Ilessi e a missão de ser o que se é

“O que esse trabalho mais me ensinou foi a acreditar em mim”; Frantz Fanon, Rita Lee, Balão Mágico e Sarah Vaughan compõem o caldeirão de influências da carioca, dona de um dos grandes discos de 2020

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Fotos: Lorena Dini

“Sou branco, quer dizer que tenho para mim a beleza e a virtude, que nunca foram negras. Eu sou da cor do dia…

Sou negro, realizo uma fusão total com o mundo, uma compreensão simpática com a terra, uma perda do meu eu no centro do cosmos: o branco, por mais inteligente que seja, não poderá compreender Armstrong e os cânticos do Congo. Se sou negro não é por causa de uma uma maldição, mas porque, tendo estendido minha pele, pude captar todos os eflúvios cósmicos. Eu sou verdadeiramente uma gota de sol sob a terra…”

Essa é uma das passagens do clássico Peles Negras, Máscaras Brancas (1952), de Frantz Fanon, que mais marcaram Ilessi, 39 anos. Quando nos falamos, eu e ela estávamos finalizando essa leitura. Eu chamaria de coincidência, mas a cantora e compositora carioca não acredita em acasos. Maquinações do destino como essa — ou a cursiva certa de deus nas linhas tortas da vida — sempre acham seu caminho em Ilessi. Dona de uma memória impressionante, ela cita de cabeça passagens de livros, trechos de músicas e, ao longo de nossa conversa, me recomendou uma leitura e quatro discos — A Falta que Ama (1968), de Carlos Drummond de Andrade, Porta Secreta (1980), de Amelinha, Amiga de Verdade (1993), de Alaíde Costa, Minas (1975), de Milton Nascimento, e 20 Palavras Ao Redor Do Sol (1979), de Cátia De França.

Em outubro de 2020, Ilessi lançou seu quarto disco, Dama de Espadas, marco de sua estreia como compositora. Tanto sonoramente quanto liricamente, tenho experienciado um precioso sentimento de identificação com o álbum. “De uma forma bem resumida e muito ampla: o que esse trabalho mais me ensinou foi a acreditar em mim, no maior sentido que você possa perceber nessa frase. Eu senti uma virada de chave”, revela Ilessi. A artista prossegue: “Acreditar em mim como mulher, cantora, compositora, nos processos que eu posso construir, no meu pensamento, na importância do que eu digo — porque, durante a vida, toda pessoa negra vai sendo convencida de que o papo dela é chato, de que o pensamento dela é menos sofisticado, de que o que ela tem a dizer é irrelevante ou até de que a figura dela é invisível. Acreditar em mim é ter muito mais consciência e segurança do que eu sou e como isso reverbera em muita gente, da mesma forma que muita gente reverbera em mim. Ser o que sé é de verdade tem uma importância muito grande — é muito curioso afirmar isso, porque Dama de Espadas é o trabalho que está tendo mais visibilidade até o momento, em relação aos outros trabalhos”.

“O que esse trabalho mais me ensinou foi a acreditar em mim. Como mulher, cantora, compositora e na importância do que eu digo — durante a vida, toda pessoa negra é convencida de que o papo dela é chato, de que o pensamento dela é menos sofisticado, de que o que ela tem a dizer é irrelevante ou até de que a figura dela é invisível. Acreditar em mim é ter muito mais consciência e segurança do que eu sou. Isso reverbera em muita gente, da mesma forma que muita gente reverbera em mim. Ser o que sé é de verdade tem uma importância muito grande”

2020 marca a primeira vez em que Ilessi foi remunerada para compor, através de um edital do Instituto Moreira Salles. Ela se considera “fraca” na hora de compor, então o desafio se tornou especialmente gratificante por ter conseguido entregar a música satisfeita com o resultado, sabendo que suas palavras estão respaldadas por uma densa pesquisa e poderosa mensagem. Ela é modesta sobre o resultado e tímida no que tange o conteúdo. “Eu comecei a compor em 2010 e era muito esporádico, fazia 2 músicas no ano; muito depois começou a vir com intensidade”, conta. “Em 2018, compunha com mais frequência, foi todo um processo de tomada de confiança que foi acontecendo no processo de feitura de Dama de Espadas.” Assim como eu, Ilessi teve insônia no dia em que nos falamos. Ela despertou às 4 horas da manhã com um texto na cabeça, escrito de uma só vez, com a intenção de fazer uma música a partir dele.

“Era sobre amor livre — de um jeito crítico”, diz a cantora, “Tenho escutado algumas psicanalistas falando muito sobre como o relacionamento monogâmico está com os dias contados e esse tipo de afirmação me provoca. O que eu questiono primeiro é: as pessoas problematizam os seus desejos? Segundo, essas pessoas que essas psicanalistas atendem representam o contexto social de todo o Brasil? Diga-se de passagem, elas são todas brancas de classe média alta e atendem pessoas brancas de classe média alta. E essa coisa também de decretar uma instauração de um formato de relação sem considerar várias coisas que atravessam as pessoas me incomoda, entende? O que você viveu na sua vida? As milhares de coisas que você viveu e te atravessaram, seja no âmbito familiar, amoroso, profissional. Mas eu estou com muita vontade de perder esse medo, essa obrigação de ser foda escrevendo. Quero escrever me expressando, abordar assuntos que não vejo em composição nenhuma, sobre os quais as pessoas não falam. Essa é uma das coisas sobre a qual eu gostaria de falar”.

É essa necessidade de expressão explosiva, por vezes pavorosa, que move Dama de Espadas. Há dois anos, Ilessi viveu um relacionamento com uma pessoa com dependência química, um processo rápido, mas muito intenso. A partir dessa experiência, a artista desenvolveu um modus operandi sutilmente compulsivo: Ilessi queria respostas e as buscava em cada esquina de si e do mundo. “Dama de Espadas foi uma via para eu me curar, me reconhecer, enxergar minha potência, botar para fora tantas questões que eu nunca tive a oportunidade de falar com tanta clareza, como racismo e machismo, como é ser mulher e negra”, reflete. “Antes, eu ficava constrangida de manifestar alguns assuntos na minha criação artística, mas nesse disco eu descaralhei e eu me senti muito à vontade com os músicos, foi A banda. Eles entendiam e acatavam meu pensamento musical com muito respeito. A cada ensaio tinha uma surpresinha, sempre surgia, no improviso, alguma novidade e a gente ia estruturando a obra a partir de experimentações muito espontâneas”.

Além da consagração enquanto compositora, a sonoridade do disco arrebata. Imagine o Mutantes da Rita Lee com negrura, um Rock progressivo com vocais de Blues, mas também com licença para improviso. Das referências fundamentais, muitas vieram da infância e adolescência. “Meu pai era o cara que comprava disco e ouvia música, minha mãe ouvia o que meu pai ouvia. Meu pai era músico, compositor, acabou se dedicando a ser escriturário, mas ele sempre teve uma relação muito intensa com a música. A gente ouvia muito Beatles — meu pai tinha uma caixa de vinil com toda a discografia do grupo, ele chegou a ter banda de Rock quando era novo, na qual ele cantava e fazia arranjos vocais —, muito Pop americano, cantoras de Jazz, Sarah Vaughan é quem a gente mais ouvia — esse cuidado com timbre e ressonância eu peguei muito da Sarah”, diz.

Os “consagradões da música brasileira”, como Ilessi descreve, não passaram batido: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Dorival Caymmi, Lenine, Sueli Costa, Simone, Cama de Gato, Hermeto Pascoal, enfim. A imersão no universo musical foi influência da família, que compartilha dessa paixão seja pela coleção de discos do pai ou pela afinação apurada da mãe – cujos sonhos, para surpresa de Ilessi, dialogam com as conquistas da filha.  “Uma vez, fiz uma meditação guiada que tinha algumas atividades, e uma delas era perguntar para sua mãe qual é o maior sonho dela e qual é a maior dor. Minha mãe falou que a maior dor emocional foi a morte do meu pai. Ela foi falando sonhos que eu conhecia, como ser professora, diretora de escola, todas as filhas morarem no mesmo terreno, e ela falou depois que já tinha sonhado em ser cantora. Eu, com 38 anos, ouvi pela primeira vez que minha mãe sonhava em ser cantora, eu não sabia”.

A conversa foi particularmente especial para Ilessi. Ela repete inspirada as palavras da mãe contando que ouvia Emilinha Borba e Marlene no rádio e sonhava em ser como elas. “Fiquei doida, falei que ainda dá pra ela cantar, para gente fazer uma música, mas ela disse que nunca teria coragem de cantar na frente de todo mundo…é foda, né? Mas eu tô armando um negócio aí para o próximo disco”, conta a carioca. Logo depois, Ilessi enumera discos de infância que amava e confesso que, de pronto, estranhei. Mas Xuxa, Balão Mágico e Plunct Plact Zoom ainda são grandes influências dentro do repertório de Ilessi e são discos que ela continua ouvindo — menos Xuxa, ela faz questão de pontuar.

“Eu gosto de ouvir música infantil, porque tem produções excelentes”, conta. “Os discos do Balão Mágico são muito bem produzidos, tem disco que o arranjador é o Lincoln Olivetti, tem músicas do Moraes Moreira. Gosto muito dos personagens, de fazer vozes. Quem me conhece sabe que eu fico fazendo vozes escrotas o tempo todo. O Dama de Espadas tem muito isso das improvisações vocais. Estou muito feliz de ter conseguido chegar nesse lugar no meu trabalho sem pudor, nesse sentido explorar a liberdade. Quando eu fiz meu TCC, citei Rita Lee, dessas vozes absurdas, ridículas, que são incríveis e que a gente está ficando sério demais. A gente está perdendo essa liberdade de usar a voz dessa maneira que seja a serviço do que você está dizendo e do que você está sentindo, sabe? E de como o som em si bate em você. Às vezes é um improviso sem palavra, mas tem alguma coisa, um contexto, um sentido, um enredo, uma meada, e que se você conseguir expressar como se fosse uma incorporação podem vir os sons mais improváveis”.

E é mesmo fascinante ver Ilessi em sua performance do disco entrando e saindo de vozes surreais, em trânsito. Há momentos do vídeo em que me pego grudada na tela, hipnotizada pelos expressivos olhos castanhos quebrando a quarta parede em “Vivo ou Morto” ou cheios de lágrimas em “Vagalumes”. Dama de Espadas foi pensado como um disco de banda e, por isso, a apresentação de quase uma hora passa em um sopro no vídeo do canal da gravadora. Curiosamente, o show tornou-se um álbum por coincidência, um stories que, se passado, poderia mudar tudo — coisas de Ilessi. “Foi acontecendo esse processo da gente descobrir o que o projeto pedia esteticamente, musicalmente, poeticamente e conceitualmente. A gente fez um show em 2018 e o Sylvio Fraga viu um stories no Instagram, achou foda e falou ‘Vamos gravar um disco’. Eu dei risada, ele respondeu que estava falando sério — e estava”, relembra.

O estúdio da Rocinante, segundo a banda, é a Disneylândia do Som. “Era o sonho: gravar um disco de banda ao vivo, mantendo a sonoridade viva, com eu desafinando e foda-se. Nunca tinha vivido uma gravação com aquela estrutura. É incrível, porque você faz ao vivo com um som foda, como se fosse um show, com um som que você nunca teria num show, infinitamente melhor”, diz. A previsão de lançamento, como quase todas de 2020, foi adiada por conta da pandemia do novo coronavírus. De abril, foram marcadas mais três datas até o lançamento definitivo em outubro.

A faixa-título fascina. Não é uma releitura da faixa homônima de Bebadosamba (1996), de Paulinho da Viola, nem uma referência ao livro de Pushkin, que inspirou a ópera de Tchaikovski, nem mesmo dialoga com tarô — apesar da capa despertar a lembrança imediata. Ilessi entrou em contato com esses elementos depois de ter feito a música, segundo ela, uma licença poética da compositora Iara, que também não entende de tarô, mas escreveu tendo o arquétipo, contraponto ao rei de paus, em mente. A rainha de espadas. “Só que comecei a fazer várias correlações, porque eu sou muito mística, nada é por acaso. Eu sou libriana e filha de Oxum com Xangô, que é o Senhor da Justiça, símbolo da rainha de espadas e do signo de libra. Foram acontecendo várias coincidências que não são coincidências”.

“Quando a gente foi fazer as fotos do disco, um bombeiro que já tinha feito clipes para vários artistas falou que tinha uma estrutura triangular que passa o gás por dentro do cano, então dava para fazer um triângulo de fogo. A Lorena [Dini] pirou”, conta, “Depois eu fui descobrir que, no tarô mitológico, o trono do rei de espadas é grafado com um triângulo, símbolo da harmonia, equilíbrio, essa energia do naipe de ar. A Lorena teve a ideia de inserir o fogo na espada, como o corte do mal, a lua de sangue representa a transformação da realidade de desmantelo, miséria, opressão, como símbolo do fim dos tempos e transformação da realidade mesmo”.

“Não tem fogo na rainha de espadas, mas há pouco tempo lembrei de uma música. Eu chorei muito e lembrei de uma música do Paulo Pinheiro que a Glória Bonfim gravou chamada “Senhor da Justiça”. De repente, num momento de fragilidade, me deu esse estalo”, relembra Ilessi, que passa a bater verso a verso comigo, em que ela associa a letra de “Senhor da Justiça” a Xangô e a lua de sangue, com um propósito muito similar à mensagem da sua própria capa. Por isso, decidiu abrir o show com essa canção, uma homenagem. As demais referências Ilessi só foi desvendar com o tempo. “Enquanto fazia o processo de pesquisa de imagem, vi um livro do Pushkin, chamado A Dama de Espadas, que é um conto pequeno, maravilhoso. A dama de espadas é ótima porque ela é aquela mulher que todos odeiam. Acho que essa frieza é um lado que eu precisei acessar porque estava sempre nessa posição de submissão, excesso de bondade, de caridade, de abnegação, então, foram coisas que foram chegando e me ajudando pessoalmente”, rememora.

Além de ser cantora, Ilessi partilha mais um sonho com sua mãe: lecionar. A artista dá aulas de canto e é apaixonada pela atividade. “Parece papinho furado, mas eu aprendi muita coisa porque ensinar faz você ter que aprender”, diz. “Eu sou aquela professora que vira amiga de todos os alunos, não tenho nenhum distanciamento ético, zero (risos). Então, ver a dificuldade, o aluno estrangulando na nota, me faz ir mais fundo para poder ajudar as pessoas. Estou estudando com a Tatiana Parra, toda semana a gente se encontra para estudar esse livro do Richard Miller, A Estrutura do Canto, e é incrível como ele sistematizou o entendimento de técnica vocal. Claro que você tem que fazer várias observações, porque é mais dedicado ao canto lírico, mas fui fazendo adaptações para o popular. Estudar canto é uma coisa muito bonita. Amo ver as pessoas se descobrindo e se entregando para a beleza que é cantar”.

“Faz uma lista dos cantores dos anos 1970 [no Brasil] e compara as vozes. Uma não tem nada a ver com a outra. A gente tem uma maneira nossa e fica querendo imitar uma coisa que não tem nada a ver com a gente, com a nossa língua, com o estilo que a gente canta. Isso também é um compromisso meu como professora: não lidar com a coisa extremamente técnica, mas também com o que passa por um compromisso cultural e musical com canto”

Ilessi tem um compromisso profundo que permeia Dama de Espadas e eleva a obra de um ótimo disco para um disco excelente. “Gosto muito de trabalhar com estilística também, a improvisação passa muito pelo estilo, que é uma coisa que eu prezo muito. Tipo, você está cantando um Wilson Moreira ou Raul Seixas, você não vai cantar da mesma maneira porque são coisas absolutamente distintas e opostas. Então, você tem que dominar o estilo do tipo de música, que é uma coisa que eu acho que hoje em dia a galera está chapando geral — todo mundo cantando tudo do mesmo jeito, o qual pode ter ramificações diferentes, mas é uma chapação, uma influência de uma estilística Pop americana”, dispara a cantora.

Ilessi prossegue: “A gente sempre teve essa multiplicidade no campo brasileiro. Faz uma lista dos cantores dos anos 1970 — que para mim é A década — e compara as vozes todas: uma não tem nada a ver com a outra. A gente tem uma maneira nossa e fica querendo imitar uma coisa que não tem nada a ver com a gente, com a nossa língua, com o estilo que a gente canta, não tem a ver com nada. Isso também é um compromisso que eu tenho como professora: não lidar com a coisa extremamente técnica, mas também com o que passa por um compromisso cultural e musical com canto”.

Dama de Espadas é uma convergência de Ilessis: eu vejo a professora de canto, a compositora lapidada, a cantora de Jazz e do improviso e a mulher negra que acabou de se recuperar de uma turbulência emocional. Hoje, ela tem colocado os pés no chão, depois de viver o sonho. Desafiando a profunda solidão do isolamento social, ela tem lido muito, cozinhado e feito yoga. É curiosa essa volta ao ordinário da artista que jogou no mundo um tratado sobre si, pois a rigor Dama de Espadas é um diário, escalafobético, encantador e livre em cada segundo.

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ARTISTA: Ilessi