou a grande obra de sua banda, Hospice, de 2009, com reverberações que podemos observar até hoje. Além da projeção internacional que ganhou, é graças ao disco que o grupo delimitou a linha estilística que passou a seguir. Não que tenha passado por uma ruptura brusca. De fato, é fácil notar a linha de desenvolvimento que se segue desde Unprooted, seu primeiro trabalho de 2006, mas é nele que ficam claras sua vertente sonora e sua preferência pela aprofundamento de assuntos em álbuns temáticos.
É em Hospice que, em decorrência de um relacionamento emocionalmente abusivo, dependente e profundamente conturbado, Silberman traduz a própria angústia na criação de uma narrativa que usa a analogia da relação entre um médico e sua paciente em um hospício, misturando realidade e ficção, confissões pessoais e metáforas, numa viagem intensa e emocionante com dez faixas de duração. Um reflexo da história pessoal do músico, que conta a respeito de sua namorada deprimida e seu próprio desespero em não conseguir lidar com a situação.
Antes de entrar na história em si, vale atentar para o fato de que a primeira música composta por Silberman para esse álbum é, na verdade, Epilogue. Embora seja a última na ordem de faixas, é ela quem dita todo o clima do álbum. Todas as faixas precedentes são suas derivadas, então, as mesmas linhas melódicas vez ou outra reaparecem resolvidas com notas diferentes e variações das letras que se repetem alternadamente compõe uma obra completa como se, de fato, fossem diversas etapas de uma mesma e grande história.
Hospice tem uma introdução instrumental, Preface, uma espécie de “câmara de reverberações” que instaura um universo próprio, ao mesmo tempo sensível e barulhento, que é o reflexo do estado de espírito de seus personagens. Em Kettering, a segunda faixa, temos os primeiros versos cantados, que deixam claro qual o tema que desenrolar-se-á a partir de então: “I wish I had known in that first minute that we met, the unpayable debt that I owed you”. O débito impagável é a tarefa impossível de satisfazer uma pessoa que está em conflito com a própria essência (“Because you’d been abused by the bone that refused you and you hired me to make up for that”).
Durante toda a primeira parte do álbum, o protagonista sofre o desespero de tentar fazer a sua parte (“let me do my job”) para ajudar, sem sucesso, a “paciente” Sylvia: revoltada e sempre dentro de um turbilhão incontrolável (“a hurricane thunderclap”) que atrofia (Atrophy) dentro da própria tristeza.
Como em Hospice não temos uma linha clara na qual sabemos onde termina a realidade e começa a ficção, nem sob qual ponto de vista exato estamos focando o assunto, a trama fica mais complexa e interessante, além de ganhar um aspecto de “loucura” real. Por exemplo, em relação a doença de Sylvia, não sabemos ao certo os limites entre a pura dependência emocional, as tentativas de suícido decorrentes da depressão e até mesmo se as alusões ao câncer são literais ou apenas uma figura de linguagem que se refere à própria revolta. Ocorrem também diversas referências que aludem ao nome “Sylvia”: Sielberman se inspirou, além da própria namorada, no livro homônimo de Leonard Michael e na romancista americana Sylvia Plath. Estes temas, que sempre se interpenetram, deixam o enredo do álbum incerto e instigante.
A quinta faixa dá uma pausa na relação interdependente do casal, mas não é para amenizar o assunto. Bear faz alusão a um aborto e o conflito de um casal muito jovem em ter que passar por essa decisão. O tema faz pensar num flashback, talvez o início do relacionamento entre Sielberman e a namorada, e por isso mesmo, na razão de terem permanecido com uma ligação emocional tão forte e conturbada desde cedo. Além disso, o “bear inside yout stomach” citado na canção também pode ser uma metáfora para a força selvagem e destruidora da depressão que reside dentro de Sylvia.
A partir daí, entramos na segunda metade do álbum, onde temos uma leve mudança de foco, que enriquece a trama notadamente. Após uma seção instrumental que divide o álbum em duas etapas, temos em Thirteen, (que conta com a participação de Sharon Van Etten) a introdução do ponto de vista de Sylvia, uma voz suave e melancólica que pede, enfraquecida, para ser tirada do estado soterrado em que se encontra.
Two, por sua vez, relativiza os pontos de vista da trama: o sofrimento de ambos é visto tanto de dentro da relação, como por terceiros, fora da crise. Além disso, as próprias facetas dos dois protagonistas se dividem em personalidades amorosas pré-crise (fazendo uso novamente dos flashbacks) e agressivas diante da dor da fase final do relacionamento. É graças a estes pequenos saltos ao passado que é revelado, brevemente, a provável origem dos problemas emocionais de Sylvia: seu pai (“daddy was an asshole, he fucked you up, built the gears in your head”).
Em Shiva, o deus da destruição hindu chega para por fim ao ciclo vicioso da relação e, somente assim, abrir espaço para uma nova etapa florescer. O fim da relação entre os dois é tratada como a morte da paciente. O protagonista, após um surto emocional no qual tem uma crise de riso graças ao alívio da liberdade em conjunção com a dor da perda, enfrenta, assim, o luto e, desta vez, a própria depressão, mas é graças a este ciclo natural que começa a sair do estado de dependência anterior e a se reeguer. E então temos Wake, a última canção na linha cronológica do álbum. Wake faz alusão ao estado de ressocialização durante o luto de uma pessoa, e, de fato, trata de Sielberman voltando aos poucos às suas interações sociais, introduzindo o terceiro personagem da trama, um amigo que vem resgatá-lo da inércia em que se encontra após um período tão conturbado.
Quando Epilogue chega, a música funciona como um grande resumo condensado da obra (nos temas tanto textuais quanto musicais, lembra que eu disse que as melodias voltam a se repetir vez ou outra?) e pode ser vista como metáfora para as marcas irreparáveis que são impressas na alma de uma pessoa após um período e uma experiencia tão intensa: resquícios que voltam ocasionalmente para assombrar os sonhos, embora a lição e os pilares construídos permaneçam eternos na sustenção da maturidade emocional de uma pessoa.
Profundo, catártico e de uma carga emocional intensa, o tema de Hospice é, ao mesmo tempo, pesado e delicado. Perigoso, eu diria, dependendo do nível de indentificação que você tiver com o trama. Não à toa, desde então, The Antlers aposta mais ou menos na mesma linha de abordagem nos seus trabalhos subsequentes.
Em Burst Apart, de 2011, a sonoridade é notadamente mais leve, embora ainda bastante atmosférica e espaçada, e trata do período pós-limbo de Hospice. Ainda com sua predileção por temas densos, Silberman foca no período de rejeição e auto-destruição que ocorre naturalmente após uma relação traumática, mas, apesar disso, o viés de suas letras e a capa do álbum denunciam uma espécie de luz no fim do túnel. Assim, a recorrência ocasional de traumas passados, afinal, não se trata de nada além de uma limpeza emocional que vai culminar, futuramente, na nova aceitação do amor.
E é com isso que deixo o gancho para a apreciação de seu mais recente trabalho, Familiars, lançado neste mês. Nele, Silberman enfrenta a si mesmo com maturidade: encara a criança que costumava ser e é capaz de distanciar-se da emoção dos próprios conflitos. Enfrenta a si mesmo para tentar solucionar seus problemas. O grande tema do álbum é o “duplo”, o doppelgänger: sem medo do desapego, de encontrar-se nos outros, de encontrar seu verdeiro “eu” dentro de si, internalizando novos valores e ideais, Silberman enfrenta uma nova etapa, possível apenas com a maturidade adquirida no rito de passagem de Hospice.