Jadsa e João em narrativas sonoras

Os dois artistas baianos falam sobre a parceria no EP “Taxidermia”, inspirações que vão de Gilberto Gil a Smashing Pumpkins e dividem valiosas lições aprendidas no mundo do teatro

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Fotos: Caio Terra

“Um lance que me guia muito pelo pensamento musical é o interesse pelo som enquanto objeto sonoro”, conta João Meirelles. “O som é uma matéria física, é algo que existe fisicamente, a nossa relação com isso é abstrata, a música é abstrata, os termos sonoros são abstratos, mas o som não é. O que a música eletrônica permite fazer ー e abre isso enquanto conceito para o mundo ー é o entendimento do som como objeto moldável, você pode esculpir, transformar o som em outras coisas. Você pode construir narrativas musicais, sensações a partir de som”. Taxidermia (2020) é música de encontro. Lançado em meio à pandemia, sob sérias recomendações de isolamento social, o EP, desenvolvido desde o meio do ano passado, é uma soma de duas potências criativas baianas e se constrói a partir da vontade de trafegar por caminhos sonoros profundos.

Jadsa Castro, de 25 anos, e João Meirelles, de 35, se encontraram pela primeira vez no Teatro Vila Velha. Filho de Márcio Meirelles, diretor e administrador do Vila Velha, e Maria Eugênia, atriz e professora de escola de teatro, João cresceu convivendo com o mundo das artes cênicas. Em 2004, ele compôs sua primeira trilha e, 10 anos depois, com uma proposta ousada, João deu a sorte de contar com Jadsa no elenco. “A tarefa nossa era fazer uma música para uma peça em tempo real, tudo ao vivo, e quem iria tocar seriam os atores”, conta o artista soteropolitano, “Jadsa e Caio [Caio Terra, baixista] salvaram tudo. Jadsa trouxe amigos que tocavam, então acabou virando uma banda mesmo, que segurou lindamente a trilha do espetáculo. Aí começou a troca”.

A música nunca foi estranha para Jadsa – os palcos eram intimidadores, mas a música não. Em bandas de Rock desde muito nova, a multi-instrumentista soteropolitana tem familiaridade com compor e tocar, como um antigo e conservado hábito. Curiosamente, um dos elementos mais fascinantes sobre Jadsa é o que a apavorava na adolescência: a presença no palco. Jadsa encanta, provoca, transmite. Um show de Jadsa é uma descarga criativa e a sinergia da banda entrega música experimental contemporânea com um quê de graciosidade e força dos mestres da popular brasileira.

João já viu sua relação com o mundo enquanto artista se transformar muito: a princípio, ele não se considerava um músico de palco, voltando-se mais para composição e produção, além da fotografia. Ao entrar no BaianaSystem, banda a qual pertence hoje, o artista viu sua premissa se inverter: palcos uma vez por semana, viagens, experiências coletivas, o outro lado do holofote marcado de forma mais nítida e contato com públicos cada vez maiores. Hoje, com a pandemia, a dinâmica se alterou novamente. Sem shows, João passa a maior parte do tempo no estúdio, dividindo seu tempo entre projetos e aulas de produção musical.

Depois da experiência do Teatro Vila Velha, ele e Jadsa já tinham feito um EP juntos, Godê (2015), trabalho de três faixas. Jadsa parece ser uma pessoa que cria a partir de laços: quando ela confia em seu olhar, caminha por perto. Grande amigos, os dois artistas, apaixonados pela música e seus tantos caminhos, construíram uma intimidade criativa poderosa e que ainda deve render muitos projetos por aí.

Em uma chama de vídeo em conjunto, os dois falaram sobre essa afinidade, empalhar sons em Taxidermia e as experiências da carreira solo – que vêm acompanhadas de agridoces lições.

(Foto: Tiago Lima)

O que seus pais escutavam de música?

JADSA: Minha mãe gosta muito de Luiz Melodia, sempre gostou muito de chorinhos assim, música instrumental. Então Gilberto Gil, Jorge Ben bastante, acho que tinha muito um lance da música afrobrasileira, afrobaiana. Eles escutavam bastante essa cena de Salvador.

JOÃO: Nossa, meus pais têm papel fundamental na minha formação de música. Meu pai e minha mãe sempre me jogaram para a música no sentido de curtir ouvir e também de tocar. Minha mãe me estimulou muito mais para um lado brasileiro, um pensamento de uma música brasileira profunda: sertão, mestres populares, então isso tem muito peso na minha formação. Meu pai é muito eclético também, sempre tive muito acesso a discos, de música erudita à contemporânea, experimental, Rock. Quando eu comecei a tocar guitarra com 13 anos, meu pai já jogou logo na cama: “Quer tocar guitarra? Tem que ouvir isso aqui, BUM, Jimi Hendrix, B.B. King”. Comecei a tocar violão, minha mãe já: “Venha cá, vai cantar! Cante, está desafinado, olha a nota”. Curtindo, brincando junto, mas nessa função de estimular mesmo.

Quantos instrumentos vocês tocam cada um?

JADSA: Eu sou curiosona, né? O primeiro instrumento da minha vida foi bateria, com 11 anos. Passei para cavaquinho, guitarra, baixo, voz, percussão…

JOÃO: Eu me enfiei nesse mundo da eletrônica, então me considero instrumentista mesmo de Live electronics, mas tenho guitarra como instrumento de formação, estudei violão. Sempre fui esse músico de trás do palco, estudei milhares de instrumentos ー clarinete, harpa, percussão, piano ー, só que rapidamente. Como fiz escola de música, fiz composição na UFBA, tinha matérias em que eu tinha que pegar os instrumentos, então, tive dois anos de piano obrigatório, por exemplo, mas nunca fiquei em nada. As coisas aqui do lado [equipamento de live electronics] estão falando mais alto agora.

JADSA: No Taxidermia você gravou guitarra, né?

JOÃO: Gravei! A guitarra é uma ferramenta para mim agora, faz parte do meu arsenal de coisas que posso fazer para produzir música, para compor. Tenho aqui a guitarra, o violão, instrumentos de percussão no armário.

Como nasce Taxidermia?

JADSA: Taxidermia veio de uma vontade de fazer uma parada para o lado mais experimental, da gente ir pesquisando as coisas e fazer do jeito que a gente quer, sem seguir muito alguns parâmetros e gêneros. Começamos a botar isso em prática logo quando a gente começou a gravar o Olho de Vidro [disco de estreia de Jadsa produzido pelo João, ainda não lançado]. Já tinha essa palavra, “taxidermia”, na minha cabeça pela relação com o Olho de Vidro, sempre falo isso, porque costura esse enredo: o olho de vidro é o último detalhe de uma taxidermia. Acho isso muito simbólico com um conceito que a gente queria expressar: da pesquisa, de estar aqui dentro, de estar isolado, sabe? Essa onda de querer expor isso de uma maneira expressiva. Aconteceu na metade do ano passado, a gente já sabia que ia fazer o Olho de Vidro e falamos “pô, seria muito massa se a gente pudesse criar livremente”.

JOÃO: Gravamos guias de guitarra e voz, só tinha essa indicação da música: como Jadsa tocou na guitarra e como ela cantou. A única que teve mais indicação de ideia foi “Secante Caju”, porque já veio a partir de uma experimentação que a Jadsa fez. Eu não tenho essa preocupação de gênero, não penso música nesses termos geralmente. Vou fazendo as coisas e elas vão dizendo o que são. Jadsa também é muito livre na questão de para onde levar o som ー ela leva para o Rock, Reggae, brazuca, macumba, intenção de candomblé.

JADSA: Acho que a gente traduziu o visual para o som. Talvez por isso que o Taxidermia tem esse lance meio sonoplastia, que é você conceituar sua visão no som.

(Foto: Kalinca Maki)

Três discos de música brasileira que todo mundo deveria ouvir.

JOÃO: Expresso 2222 (1972).

JADSA: Refavela (1977) ー sabia que ia vir dois Gil! Rapaz, eu vou indicar Beleléu [Leléu, Eu, de Itamar Assunção, 1980] lógico.

JOÃO: Da Lama ao Caos, Chico Science(1994).

JADSA: Bom! Nossa, o segundo disco da Cássia Eller.

JOÃO: Tô pensando no terceiro….

JADSA: Todos os Olhos, do Tom Zé (1973).

E o da Cássia?

JADSA: Da Cássia eu entendo a importância, mas é uma menção honrosa, vou ficar com os compositores.

JOÃO: Essas coisas eu sempre gosto de pontuar que é desse minuto. Daqui a 20 minutos eu posso escolher 3 completamente diferentes. Então, vou colocar um disco da infância, que é do coração: Cabeça Dinossauro, do Titãs (1986).

JADSA: Bem canceriano!

Qual é a primeira coisa que um músico ou banda deve saber antes de fazer um primeiro EP ou disco?

JOÃO: Saber ouvir. A si próprio, as referências. Ouvir é a indicação primeira para qualquer músico fazer qualquer coisa. Para tocar junto, ouvir o outro. Para começar a aprender a tocar, ouvir muita música, outros instrumentos. Tem que estar antenado, ouvindo o mundo. Meio estranha essa resposta, mas eu acho que é isso.

JADSA: Para mim, é pensar. Gosto do ouvir, mas o pensar é muito importante na hora que você está gravando porque uma coisa que você bota mais ou menos, você pode se arrepender. Pensar como a música vai chegar, duvidar das coisas.

JOÃO: Isso é a produção musical: entender o que o som propõe, o que você quer do som e como realizar isso na prática ー com todas as variáveis. Por exemplo, “ah, a gente é uma banda que está começando, toda orgânica, não tem grana para gravar no estúdio, vamos gravar tudo na casa do brother” ー como fazer isso? Qual é a melhor forma de fazer assim? Quem já fez assim? Quais discos foram feitos assim? Como eu posso tirar o melhor proveito dessa situação, em vez de isso ser uma deficiência? Assim que é, assim será, então a pergunta é como fazer isso ser a coisa interessante do disco. Isso não significa estar congelado a uma ideia, as coisas vão acontecendo e você vai precisar reciclar essa ideia inicial. Isso tem que ficar sempre fresco.

JADSA: Se você ouviu e pensou, está certo do que você quer, só grava. Mas, pelo menos, escuta, pensa, vê se é isso mesmo porque, assim, som bom todo mundo está fazendo. Mas tem que trazer outros conceitos, estudar um pouco mais para falar de algumas coisas, tocar outras, ter uma responsabilidade consigo e com o outro.

JOÃO: E sempre dá para aprender com as situações e com os outros. Então, estar aberto a isso é importantíssimo. Estudar de todas as formas: conversando com as pessoas, trocando experiências, vendo uns vídeos, lendo, fazendo curso, tudo. Fazer música é muito sensível, então acho importante buscar equilíbrios: seguir intuição, mas também começar um estudo. Se você está trabalhando com outra pessoa, saber botar sua ideia e também saber deixar sua ideia ir embora. Música são relações.

“Acho que a gente traduziu o visual para o som. Talvez por isso que o ‘Taxidermia’ tem esse lance meio sonoplastia, que é você conceituar sua visão no som” – Jadsa

Como produtor musical, o que é preciso ter para conseguir desenvolver uma assinatura nos seus trampos?

JOÃO: Eu acho perigoso a ansiedade por identidade. Não acho que o artista deve buscar identidade logo ー como um todo, seja músico, fotógrafo ou artista visual. Acho que isso vem com a maturidade, vai chegando aos poucos. Mas, enfim, ser sincero com a pesquisa, se aprofundar em pesquisas que você realmente curte e ir atrás do que te dá mais vida é o caminho. Estudar muito, pesquisar, fazer, errar, tentar de novo.

JADSA: A gente nasce representando alguma coisa. Feminino, masculino, preto, branco. Quando você tem uma representatividade que você aumenta de maneira respeitosa, você se comunica melhor, sabe?

JOÃO: Eu falo isso muito no sentido da estética, né? De buscar um estilo. “Eu faço som assim”, “meu traço do desenho é esse”, acho que isso engessa. Até os artistas que eu gosto mais são artistas que explodem isso, se explodem o tempo todo. As cabeças que eu mais admiro são essas cabeças, que se botam em desafio o tempo todo, se permitem se modificar ー Gilberto Gil, David Lynch. Admiro muito isso.

Uma música que vocês gostariam de ter feito.

JOÃO: “Bolero de Ravel”. Tem várias, tem tanto disco que eu queria ter feito. Isso é legal porque tem coisas que a gente gosta muito, mas sabe que a gente nunca faria, e tem coisas que é exatamente esse porra queria ter feito isso. Tem esses dois gostares.

JADSA: “Cinco minutos”. Nossa, tem uma faixinha do The Smashing Pumpkins que chama “Sweet Sweet”, é linda, com uma vozinha assim que nem “Cinco Minutos” que ele começa pedi para você esperar cinco minutos só, você foi embora…

JOÃO: Nossa, essa é incrível. Queria ter feito o arranjo de cordas desse disco todo.

“Não tenho preocupação de gênero, não penso música nesses termos geralmente. Vou fazendo as coisas e elas vão dizendo o que são. Jadsa também é muito livre na questão de para onde levar o som ー ela leva para o Rock, Reggae, macumba, intenção de candomblé” – João

Pior perrengue que você já passou no palco.

JOÃO: Já sei o meu! Foi uma participação que o Baiana fez no show de Carlinhos Brown em um projeto dele, lá no Museu do Ritmo, foi lá atrás, antes de Duas Cidades (2016). Eu tocava só com computador, sistema de som e tinha um backup na minha mochila. Deu pau, troquei. Deu pau de novo. Com dois computadores e duas placas de som, a gente conseguiu tocar uma música e meia. O resto do tempo foi perrengue, tentando botar o computador para funcionar e nada ー assim, inexplicável. Quando finalmente consegui, o brother esbarrou no USB do computador e quebrou a minha placa. Joguei as mãos para o alto e desistimos ー porque nem era nosso show, era uma participação, então tinha tempo contado. Se fosse nosso show, até poderia pedir para o pessoal esperar. Claro que você chega em casa, monta tudo e funciona. Mas foi meu pior perrengue, 5 mil pessoas na minha frente sem conseguir tocar. Foi um divisor de águas, depois desse show eu passei a tocar de outra forma ー sem computador, com equipamentos dedicados à música eletrônica, máquina de sample. Demorou, mas o show foi o marco que eu precisava ter um sistema mais confiável. Depois de vários anos, consegui completar isso.

JADSA: Meu maior perrengue é uma coisa que eu fazia muito. Não foi uma, foram algumas vezes. Anunciava show, botava meu nome no cartaz, nesses palcos aberto,  e, quando chegava lá, eu ficava tão ansiosa que eu passava mal, perdia minha voz ou ficava enjoada, ficava com febre. Teve um dia que eu fui e tinha duas pessoas na plateia, ninguém em cima do palco, tudo montado. Comecei a me tremer. Fui falando para as pessoas tocarem na minha frente, quando chegou na minha vez eu peguei meu violão e parti a mil, fui embora. Eu era muito envergonhada mesmo. O teatro mudou o que eu faço com meu rosto, meu corpo, tudo.

Melhor experiência no palco, a mais gratificante, o “é sobre isso”

JOÃO: Pô, eu tenho algumas. O fato de já ter dividido palco com algumas pessoas como Gilberto Gil, Tom Zé, Ney…sensacional. Fora do Baiana, com Arthur Lindsay, que também admiro muito. Tocar com pessoas que a gente admira sempre dá um sentimento diferente. E tem situações que são mais mágicas, de sei lá por que você ter essa sensação. No Baiana, já rolou vários momentos assim. Tem um show de Lençóis que foi lendário para a gente, mas é sobre a magia do momento.

JADSA: Para mim teve um show aqui em Salvador, do Festival Radioca, que mudou uma percepção da música, do que a gente poderia alcançar fazendo o nosso caminho. Toquei na mesma noite que teve Curumin, QuartaBê, Metá Metá, foi uma noite muito especial. Outro show foi na Casa do Mancha, em São Paulo, foi a primeira vez que eu toquei com as backing vocals, foi importantíssimo, eu fiquei realizada porque as meninas são incríveis, a banda é foda. E teve também o 2 de fevereiro desse ano, eu, João, Caio e Kiko Dinucci ー foi rápido, mas foi tão barril que a gente já fez músicas do Taxidermia, foi lindo demais, mais de 10 mil pessoas.

Uma coisa que você aprendeu com o tempo e que gostaria que tivessem lhe dito no começo da sua carreira.

JADSA: Me disseram, mas eu não dei muito ouvidos porque eu sou meio ansiosa. Eu fui gravar uma faixa, “Jabuticabeira” ou “Oxumaré”. Eu tava tentando cantar, eles super animados, cheguei lá e falei “poxa, não to gostando, não sinto que minha voz é assim”. Tadeu olhou para mim e disse ‘Jadsa, isso aí eu vi a minha vida inteira, relaxa, você tem uma voz incrível e quando você tiver controle disso vai ser surreal, você só precisa de tempo’. Esse aviso eu tive: você só precisa de tempo. Mas é muito difícil para a gente, né? Agora eu entendo, consigo controlar melhor a minha voz. É só tempo.

JOÃO: Tem uma coisa que eu aprendi no teatro! Terminou seu show, sua peça, não pergunte o que acharam a não ser que você queira realmente ouvir de uma pessoa que você realmente confia. Terminou seu show, fique de boa, curta. Se foi uma merda, curta também, esqueça. Se apoie nas pessoas que gostaram. Na maioria das vezes, foi horrível para você, mas para as pessoas foi massa. Saiba separar esse ambiente da sua sensação no palco e da resposta das pessoas. A percepção do que você faz na arte sempre vai ser completamente diferente das pessoas, você vai fazer uma parada com uma intenção, a pessoa vai perceber de outra forma e é assim, é ótimo que seja assim.

JADSA: Essa dica que você falou vale para a vida. No teatro tem muito disso: você está fazendo o que você quer fazer, se fosse para ficar bom ou ruim, você estava ensaiando. Se você está fazendo, já está pronto.

JOÃO: E tem aquela coisa que você vai saber se a pessoa gostou ou não, mesmo ela falando que foi massa. Você vê no olho. E você não precisa dessa informação logo depois que você saiu do palco, você pode deixar para outro dia. Se você não quer saber, não pergunte. Pô, que bom que você veio, vamos tomar uma…

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