Infância, Cy Twombly, a vida rural e uma conversa aberta com Roger Valença

Músico e colaborador antigo do Monkeybuzz lança “Um Delírio Madrepérola”, primeiro disco de seu projeto Píncaro

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Fotos: Matilde Viegas

As trajetórias recentes de Roger Valença e do Monkeybuzz se encontram em muitos pontos. Em abril de 2012, com pouco mais de um mês de site no ar, publicamos uma resenha – escrita pelo André Felipe de Medeiros – sobre um lindo EP de uma dupla paulistana de nome esquisito que chegou até nosso e-mail. No mesmo dia, sem explicação clara, a crítica se tornou o texto mais lido do site até aquele momento e continuou no topo por alguns meses.

Dois anos depois, Roger, um dos integrantes da dupla, demonstrou interesse em começar a escrever críticas para o Monkeybuzz. Em 2016, a relação evoluiu e ele se tornou uma espécie de editor de resenhas do site por pouco mais de dois anos, num momento em que buscávamos consolidar um pouco melhor nossas bases críticas. Durante esse período, a Onagra Claudique lançou Lira Auriverde, seu primeiro álbum. A banda encerrou suas atividades não muito tempo depois, após a ida de Roger para Portugal com a intenção de completar um mestrado em crítica de arte – e uma amizade entre nós foi sendo construída.

Se você enxerga o Monkeybuzz como uma lanterna crítica que ilumina os mais variados lançamentos com um nível de respeito, atenção e gentileza, muito disso foi construído direta e indiretamente por influência do Roger. Simultaneamente, colocamos no ar a Artichoke, newsletter semanal de arte do Monkeybuzz — se não conhece, assine! —, em que Roger divaga sobre outras formas de criatividade não contempladas aqui no site, junto da direção visual e ilustrações de Mariana Poppovic, artista, companheira de Roger, também colaboradora frequente do site e grande amiga. Durante a conversa que você pode ler a seguir, Roger vai citar, entre outras boas reflexões, a importância do distanciamento crítico. Motivo exato pelo qual — por toda a história aqui introduzida — optamos por não resenhar de maneira tradicional seu novo projeto.

Um Delírio Madrepérola é o primeiro disco de Píncaro, novo projeto musical solo de Roger. Trabalho escrito durante o período em que ele — ironicamente — se afastou da produção musical, morou na cidade do Porto, se desenvolveu como crítico. O disco foi finalizado recentemente, durante a surpreendente decisão de voltar para o Brasil com Mariana e construir sua própria casa, próxima ao sítio em que cresceu, numa cidade de menos de três mil habitantes no extremo oeste Paulista.

A entrevista usa o Píncaro como ponto de partida para uma conversa aberta, entre amigos, sobre música, processo criativo, arte, o papel da crítica e desemboca em reflexões sobre escolhas de vida, nossa relação com a terra e a comida, entre outras pérolas escondidas. A tentativa foi conseguir construir um papo a respeito de tudo que um leitor do Monkeybuzz provavelmente se interessa, feito por duas das muitas pessoas que se esforçaram para construir esse espaço nos últimos anos.

Queria saber um pouquinho mais sobre o disco e como ele surgiu.

A gente decidiu que ia se mudar para Portugal e a Onagra [Claudique, banda anterior formada por Roger Valença e Diego Scalada] acabou. Na mudança, acabei não levando violão, nem nada. Pensei “quando chegar lá, compro um violão e encontro um muito melhor por um preço mais barato”. Mas chegando em Portugal, o preço do euro tinha subido muito em relação a quando planejamos a mudança e não consegui comprar. Acabei ficando muito tempo sem instrumento, só fermentando coisas na cabeça. Foi quando um amigo foi para lá e acabou deixando um violão. Acho que você estava lá em casa inclusive neste dia.

Nesse momento, acho que estava já há uns seis meses sem instrumento. Já estava longe do Brasil sem ter composto nada e tinha tirado umas férias. Sentei então com o violão e falei “acho que vou começar a compor”.

E o mote principal foi algo que fui percebendo ao longo dos anos. Conversas sobre infância surgiam com amigos, as pessoas contavam episódios da infância de uma maneira muito clara e eu sempre comentava com a Mari que não me lembrava da minha infância dessa forma. Foi aí que comecei a perceber que não era normal não se lembrar da infância – e pensei que aí poderia haver um caminho.

Eu tenho alguns flashes apenas desse período e é um intervalo muito grande para eu ter apenas algumas micro lembranças. Então, sentei com o violão e tentei lembrar da minha infância. Aí as músicas foram surgindo e ao longo do processo obviamente isso transcendeu essa coisa autobiográfica e as músicas foram ganhando um aspecto mais universal. Comecei a explorar essa coisa do arquétipo do pai, das coisas que o filho sempre herda do pai, não só geneticamente, mas também em costumes, manias, crenças e tudo mais.

No meio do processo de composição do disco, o Bolsonaro ganhou a eleição e uma coisa que era muito mais autobiográfica começou a ganhar outros aspectos. O Brasil estava sendo governado por um líder muito patriarcal e a figura desse pai — que inclusive é um pai que governa junto com os filhos — começou a me chamar a atenção. Esse poder autoritário da paternidade.

Eu também fui criado no Cristianismo, a mitologia cristã em geral sempre foi muito parte da minha realidade. Não era católico, meus pais eram espíritas, mas sempre estiveram ligados a outros tipos de misticismo cristão. E, na verdade, a mitologia cristã — como depois fui estudar no mestrado também — ensinou a “civilização ocidental” a ver o mundo. Os textos bíblicos fundaram nosso pensamento. Então você, sendo cristão ou não… Quase tudo o que a gente acredita como certo, verdadeiro, o jeito que a gente enxerga as coisas é balizado pelos ensinamentos cristãos. E na mitologia do cristianismo há uma relação muito inédita entre pai e filho que, no caso de Jesus, é ser idêntico ao pai pela primeira vez na história da literatura. Então essas questões muito grandes sobre paternidade, hereditariedade, relação masculina, começaram a aparecer e a transcender a minha história pessoal.

A partir daí, demorei cinco anos para compor esse disco. Meu processo é lento mesmo, faço uma música e fico polindo, maturando e trabalhando ela durante muito tempo. Inclusive os detalhes e os símbolos que ela evoca. Me perdi um pouco, mas acho que é isso para começar (risos).

Perfeito. Voltando um pouco, acho interessante essa sua fala, porque, pra mim, se pegarmos as suas composições na Onagra Claudique, elas eram um pouco mais diretas e didáticas em nos passar a ideia de estarem inseridas num contexto social maior. Enquanto se olharmos apenas a superfície do Píncaro, me parece algo muito mais particular se não fizermos essas associações todas que você citou.

Eu acho que é diferente. Essas coisas que eu falo no disco agora são muito, muito íntimas. Vem de uma intimidade muito mais profunda do que as coisas da Onagra. Porque fazem parte da minha história, da minha infância. Mas, no ano passado, vi uma peça incrível da Janaína Leite que se chama justamente “Stabat Mater”, que em latim significa “estava a mãe”. É sobre uma relação super conturbada que ela teve com o pai, super traumática — o que não é o meu caso — e que gerou primeiramente um espetáculo solo que se chamava “Conversas com Meu Pai”, em que ela trabalha essa relação traumática com o pai dela. Ao longo do processo, ela percebeu como a mãe sempre estava ali como uma figura escondida, observando nos cantos, mas sempre presente. E ela interpreta isso de um jeito muito bonito — que também tem a ver com a mitologia cristã — sobre o papel da mulher. Que também é um papel apagado da história do cristianismo. Sempre presente, mas sempre apagado ao mesmo tempo. E me identifiquei muito com essa peça.

Algo muito interessante que ela fala sobre isso é que, quando os traumas vão para uma obra de arte, principalmente histórias reais muito intensas, você consegue falar de coisas verdadeiras com o filtro da estética. Porque você não sabe se é real ou se é ficção, mas é real e é ficção ao mesmo tempo. Não é só a realidade que está acontecendo ali. Então você consegue mostrar isso para as pessoas sem que elas absorvam tanto o trauma. As pessoas se identificam com isso tudo, com as histórias de vida, de um jeito mais evocativo. Elas se reconhecem no que aconteceu sem precisar ser um gatilho.

Tudo isso para dizer que as músicas do Píncaro têm esse aspecto de “coisas traumáticas”. Vou usar essa palavra apesar de não os encarar como traumas naquele aspecto mais psicanalítico, de ser uma coisa que te deixa psicologicamente doente, mas sim no sentido de trauma como coisas que te afetam.

Então essa coisa do trauma e das minhas memórias de infância são muito íntimas, são sentimentos muito crus, pouco elaborados. Como a raiva, por exemplo, nome de uma das músicas. Ela vem com esse filtro da estética que eu passei muitos anos polindo porque não quero que as pessoas sintam raiva, eu não quero ficar jogando isso em cima das pessoas. Eu faço a minha terapia e não fico fazendo terapia às custas das as outras pessoas. Então fico polindo e depois eu quero que essas histórias pessoais venham com um filtro em que todos consigam se identificar com elas sem ser essa coisa dramática. Por isso, tentando responder sua pergunta, as coisas aqui são de fato muito mais íntimas e pessoais, mas elas vêm muito mais trabalhadas para chegar nas pessoas de um jeito mais universal e mais gentil.

Curioso você ter tocado nessa questão do filtro da estética, pois uma das coisas que tive vontade de te perguntar ouvindo o disco vem muito de um lugar de quem não é artista, de quem não tem o hábito de compor e produzir. Queria entender o quão consciente são para você essas escolhas estéticas? Desde a parte mais básica como a escolha do violão. É por ser o instrumento que te deixa mais confortável, é por ser o que você mais gosta de fato? E como funciona quando você está se interessando, como ouvinte, por estilos e técnicas que você não domina tanto? Você sente essa vontade de explorar outros lados? Como funciona isso para você e o quão consciente é tudo isso no seu processo?

Bom, acho que tem duas coisas. A primeira é que nenhum artista nunca tem controle sobre o que sai. Ele acha que tem e induz o processo até certo ponto. Esse processo de tradução entre a inspiração que o artista sentiu até ele passar para o meio, ou seja, para o violão, para o papel, passar para a tela, falando de qualquer artista, nunca há um controle absoluto sobre o que sai. E a pessoa que está vendo também não vê exatamente aquilo que o artista achou que estava mostrando, não ouve exatamente aquilo que ele achou que estava falando. A pessoa interpreta com o filtro dela, então essa coisa acaba se desviando até chegar na última etapa desse processo de tradução que no meu caso é o ouvinte. Por outro lado, o violão é um instrumento que eu aprendi a tocar. O que eu sei tocar de fato é o violão, é o que estava ali sempre. Então, eu sei compor no violão.

Quando mostrei para o Mauro [Motoki, produtor] para ver o que ele achava, ele falou “violão de nylon, é isso”. Inclusive a coisa do violão de nylon é meio louca, porque ele começou a voltar um pouco depois de ter sido apagado completamente. Até muito pouco tempo, era o violão de aço que se tocava, que era legal na música Indie, digamos assim, que antecede um pouco essa nova geração.

De fato, quando comentei com o Maurício [Amendola, editor do Monkeybuzz] sobre o disco, o violão de nylon realmente foi uma coisa que ele disse ter chamado a atenção dele.

Sim, eu acho que tem um trauma também da rodinha de violão, sabe? Do Legião Urbana, do Los Hermanos. Acho que tem um pouco esse preconceito. O violão de Nylon é muito brasileiro, é muito legítimo. Em muitas expressões de música brasileira o violão de nylon aparece. Samba, Bossa Nova. Então quando o Mauro falou que era isso, violão de nylon mesmo, fez muito sentido. Assim as músicas ficariam com o DNA que elas surgiram. Óbvio que daria para transpor para piano, para guitarra, daria para fazer tudo isso, mas perderia uma identidade que o Mauro achou legal manter e eu concordei.

Mas as gravações foram muito no processo também, a gente foi gravando sem planejar muito. O que tínhamos era o violão, sabe? Não tínhamos uma superestrutura, um grande estúdio, músicos, musicistas, instrumentistas e instrumentos disponíveis ali, tinha a gente. E nesse processo acabou surgindo também o sintetizador, o piano elétrico, que deu a gravidade que acho que precisava também, sempre aquele fantasma que está subentendido em todas as faixas, aquele grave que vai percorrendo. Mas é isso, assim que aconteceu.

Voltando à primeira resposta em que você falou sobre os flashes da sua infância, quando escrevi a resenha do Lira Auriverde, último disco da Onagra, lembro que fiz uma comparação com o diretor Terrence Malick, que tem essa coisa justamente de contar uma história através de flashes, e aí o público vai construindo essa imagem. Acho que nesse disco isso ficou evidente de novo. Não sei se já cheguei enviesado, mas gosto muito da maneira com que você vai usando palavras e frases curtas soltas pra gente ir pescando e construindo muito facilmente um cenário bem visual.

Essa referência para mim é pra comemorar! (risos).

Continuando a fazer um paralelo com outras outras formas de arte, indo um pouco para a literatura, eu lembro que você foi a primeira pessoa que me apresentou a séria “Minha Luta”, do escritor norueguês Karl Ove Knausgård. Discute-se muito as diferenças entre a auto ficção (gênero no qual ele costuma estar inserido) e a autobiografia. A auto ficção estaria justamente mais envolta por essa capa da estética que você citou anteriormente. Você enxerga algum paralelo disso com a sua música ou você acha que ela é ainda menos direta, menos literal?

Enxergo sim, acho que tem tudo a ver. Toda autobiografia é ficção, a diferença está no grau em que se assume o que é e o que não é. Toda memória, ainda mais de períodos distantes como a infância no nosso caso, elas sempre vão sendo trabalhadas e retrabalhadas, então o que eu lembro hoje da minha infância não é o que aconteceu, é uma coisa que eu venho redesenhando desde sempre.

Mas, apesar desse paralelo, acho que não é o caso do meu disco ser entendido como algum tipo de autoficção não, porque como eu disse, acho que tem uma coisa universal ali em que eu não estou contando minha história de um jeito narrativo. Estou só usando estímulos para pegar uma coisa mais arquetípica do nosso momento. Eu acho.

Pegando uma outra conversa que tivemos da última vez que nos falamos, você comentou sobre as muitas áreas nas quais você atuou. Você teve o teatro, a dança, a crítica de arte e eu não lembro a frase exata que você usou, mas lembro de você dizer que sente que agora realmente pousou na música de vez. Como foi esse processo e como a música se relaciona com as outras artes na sua vida.

Esse é o tema da minha terapia agora, né (risos). Porque estou levando bronca de tanto que eu mudo de rumo na vida. E chegou numa idade que não dá mais.

Poxa, ainda dá sim (risos).

Não, sim, super dá. A minha questão é que me sinto muito à deriva e isso tem me trazido angústia. Mas tudo sempre apenas aconteceu na minha vida e eu sinto que fui sendo levado, apesar de não me arrepender nem um pouco de nenhuma delas.

Olhando hoje em dia, me sinto muito privilegiado de poder ter feito coisas que eu queria fazer. Obviamente que sair mudando de área traz alguns perrengues que são intrínsecos à mudança de profissão. Dinheiro por exemplo é sempre um problema. Você muda de metiê e você tem que fazer novos contatos e conhecer pessoas. Então todo esse tipo de mudança é difícil, mas, por outro lado é bom, porque  sempre estive ligado ao mundo criativo, para mim sempre foram as artes. Eu sou formado em teatro, fui trabalhar com dança, aí depois de um período em que a dança não estava me satisfazendo, a música aconteceu na minha vida. Quer dizer, aconteceu não, eu toco violão desde que era adolescente e componho desde então.

Mas chegou um momento em que eu e o Diego, que era o meu parceiro na Onagra Claudique, decidimos gravar e deu muito certo. Um pouco depois aconteceu o show do Sesc Pompeia nas nossas vidas, que foi um momento que nos fez pensar “opa, acho que é por aqui”. Em 2015, fui convidado para trabalhar no Monkeybuzz e nesse momento me apaixonei mais também pelo universo da escrita — que sempre pratiquei — e da crítica mesmo. Comecei a me interessar cada vez mais por isso, queria entender por que algumas pessoas gostam de umas coisas e de outras não e por que algumas coisas são consideradas mais válidas que outras. Entender mais profundamente, mais filosoficamente esse sentido da crítica de arte. E fui fazer o mestrado em crítica em Portugal. Então, eu fui sempre sendo levado por coisas que me despertavam o interesse.

Mas, por outro lado também, sempre fica alguma coisa. Existe uma lógica, alguma coisa muito fundamental no processo criativo das artes em geral, que subsiste a todas as outras linguagens. Levei coisas do teatro para a dança, que levei para a música, que levei para a crítica de arte e que agora eu trouxe de volta para a música. Sempre alguma coisa sobrevive. Quando eu estava na faculdade de teatro, comecei a perceber que as pessoas que mais me interessavam eram as que estavam fazendo teatro vindas de outras áreas. Pessoas do teatro que eram das artes plásticas, da música ou da dança e eu via que traziam estímulos de outros lugares e não ficavam engessadas naquele cânone do teatro, sempre com as mesmas referências, sempre nos mesmos meios, sempre as mesmas coisas. Acho que fiquei contaminado por essa ideia de trazer referências de outros lugares. O que enriquece esse diálogo entre linguagens.

Inclusive, você falou que eu construo imagens e a Mari [Poppovic, artista visual e companheira de Roger] também sempre falou que eu sou muito visual e de fato as minhas maiores inspirações para fazer o Um Delírio Madrepérola são das artes plásticas, da pintura principalmente. Então, se você me perguntar quais são minhas referências musicais, vou ter dificuldade de responder, vou ter que pensar um pouco.

Você passou por um processo que poucos músicos tiveram a oportunidade de passar, que é produzir um disco elogiado como o Lira Auriverde, da Onagra Claudique, e de repente fazer uma pausa em tudo isso, ir especificamente para a crítica e depois voltar novamente para a música. Você sente que trouxe algo desse processo analítico da crítica para sua própria música? Ficou pensando se você mesmo como crítico gostaria do seu próprio som?

Sim, total, total. Tem uma coisa interessante que se aprende no processo da crítica que é a do distanciamento. Então foi um processo muito intenso de distanciamento crítico com a minha própria vida e com o Brasil, porque eu mudei de país e fui viver uma vida completamente diferente. Parei de fazer música e comecei a olhar para as artes do outro lado. Eu mergulhei mesmo na crítica de arte, fui estudar a fundo e a sério nesse período. E foi muito bom ter esse processo de distanciamento, de parar um pouco de fazer e apenas olhar. Comecei a olhar para a minha infância e também para o Brasil estando fora dele. O Mauro quando ouviu “Guarani” falou “essa é uma música sobre o Brasil que só quem não está morando no Brasil conseguiria fazer”. Por que está todo mundo desesperado no Brasil e ninguém conseguiria ter essa serenidade de olhar assim para a situação de um barco afundando. É como se eu estivesse na praia olhando o barco afundando e analisando “ah, furou o casco ali”, enquanto quem está dentro do barco apenas corre e se descabela, pula pra fora.

E eu tive contato e comecei a analisar o processo criativo de muitas pessoas, estou escrevendo semanalmente sobre outros artistas e isso vem me enriquecendo. Tem também uma coisa de parar e falar “ok, se eu fosse outra pessoa, sentiria que isso aqui está no nível de ser mostrado para o público?”. Isso é sempre mais difícil, porque se distanciar de uma coisa que você fez é complexo.

Agora uma pergunta ambiciosa e que eu sei que não é tanto a sua pegada responder, mas que tenho curiosidade de te fazer. Como você enxerga o cenário musical no geral nesse período, dessa sua perspectiva bem única de ter estado dentro e fora da música e dentro e fora do Brasil também.

A música é um lugar onde pessoas jovens sempre estão vindo com muita força e muito gás. Ela está passando por um processo muito difícil — tecnicamente falando — porque os shows acabaram, logo num momento em que sãoo a principal fonte de renda dos artistas. Você no Monkeybuzz sabe muito bem disso. Então existe essa grande dificuldade que precarizou ainda mais um setor cultural que nunca foi prioridade. Existe esse problema estrutural muito difícil que todas as artes, principalmente as presenciais, as artes do palco, teatro, dança, circo estão passando. As outras ainda conseguem — de forma longe da ideal — se virar um pouco de outras maneiras, mas acho que quem mais sofre são as presenciais. São essas linguagens. Mas as pessoas estão fazendo muita coisa boa, sempre me surpreendo com o quanto não para de surgir coisa nova e boa na música. É uma linguagem que dá mais abertura pra gente nova e interessante aparecer sempre, diferente das outras em que eu sinto que você precisa estar um pouco mais consagrado pra começar a ser notado.

Você se enxerga inserido em algum contexto pensando em música? Seja um contexto estético, mercadológico ou qualquer outro?. Você pensa nisso de alguma forma?

Um pouco. Eu sei que eu me vejo mais no lugar de compositor do que de performer. Eu acho que é um ponto importante para mim. O que não quer dizer que eu esteja alheio a tocar minhas próprias músicas e fazer shows. Isso é uma coisa que eu quero perseguir e fazer de fato também. Mas acho que os momentos em que sinto mais prazer são compondo e gravando. O contrário de muita gente. Eu conversei para o Monkeybuzz com o Michael Gira, do Swans, e ele falou que odeia gravar. Para ele, o estúdio é maçante. E de fato, pro Swans é ao vivo que tudo acontece. Então me vejo mais como um compositor, é o lugar que eu sinto mais prazer.

E esteticamente eu sinto uma aproximação — por causa da minha história biográfica — com a música campestre, pastoral, sertaneja, digamos assim. Eu não quero parecer oportunista falando que eu faço música sertaneja porque música sertaneja já é uma coisa consagrada, mas digamos que exista um universo paralelo da música ligada ao campo, ligada a uma coisa bucólica, rural. E que eu posso citar sem correr o risco de ser oportunista porque é o lugar de onde eu venho, estou morando no sítio que é onde meus pais moraram e que é onde eu morei na infância também. É um universo do qual eu faço parte, não é uma coisa que eu cheguei agora de São Paulo dizendo “Estou cansado da cidade, quero natureza”.

E sobre processo criativo, você pensa sobre isso? Você teve uma rotina pra compor o disco? Como isso muda agora com o trabalho já lançado também?

Eu acho que penso em processo criativo 100% do meu tempo. E acho que agora, com o projeto lançado, estou tentando ainda criar as minhas condições ideais para criar. Não sei se chegarei nessas condições, mas é isso.

Eu ensaio todo dia, estudo todo dia, treino todo dia. Todo dia estou com o violão na mão, mas não tento forçar também, pelo menos enquanto ainda não tenho nenhuma amarra, nenhuma obrigação contratual de entregar um disco por ano ou algo assim. Então não forço as músicas para saírem. Como a Mari também é artista, estamos sempre no processo criativo, imersos nesse universo, é uma coisa natural para a gente sempre pensar sobre isso.

A Mari participa do disco contribuindo para os backing vocals também, como foi e como é essa troca de vocês durante esse processo de inspiração mútua?

A Mari, como venho dizendo e repito quantas vezes forem necessárias, é uma pessoa cuja criatividade é uma coisa estonteante. É chocante a capacidade criativa dela e ela sempre estava ali. Ela tem um ouvido musical com um alcance que vai muito além de muitos músicos que eu conheço. Ela não é musicista, mas o ouvido dela é uma coisa que pega as notas com facilidade, ela canta muito bem também e tem uma afinação incrível. Então ela sempre estava ali. Ela não interfere muito nas letras, mas em harmonia e melodia ela sempre estava ali de olho e às vezes ela passava enquanto eu estava ali compondo e falava “por que ao invés dessa nota, você não usa essa outra nota?”. Na harmonia do violão mesmo ela cantava a nota, sem saber exatamente de qual nota ela estava falando. Aí eu tocava no violão e melhorava muito, ficava muito mais sofisticado do que o que eu estava fazendo. Ela sempre vem e sugere coisas mesmo sem ter um conhecimento teórico musical, ela canta uma nota que soa muito melhor intuitivamente.

E quando as músicas já estavam feitas e eu já estava repetindo e tocando para assentar, assimilar aquelas músicas, ela começou a cantar os backing vocals sozinha, por conta dela. E nós dois gostamos muito desse tipo de música com muitas vozes. Sempre foi uma referência muito grande para nós dois, então foi natural. Os backing vocals estavam compostos na cabeça dela e ela cantou. Durante o processo de gravação, o Mauro também compôs um pouco de backing vocals, principalmente os mais arranjados como de “Guarani”, que os dois fizeram juntos. Mas a grande maioria foi a Mari que compôs.

Outra grande contribuição é que ela tinha também um ateliê de pintura dela, no Porto, e ela cedeu o ateliê para a gente gravar. Montamos as coisas lá, computador, microfone e um biombo feito com um lençol, aquele esquema de gravação caseira. Levamos o piano elétrico para lá e foi lá que a gente compôs o disco. A parte principal do disco foi essa. Depois só fui gravar as minhas vozes mesmo no estúdio lá no Porto.

Citando novamente o Karl Ove Knausgård, ele diz que gosta de trabalhar na biblioteca da casa dele porque existe uma aura de cultura no lugar. Na prática, seria a mesma coisa que trabalhar em um café, mas ele se sente rodeado, acolhido pela cultura que está ali, pela imagem daqueles livros. Gravar o disco no ateliê da Mari teve um pouco disso. A gente estava imerso pela criatividade dela o tempo todo com as telas ali montadas, os pincéis, estava tudo ali ao redor. E isso estimula mesmo, estimula visualmente e criativamente.

Apesar de você ter dito não ter claras na cabeça suas referências musicais diretas, se você tivesse que compor um moodboard desse período de composição do disco com o que você estava consumindo, em qualquer formato de arte, como seria?

Eu acho que se tivesse que compor esse moodboard, o principal vem do Cy Twombly que sempre foi meu pintor favorito e que é o tema da minha tese de mestrado. Então as pinturas dele com certeza influenciaram. Inclusive a frase “o mar é branco” (presente na faixa “Carne Mármore”) é dele. Acho que só os pintores mesmo pra abrirem nossos olhos desse jeito. Se a gente olha pro mar, pensa que ele é azul e muito raramente é azul.

Na Europa, o mar é branco. Ou marrom. O mar é azul no Caribe. Azul claro, esmeralda. Quando eu falei pra Mari, pintora também, que o Cy Twombly dizia que o mar é branco, ela disse que era mesmo, obviamente. Então essa metáfora me pareceu muito boa porque o mar é branco na Europa, que é onde eu estava mental e fisicamente e o mar é branco também quando ele quebra nas pedras.

O que me lembra que eu estava estudando para o mestrado e um filósofo, não me lembro exatamente qual, disse que os processos da memória se assemelham às ondas do mar. São sempre a mesma coisa, mas sempre diferentes. Elas ficam indo e voltando. Então é uma metáfora. Por isso pensei que era assim que eu tinha que terminar o disco mesmo, com essa imagem de que o mar é branco. Por coisas assim que o Cy Twombly me inspira muito.

John Frusciante também é uma grande inspiração para mim como compositor, principalmente na energia que ele coloca nas músicas e na simplicidade que as músicas dele têm. Claro que a guitarra dele é uma coisa super sofisticada, mas, harmonicamente, é super simples e é muito eficiente.

Acho que posso colocar a peça da Janaína Leite também. O disco já estava pronto quando eu assisti “Stabat Mater”, mas me identifiquei muito. Eu acho que essa triangulação é boa. Ah, música dos Balcãs é algo que inspira bastante a gente, eu e a Mari, por causa da nossa descendência. A gente tem um pouco de sangue cigano. Os dois. E é isso.

E como esse período todo no Porto te influenciou?

Morando em Portugal, conheci e me aprofundei mais na música portuguesa que eu conhecia superficialmente. Músicos como Fausto por exemplo, que são grandes nomes que eu finalmente fui ouvir a obra toda, acabaram contaminando.

Existe muito do clima, da personalidade da cidade com a qual me identifiquei. O Porto é uma cidade muito introvertida, sempre muito fria, nublada e chuvosa. São coisas que acabam interferindo no clima das músicas. Se você tiver um ouvido muito afiado, dá para ouvir Gaivota, dá para ouvir coisas da cidade do Porto. Então tudo isso está literalmente no disco. Eu acho que essa cor, essa névoa, que tem a ver com a névoa da memória também, tem muito a ver.

Mas, por outro lado, estando lá eu consegui olhar com distanciamento para o Brasil e renasceu em mim um interesse e um amor pelo Brasil. Pela riqueza da música brasileira e pela potência das nossas expressões culturais e nativas. O Brasil se define muito pela importação, o que tem valor é o que vem de fora. O Brasil nasceu com a colonização e depois passou pela colonização cultural dos Estados Unidos que é forte desde a nossa infância. E, inclusive, essa coisa do violão de nylon acho que vem de reconhecer de novo a beleza dessas coisas brasileiras que sempre estiveram ali, mas que pra mim e pra muita gente com certeza estavam esquecidas.

Algo que me chamou muita atenção no disco e agora durante a nossa conversa mais ainda, foi a quantidade de objetos, elementos, texturas — que fazem muito parte daquela construção de imagem que falamos no começo. Essas foram as principais coisas que você comentou que ficou lapidando no disco e procurando os melhores significados?

Eu acho que sim. Claro que existe aquele processo criativo que eu estava falando, existe uma inspiração e as imagens vêm. Você não sabe direito de onde elas vieram, mas depois que vieram, eu fiquei muito tempo polindo e cada substantivo ali tem o seu lugar.

Esses elementos todos, o calcário, o mármore, o marfim, que ficam se repetindo, representam um processo de sedimentação e calcificação ao longo do tempo. Que tem a ver com a imagem desse pai já engessado e com o tempo que demora para as memórias se formarem. Mas, sim, todas as coisas têm o seu lugar, eu tenho um pouco essa obsessão. E eu tenho esse jeito de trabalhar com imagens que é muito forte para mim. Tenho um pouco de sinestesia também, eu enxergo um pouco de cor ouvindo música, cantando e compondo. Então as minhas músicas pelo menos, todas têm uma cor específica, eu construo as imagens a partir da cor que elas já têm pra mim.

“As coisas que a gente mais gosta são as coisas nas quais a gente se reconhece. As coisas que me pegam e que me emocionam são as que têm a ver comigo, com as coisas que eu vivi. É como se isso validasse a sua existência”

Você ainda houve muita música por prazer?

Ouço, ouço sim. Quando eu estou compondo, sinto mais dificuldade de ficar ouvindo músicas porque as coisas acabam te contaminando sem que você perceba. Então, eu não gosto muito de ter essa interferência. Mas eu ouço sim. Eu só não sei o quanto é muita (risos). Com certeza menos do que quando eu resenhava três discos por semana pro Monkeybuzz.

Você se interessa se algum disco ou artista está sendo muito comentado ou sua relação como ouvinte acaba sendo mais individual?

Não, não me afeta muito. É claro que quando um disco é excessivamente comentado existe essa curiosidade natural, mas não costuma ser o que mais me interessa. As coisas que a gente mais gosta são as coisas nas quais a gente se reconhece. As coisas que me pegam e que me emocionam são as que têm a ver comigo, com as coisas que eu vivi. É como se isso validasse a sua existência.

É por isso também que muita gente fica muito brava quando sai uma crítica ruim para um disco que ela gostou. A pessoa se reconheceu naquilo. Todos os valores mais fundamentais daquela pessoa estão inseridos ali e, quando sai uma crítica negativa, a pessoa fica transtornada e pensa “então tudo aquilo que eu vivi não vale nada? É ruim?”.

As pessoas têm a imagem do crítico de arte como essa pessoa que vai dar um monte de cartada e desvalorizar um artista novo. Sendo que essa imagem do crítico é muito antiga, até existiu de fato, mas acho que é passado. Em geral, hoje em dia, o crítico de arte é a pessoa que vai olhar para as coisas com generosidade e de um jeito aberto, vai olhar com atenção. Normalmente, quem não gosta das coisas é o público em geral mesmo, crítico de arte normalmente é quem fala “gente, vamos olhar com calma, vamos pensar sobre isso sem ser tão reativo”.

Você tocou num ponto muito bom no qual eu tenho pensado muito nesses últimos tempos. Como você vê essa questão da arte como espelho? Como encontrar equilíbrio num momento em que se fala tanto sobre valorizar o que se afasta do que estamos acostumados ao mesmo tempo em que continuamos naturalmente buscando essa identificação?

Eu acho que existe essa primeira camada, que é gostar mais imediatamente das coisas nas quais você se reconhece. Isso em todos os níveis. Esses dias eu estava ouvindo uma música do disco novo do Fleet Foxes e sem prestar atenção na letra, a música me arrepiou. Semanas depois eu fui ler a letra e olhar com calma e me reconheci muito naquilo. Mas antes eu já tinha me arrepiado e não sabia que ela falava de uma coisa que eu tinha vivido também.

O que é um processo muito louco, meio mágico, místico. Não sei se já aconteceu com você de comprar um livro porque alguma coisa aleatória te chamou a atenção ou alguém te dar um livro que você inicialmente apenas deixa na estante. Até que anos depois, aleatoriamente você pensa que chegou a hora de ler e, quando você abre, fala uma coisa que está acontecendo com você naquele momento. É muito louco.

Mas dito isso, eu acho que todas as obras de arte têm alguma coisa pra te oferecer e você pode aprender muito se você tiver a paciência de olhar com calma e analisar criticamente. Mesmo as coisas que você não goste. No fundo, não importa se você gosta ou não, a obra tem o direito de existir. Se você tiver tempo e paciência para olhar para as coisas que você não gosta também, acho que você vai aprender muito sobre você e sobre o mundo ao seu redor. O problema é que entramos na questão de que pra isso precisamos ter tempo e muitas coisas que não valem a pena acabam exigindo muito do nosso tempo. Então é uma busca individual, vai do seu critério e do seu tempo. É sempre uma opção ir atrás de pessoas que façam esse filtro por você. Justamente críticos de arte por exemplo, que consomem muita coisa e depois escrevem sobre as melhores, as que eles acham mais interessantes e que tem mais a dizer. O crítico de arte tem esse papel hoje em dia, de tornar as coisas mais contundentes e filtrar, porque a oferta é muito grande.

Eu acho que você está sendo otimista demais, sendo realista você está descrevendo o algoritmo dos serviços de streaming, esses sim hoje em dia filtram o que a maioria tem consumido (risos).

É verdade, você tem toda a razão.

E como está sendo essa sua volta para o Brasil e principalmente essa ida para o campo? Como você imagina que sua vida e sua rotina vão mudar por aí?

Para contextualizar, depois de morar cinco anos no Porto, a gente voltou para o Brasil e viemos para um Brasilzão intenso e profundo aqui na fronteira do Mato Grosso do Sul. Quando eu estava em Portugal, acabei fazendo muita coisa, trabalhei como atendente de loja, vendendo roupa, e trabalhei também como cozinheiro e acabei ficando super envolvido nesse processo.

No começo de 2020 a gente veio pro Brasil, em fevereiro, para terminar de gravar meu disco pois faltavam teclados e algumas outras coisinhas. Aí a pandemia aconteceu quando estávamos no sítio, então acabamos ficando seis meses por lá.

E como disse, eu estava muito ligado na questão da comida. É um clichê dizer isso, mas a nossa geração perdeu um valor muito fundamental que é o de plantar comida e comer o que se plantou. É realmente um processo muito mágico e transformador se você estiver aberto para esta transformação. Então passamos a ter acesso a comida da melhor qualidade, a que a gente plantou sem veneno nenhum e colheu. Se você vai comer, você colhe imediatamente o produto mais fresco que existe.

Aqui a gente começou a aprender a olhar também para coisas acessíveis que se perderam na lógica das cidades. Você tem por exemplo as PANCs, os produtos alimentícios não convencionais, que estão super na moda agora. São ervas, plantas e outras coisas que as pessoas arrancam normalmente aqui na região. Elas passam veneno e matam essas PANCs pra plantar uma alface que é super difícil de se adaptar ao clima daqui. Só que, nesse processo, ela matou sete plantas comestíveis que poderiam compor uma salada. Então descobrir essas plantas nativas e esse valor da comida que estava esquecido eu acho super legal.

Aqui também a gente tem acesso a algumas coisas como a cerâmica. Outro dia cavamos um buraco no chão, tiramos argila, fizemos um processo de tratamento dessa argila e produzimos uma cerâmica do zero. Algo obviamente impossível na cidade. Em seguida cavamos outro buraco, acendemos o fogo, assamos a cerâmica e no dia seguinte estava pronto um vasinho de barro. Esse conhecimento na cidade é super distante, caro e especializado. A gente se empolgou com o quanto é fácil, acessível e é barato fazer algumas coisas. Transmitir esse conhecimento para as pessoas daqui mesmo, para os vizinhos. Todo mundo ficou encantado com nosso vasinho.

Outra situação legal aconteceu com uma vizinha que tira leite de vaca criada no pasto, a coisa mais incrível. Mas ela não sabia fazer iogurte. Então eu fiz um iogurte super simples pra ela,  que ficou chocada. A palavra que vou usar é forte, mas é perceber uma soberania da vida, de coisas que não estão ligadas ao dinheiro, de coisas que não estão ligadas a processos intelectuais muito complexos. São coisas simples de fazer, tudo isso nos encantou muito.

Obviamente, isso refletiu no nosso processo criativo, porque quando a gente ficou preso aqui na pandemia eu não estava conseguindo imaginar como é que eu conseguiria fazer o show do Píncaro. Eu não tenho dinheiro para contratar os músicos, vou precisar achar um produtor para conseguir organizar, não temos onde ensaiar, vou precisar fazer toda uma logística que eu não sei direito ainda como fazer.

Aí foi aqui que percebi que o show seria apenas eu tocando violão. É isso que é seria o show e eu aceitei e entendi. Isso, obviamente, falando sobre um processo muito pessoal. Para muita gente é algo óbvio. Tem muito músico que já tem isso muito bem resolvido, mas pra mim não estava. Eu consegui entender que não precisa ser difícil, que eu vou tocar com meu violãozinho mesmo.

E numa parte mais prática, como vocês veem o dia a dia de vocês mudando?

Eu acho que a grande vantagem é que a gente tem um espaço para criar. Esse é o grande lance, o grande luxo de estar aqui isolado. Eu posso tocar violão a hora que eu quiser. Se eu tiver uma inspiração às 3h da manhã, estou livre para pegar o violão. E a Mari vai ter um espaço de trabalho sem precisar pagar um aluguel pra casa e outro pro atelier. E também existe um pouco uma questão política de estar aqui. Primeiro de restaurar uma terra que é só pasto. E depois de estar vivendo num lugar onde pouquíssima cultura alcança, um lugar que está fora da nossa bolha, separado dos grandes centros.

Claro que que todo lugar tem sua cultura, mas as pessoas aqui têm interesses fora da cultura específica que rola por aqui. Mesmo quem gosta de música sertaneja, por exemplo, é muito difícil a pessoa aprender a tocar viola, a tocar violão. Existem poucos lugares para aprender a tocar. Claro que existe YouTube hoje em dia, mas mesmo assim faz uma diferença. Então existe esse desejo de no futuro estimular coisas culturais respeitando o que já existe aqui, claro, a partir do que existe, sem chegar impondo as nossas verdades e os nossos desejos. Mas de ajudar a fazer acontecer o que já está acontecendo por aqui.

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Autor:

Nerd de música e fundador do Monkeybuzz.