Antes de se tonarem a dupla Kenan & Kel – de 16 shows por mês, turnês pela Europa e coletivos cujas festas têm ingressos esgotados –, Pedro Henrique Araújo e Edison Gomes Júnior eram amigos que curtiam os fluxos e as festas de chacrinha em Campinas. Pedro cresceu na Vila Costa e Silva e passava as tardes no Jardim Eulina, na casa da avó, enquanto o pai estava no trabalho; Ed estava pela Vila Rica e região, englobando também o bairro Campos Elíseos. Os dois vinham de famílias religiosas, os dois eram vidrados em hip-hop e funk, os dois marcavam presença nos bailes de rua – e, como em uma providência do destino, os dois se conheceram em um curso técnico de fabricação mecânica, em 2014. O primeiro set, em dupla, viria apenas cinco anos depois.
Em uma conversa de mais de duas horas com Ed e Pedro, fica evidente como a dupla se entende – muito mais do que aquela do seriado de onde vem o nome artístico do projeto. Um completa as frases do outro; são recorrentes os “isso que eu ia falar”, as lembranças específicas em comum e as risadas pelos mesmos motivos. É notável como ambos enxergam a trilha traçada até aqui de forma similar – isso inclui a menção a momentos importantes do trajeto e a reverência a personagens fundamentais para o crescimento de cada um. E, especialmente, os dois estão em plena sintonia quanto aos próximos passos do caminho.
Mais sintonizados ainda eles ficam no momento de subir ao palco e assumir a CDJ. São sets intensos, inconfundíveis – e de mixagens arrebatadoras. O foco é o mandelão agressivo, mas há abertura para hits do funk, que vão dos radiofônicos a diferentes vertentes do gênero. São tracks cirurgicamente posicionadas, amparadas pelo domínio do instrumento de trabalho. “É levar a pessoa numa jornada durante a apresentação. E para essa jornada, a gente traz várias técnicas – que podem até passar despercebidas, mas tão ali”, explica Kel. “A galera pode nem saber, mas entendeu que foi leve”, completa Kenan. Mas eles deixam claro: “Isso não é regra. A hora que você não quer uma mixagem harmônica – é pum, fecha o loop, mexe no transpose, já dá um rewindzinho. Eu tenho a teoria que, se você trouxer a música de maneira certa, você faz a galera dançar qualquer coisa”, defende Kel. Essa mistura, cuja liga vem do funk e de tudo o que ele é capaz de produzir, foi denominada pela dupla como Música Popular Periférica Brasileira. “A gente nuca se denominou como DJ de bruxaria ou de mandelão. A gente se denomina como DJ de Música Popular Periférica Brasileira. E, por exemplo, ‘Parado no Bailão’ é mainstream? É. E também é um hit periférico”, reflete Kel.
O feeling para as pistas, a curadoria e as mixagens afiadas, além da entrega de shows que abrangem dançarinos (Maguin e Djoker) e jogo cuidadoso de luzes (Vitão), se tornaram uma marca da dupla e fizeram as agendas de shows lotarem, mês após mês. O reconhecimento catapultou ainda mais depois de uma sequência de virais no TikTok durante o último ano. São vídeos em que o protagonismo está no manuseio da CDJ e, claro, na energia do público. Veio, então, o convite para os shows na Europa, a partir da GH Booking, responsável pelo agenciamento dos DJs. Em março desse ano, a dupla passou por Milão, Roma, Barcelona, Londres e Paris, e vai repetir a dose neste mês, retornando às duas últimas cidades e incluindo Lisboa na tour. “Transmitir o que é o funk, para nós, lá para eles. Levar essa essência do Brasil”, sintetiza Kenan.
Mas, mais do que agenda cheia, turnês e virais, as conquistas de Kenan & Kel – ou “Os K” – estão no trajeto construído e percorrido com amigos. Além de serem sócios do estúdio Undersoil, eles – ao lado de Tresk, Vini Mariano, Pety, Clei e Jorge – são parte da produtora 808, responsável pelas festas Submundo, Essence e Bounce. O coletivo nasceu com o objetivo de oferecer lazer, música e cultura à população periférica, com estrutura de som, de bar e preços acessíveis – e sem distinção de tipos de ingresso e possibilidade de acesso pelo evento. “A 808 nasceu da busca por equilíbrio. Ter um som bom, uma luz boa, uma estrutura foda, artista foda e um preço acessível. Para manter, financeiramente, é um processo complicado – aí começam as parcerias, os amigos. E dá para fazer acontecer. Por que o rolê nosso tem que ser no lugar mais afastado, com som ruim?”, questiona Kel. “A quebrada não merece só isso”, completa Kenan. “Por que a Heineken não pode patrocinar nóis? A Red Bull? O que falta para essa galera olhar para nóis? Falta a gente ir fazer acontecer? Então, bora fazer acontecer”, resume Kel.
Os triunfos da carreira do Kenan & Kel têm base em uma aliança equilibrada entre talento e dedicação; disciplina e leveza; paciência e vontade; profissionalismo e afeto; uma empresa e um grupo de amigos. Aqui, eles traçam uma linha do tempo, passando por cada marco da – ainda breve, mas com certeza prolífica – jornada até o momento, dos fluxos e chacrinhas à Europa. No meio do percurso, falam sobre o poder da mixagem, a história que constrói um set, mandelão e mainstream e ídolos que se tornaram amigos – e amigos que se tornaram ídolos.
Antes do começo
Kel: Venho de família de músicos, mas não profissionais. Família de músicos que gostam de música. Muito por causa da igreja – minha mãe é uma pessoa bem religiosa –, onde meu pai sempre tocou violão. Minha irmã, quando começou a ter certa idade, já começou a cantar. E eu comecei a acompanhar. Lembro até na época da igreja que meu pai ficava no violão, minha irmã cantava – e eu ficava ali na parte de trás, vendo meu pai tocar e tal.
Meu pai sempre teve instrumento em casa – violão, cavaco, sempre desenrolava. Como criança, são as primeiras memórias que eu tenho. Quando tava um pouquinho maior, perto da adolescência, a gente formou um grupo de pagode, chamava De Improviso. E aí foi quando comecei a ter contato com música, na questão de instrumento mesmo, de tocar. Tocava pandeiro, depois me interessei pelo violão, fui aprendendo. Com uns 15 anos, sabia tocar violão, cavaco, teclado, instrumentos de percussão. Não só na parte de tocar – eu ouvia música, dançava. Quando criança, foi uma parada que curti pra caramba.
A gente se apresentava bastante em quermesse, tá ligado? Já tinha um contato com o palco. Eu cantava “16 Toneladas”. Lembro de quermesse que eu era criança, subindo no palco, e errei toda a letra [risos]. E foi esse contato, bem antes a começar a mexer de fato com as paradas de DJ.
Na adolescência, eu ouvia muito rap – Racionais, Facção Central, Trilha Sonora do Gueto, RZO. Lembro que a gente ouvia muito em casa, a família toda. E antes também tive uma fase rock [risos], ouvia Queen, AC/DC, Guns N’ Roses, até Slipknot e System Of A Down. Mas eu não fui tão do rock, não, de saber todas as bandas. E mesmo nessa fase do rock, eu sempre tava ouvindo rap e funk também. Mas em casa, por minha mãe ser mais de igreja e tal, não era o funk putaria, o proibidão. A parada não era um bagulho que eu podia jogar no som de casa, uma putaria alta e tocar. Era um ambiente familiar, com vó, mãe, parente vindo em casa… Mas veio com o rap. Quando eu tava no meu momento, no meu fone, aí eu já curtia. Furacão 2000, Bonde do Tigrão. E pô, não é funk, mas o É O Tchan, um axézão? Não sei por que eu ligo tanto. Talvez a parada da letra maliciosa e tal…
Kenan: Meu pai é do repinique na escola de samba do bairro, então ele ia para todo lugar tocar. Em casa, meu pai escutava muito Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Alcione… Essas coisas tinham em casa a rodo. E minha mãe é evangélica desde sempre. Então, em casa, do lado dela, era louvores. Mas nenhum dos dois lados me prenderam muito, sabe. Conforme fui crescendo, a primeira lembrança que eu tenho de estar vidrado em música foi com o hip-hop, a Coletânea 100% Black, nos anos 2000. Essas lembranças: eu na sala assistindo os clipes direto, isso criancinha. E tanto que minha mãe não me deixava ver vários, porque eram meio pornográficos [risos], aí minha mãe já embaçava.
Mas desde criança, eu era viciado em hip-hop, em 50 Cent, ainda sou. Fui crescendo, e meu pai ia trampar e me deixava na casa da minha avó, no Jardim Eulina, e me buscava depois, na volta do trampo. Uma época eu estudei por lá também. Tenho um primo da mesma idade que eu, a gente ficava na rua, brincando, até que chegou um momento em que, nesse bairro, rolavam os bailes de rua, o fluxo, lá no Morro do Macaco. Foi aí que eu comecei a ir, com o meu primo, nos bailes. Com uns 14, 15 anos, eu conheci o funk. Aí o funk… Esquece. Aí foi para sempre. Comecei a viver e escutar pra caramba. Funk, hip-hop, funk, hip-hop. Mas conhecendo as paradas na rua, acompanhando os rolês com outros moleques do bairro, mais do que vindo da minha casa. Nessa época – e até hoje –, o que a gente via eram os carros de som. Pen drive, CD e os carros com as caixas e o som alto.
Kel: Eu fui começar a ter contato com fluxo próximo dos 18 anos. Minha mãe era bem rigorosa em questão de eu descer. Se eu fosse descer, ia ter que ser de perdido. E é um bagulho que eu não fazia porque sabia que o coro comia depois [risos]. Aí um pouco mais maduro, comecei a colar. Porque minha mãe sabia que eu já ia conseguir me virar melhor se, por ventura, eu tivesse que correr da polícia ou tivesse alguma briga.
“A gente é DJ de funk, só que ainda assim o funk é muito aberto. Aí a gente pensou em Música Popular Periférica Brasileira, sem delimitação. Esse termo abraça o funk”
Pedrão & Ed
Kel: A gente se conheceu em 2014. Tinha um amigo em comum, e nós três entramos num curso técnico, de fabricação mecânica. E desenrolando essa amizade, a gente começou a dar rolê junto. Além dos fluxos de rua, a gente ia muito para a balada também. Menor de idade em uma ou outra, naquelas teen que tinha [risos].
Kenan: A gente ia na casa dos outros, e tinham aquelas PVT, as chacrinhas, tinha todo fim de semana. Antes das baladas, nas chacrinhas, tinham os DJs de funk, mas não mixavam muito.
Kel: Foi nessa época de chacrinha, de balada que, de fato, eu vi o DJ, o cara que tava ali para fazer a noite da galera. E eu vi muito de todos os estilos. Antes de ver muito DJ de funk, eu vi muito DJ de hip-hop. E a gente dava muito rolê de hip-hop, com vinil, DJ fazendo scratch. E foi o primeiro contato. Os primeiros contatos que eu tive com DJ de funk fazendo sempre uns trampos dahora, inclusive na quebrada, que tinha show pra caramba, eram os caras que faziam um set na MPC. MPC, para mim, ainda é um dos bagulhos mais chaves que têm.
Kenan: Conforme a gente foi ficando mais velho e indo mais em balada, rolaram os contato com os DJ. O Tresk é um cara que já fazia festa e a gente conheceu ele nessa época.
Kel: Tresk, Chacal, Piá, Brut, JP… A galera. Todos mais do hip-hop.
O começo
Kel: Em 2016, eu já comecei a ter mais contato com a parada de tocar. Tinha um rolê que era a Dope – que era do Pety e do Clei, que hoje são nossos sócios, e do Roginho também, na época. Era chamar a galera pro quintal, fazer um churrasco, colocar um som, hip-hop, e todo mundo se divertia ali. E, na época, eu tinha muito a brisa de escolher as músicas. Ia lá no YouTube, abria vária abas e já pensava “vou colocar essa na sequência”. Fazia o DJ YouTube ali. Foi o primeiro contato com a ideia de “tô colocando a música aqui e a galera tá pirando”. Aí nas festas seguintes, a galera já falava que eu “tinha umas músicas dahora” e que era para eu cuidar do som. E nunca foi fácil ter acesso a equipamento de DJ. O meu crescimento como artista veio muito junto dessa festa. Porque ela deixou de ser em quintal e virou uma balada. E quando virou balada, eu lembro que na época o Roginho comprou um equipamento e deixou à disposição para todo mundo usar. E aí que eu tive o meu primeiro contato com equipamento de fato.
Nerd do jeito que eu sou, já fui no YouTube e comecei a pesquisar: o que é um DJ? O que ele faz? Assisti aos DJs falando da parada. Porque antes eu era leigo. “É o cara que toca a música” Mas eu não tinha noção da complexidade, da história, de onde veio o DJ, por que tem vinil, por que tem controladora, por que esse botão faz isso, o que é mixagem, por que esse som mixa e o outro não. Quis entender o mundo da parada. Quando eu comecei, tocava mais hip-hop do que funk, mas sempre ali no final, soltava funk também. Eu consegui fazer uma grana, mas nada assim profissional. 80 reais ali, 100 aqui…
Kenan: E durante todo esse tempo, eu só curtia os rolês. Acompanhava e só tava para curtir. Aí rolou um momento de “e se a gente tocar uns funk?”.
Kel: Lembro que a gente ia pro pião junto, com o bonde, aí eu ia tocar e ele [Kenan] sempre encostava na mesa, perguntava o que eu tava fazendo e tal, aí a gente resolveu se juntar.
“O DJ tem que fazer a galera curtir a pista. Como ele vai fazer? Aí é dele. Um dos papeis é mostrar música nova, mas o público é exigente, nem sempre você vai fazer só o que quiser. A festa não é só para você. E, ao mesmo tempo, não tem que se render 100% e só sair soltando as mais tocadas” – Kel
Só funk
Kenan: A crescente de tocar só funk foi seguindo junto. A gente foi tendo mais reconhecimento por conta dos sets de funk e os contratantes começaram a buscar mais.
Kel: Mas mesmo a gente não tocando diretamente hip-hop, tudo o que a gente aprendeu tá ali. Mixagem é um bagulho que eu ouvi muito, é muito hip-hop, e a gente trouxe para o set de funk. A gente ainda tem muito do hip-hop, mesmo não tocando diretamente. Duas músicas de origem periférica pra caralho. Vez ou outra, a gente faz uma virada, coloca um sample de hip-hop.
Kenan: Sempre vão ter rastros.
Kel: E não teve um momento em que a gente resolveu parar com o hip-hop.
Kenan: Até se a gente quiser soltar uns hip-hop, a gente vai soltar e vai ser nervoso, tá ligado?
Kel: Pô, eu lembro que, ainda como SKRT [primeiro nome da dupla], a gente foi contratado e meteu um setzão de duas horas de house. De house, techno. A gente nichou um pouco depois para o funk, mas, assim, eu sempre tratei só como DJ.
Mandelão X Mainstream? Mandelão & Mainstream
Kel: Quando a gente começou a dar rolê, ir para o fluxo, a gente pegou o nascimento de uma parada, de uma vertente. O mandelão. Tava tocando nas quebradas, nas chacrinhas, mas não tava tocando nas baladas. E a gente enxergava que os DJs tocavam só mandelão não conseguiam ter acesso – e não deveria ser assim. Não era só preconceito, mas a galera ainda não tava nessa wave. Era uma época que a gente chama de “Era Kondzilla”. Então, pô, G15, “Bum Bum Tam Tam”, Kekel, tudo muito em alta. O mandelão era mais agressivo, o underground da parada, do fluxo de rua. A gente sempre quis ter uma estética mais rua e queria trazer um mix. A gente nuca se denominou como DJ de bruxaria ou de mandelão. A gente se denomina como DJ de Música Popular Periférica Brasileira. E, por exemplo, “Parado no Bailão” é mainstream? É. E também é um hit periférico. A gente nunca viu problema em ir para uma coisa mainstream no meio do set. Puxar um Dennis DJ com Kevin o Chris. Esse mix. A gente curte mesmo mandelão agressivo pra caralho, mas vamos trazer uma nostalgia, um bagulho inesperado.
Kenan: É nostálgico, abraça a galera no momento do set. Dá para ver na hora que a gente solta um hit. E é uma visão de set nossa, de que estar sempre no agressivo pode ser cansativo também. São alternativas para fazer uma wave legal de festa, trazer músicas em momentos como esse. E surpreender. Não só no áudio, mas na luz, na dança, em tudo.
Kel: É um jeito dahora de apresentar estilos para quem não conhece. Às vezes, vou pegar um hit ali e eu vou loopar aquele “o popôzão no chão” e jogar o som que é o que eu quero mostrar de fato. O DJ tem que fazer a galera curtir a pista. Como ele vai fazer? Aí é dele. Um dos papeis é mostrar música nova, mas o público é exigente, nem sempre você vai fazer só o que você quiser. Você não tá fazendo a festa só para você. Tem gente para dançar, para curtir. E, ao mesmo tempo, você não tem que se render 100% e só sair soltando as mais tocadas. Só que é legal trazer um pouco do que a galera quer ouvir. Eu acho isso dahora, tipo “pô, cantei ‘Parado no Bailão’, altão, abraçado com o meu amigo, que momento’. Converso com quem acompanha a gente que conta as histórias, tipo “conheci minha namorada no set de vocês’. Tem que criar esses momentos – e não só com o que a gente quer. Ambientizar a parada ali.
“Tento fazer pesquisa pelo menos uma vez por semana, mas não é sempre que você acha as puras, né?” – Kenan
A playlist dos K
Kel: Hoje, a gente gosta de falar que tem uma playlist. Músicas que a gente fez a curadoria. A gente gosta desses sons, vamos colocar eles numa sequência? Vamos. O formato de show que a gente trabalha hoje tem dançarino, iluminação, a parte técnica da parada. Todos da equipe são capazes de improvisar, mas, pô, a gente sabe que alguém vai virar um mortal em tal música, eu não vou surpreender ele. Só que a gente tem que ler o público e hoje a gente não precisa nem conversar muito, é direto ali. A gente se olha, eu olho pro Vitão, pros dançarinos e a gente se entende. Tipo, geralmente no momento que eu ia dar uma acalmada e eu não acalmei, o Vitão já sabe que, “puta, mano, os moleque vai mudar” Ele já vai vim pra outra wave e aí é essa playlist que eu falei.
Kenan: Ou umas mudanças tipo “esse som o DJ passado já tocou” ou “essa música é do DJ que vai vim, vamos pular essa”, a equipe sente junto também. Tanto que no pen drive tem várias pastas com nomes de evento, tá ligado? Tem até umas que são parecidas, mas não são iguais.
Kel: Tem o momento de soltar efeito, de uma dança acontecer. É um projeto preparado. Mas a gente tem sempre o improviso enraizado ali. Tem muita virada que surge ao vivo, tem o feeling ali, só que, por exemplo, o Maguin e o Djoker, eles pegam uma sala de dança, ouvem as músicas e já sabem a coreografia específica. Já sabem quando tem o mortal, essas coisas. Tá todo mundo na mesma, mas tem a comunicação na hora também. E tem polêmica em volta disso, já vi galera cair não só na gente, mas em outros DJs também. “Ah é o mesmo set, não sei o quê”. É o formato que a gente trabalha, é proposital. É o nosso show, com equipe, que nem outro MC grande trabalha. Admiro os dois mundos, quem tem o bagulho mais pronto e quem vai lá e faz. É uma escolha de carreira.
Kenan: E tem gente que viu e gente que nunca viu. A pessoa que nunca viu quer ver aquele que show que todo mundo fala.
Kel: E se você me der um equipamento e um fone de ouvido, eu vou tocar e improvisar. Eu sou DJ pra caralho, tá ligado? Só que eu não tenho que provar isso para ninguém. Conheço os equipamentos, as músicas, me dá um fone, que eu vou desenrolar. Só que hoje o formato é show. E a gente sempre traz novidade, não cai na zona de conforto. E sempre respeitando o tempo da equipe. Não ligo para várias coisas, tipo “ah, meu camarim não tá assim e tal”. Mas como tá o som? Como tá a energia da galera? O palco tá iluminado? Vai ter espaço para os dançarinos? Vai ter iluminação para entregar todo o bagulho? Eu sou muito chato.
Kenan: E o trampo tá entregue nisso aí, né?
“A turnê na Europa foi um dos momentos mais chaves da minha vida. Transmitir o que é o funk, para nós, lá para eles. E são coisas que, se não fosse o funk, provavelmente eu não ia conseguir” – Kenan
A história do set
Kel: Nossos sets são uma história. Sempre gostei de tocar nesse estilo – de ter começo, meio e fim. Levar a pessoa numa jornada durante a apresentação. E para essa jornada, a gente traz várias técnicas – que podem até passar despercebidas pela galera, mas tão ali. Tem muita mixagem harmônica, que respeita o campo harmônico entre as faixas. E isso prende mais. Já teve uma galera que falou que “parecia a mesma” e a gente tocando umas oito faixas, porque a gente vira uma música por minuto, nessa média. E são técnicas de mixagem que a gente aprendeu muito com o hip-hop também. Claro, o público não vai sempre olhar e falar “tão fazendo uma mixagem harmônica”.
Kenan: E é um set com muitas técnicas, e a galera pode nem saber, mas entendeu que foi leve.
Kel: Sim, é tipo “foram oito minutos e eu tô só indo, dançando”. E isso não é regra. A hora que você não quer uma mixagem harmônica, que você não tá no tom, é pum, fecha o loop, mexe no transpose, já dá um rewindzinho.
Kenan: Corta, corta, corta.
Kel: E eu tenho a teoria, mano, que se você trouxer a música de maneira certa, você faz a galera dançar qualquer coisa.
Kenan: Fazer essa brincadeira das faixas conversarem de alguma forma. Talvez na primeira tentativa não seja boa, mas na segunda você já pode entender como funciona.
Kel: Se eu quiser jogar um tango, dá para fazer a galera pirar num tango, mas eu vou ter que mixar com algum bagulho, vou ter que fazer esse tango chegar forte.
Música Popular Periférica Brasileira
Kenan: Ser visto como um DJ de funk, mas sem rótulos, é o que é mais interessante, é o que mais dá gosto. Tipo “vou lá no show do Kenan & Kel na Sub, o que eles vão fazer dessa vez?”.
Kel: Tem os DJs que se denominam como open format, que leem a pista e vão fazer a parada. Só que a gente não queria ser determinado assim. A gente é DJ de funk, só que ainda assim o funk é muito aberto. Aí a gente pensou em Música Popular Periférica Brasileira, sem delimitação. Esse termo abraça o funk e, no set, pode até ter funk que não vem da periferia, mas o gênero, por si só, vem. A gente não se prende. Apesar de a influência de 80% do nosso set ser bruxaria de São Paulo. A gente não toca só isso. Mas, em festa, eu começo a ouvir a barulheira, meu ombro já vai, eu me solto. [risos]
Kenan: Eu ouço bruxaria no fone. Os mais calmos, né? [risos]. No colchão, assim… E do nada, já dormi.
“Muita gente produz funk. Muita mesmo. Acho que é o estilo que mais dropa música no mundo, em volume, se for juntar todos os canais” – Kel
A pesquisa
Kenan: Eu tento fazer uma vez por semana. Entrar nos canais de DJs que eu conheço ou aqueles canais tipo O Ritmo dos Fluxos, com vários DJs e os caras vão soltando. Soundcloud, óbvio, desde sempre. Eu busco fazer toda semana, mas não é toda semana que você acha as puras, né? Normal. Mas falar para você que vem aparecendo muito até sem procurar. Fui conhecendo mais DJs, acompanhando, e meu algoritmo é muito direcionado para o funk.
Kel: A gente costuma fazer muita pesquisa também quando viaja. E é dahora demais pesquisar funk. Muita gente produz. Muita mesmo. Acho que é o estilo que mais dropa música no mundo, em volume, se for juntar todos os canais.
Kenan: E não precisa de tanto para fazer o bagulho mil grau. No celular, o moleque já consegue fazer vários funk nervoso.
Kel: E aí acho que tem a sequência de ir para a playlist de funk mandelão, vamos ouvindo, aí acho lá: DJ Peu. Vou ver quem é, vou lá no canal e começo a consumir, consumir, consumir. A gente gosta de encontrar. Mas não encontrar o que tá fácil, o que todo mundo já achou.
Kenan: Encontrar aquelas músicas de 15 views.
Kel: Exato. Tem dois meses que lançou e ainda tá com pouco view. E é um bagulho dahora porque hoje sinto que, pelo que eu leio na internet, a gente consegue também dar visibilidade para essas músicas. Que nem o Kenan falou, de chegar até sem pedir. Tem DJ que manda o link para a gente: “tá aqui minhas músicas, até as que eu não lancei”.
A autenticidade e as receitas
Kenan: Ser autêntico é o que traz o diferencial para o público. Se você chegar num baile e não ver o DJ, não saber quem é o DJ, só ouvir, você vai saber que é a gente.
Kel: Óbvio que ter referências é importante, mas você não precisa seguir a regra. “Ah, se eu vou tocar funk, tenho que me vestir assim, tenho que fazer isso, meu story tem que ser assim, tenho que estar com mulheres de biquíni no clipe”. Isso é uma decisão minha. Se eu quiser sair da caixa, vou sair.
Kenan: Se abraçarem ou não, fé.
Kel: Tipo, não tem porque eu encher meu Instagram de uma vida que eu não vivo ou que não casa comigo.
Kenan: Ou postar algo forçado, que você nem quer postar.
Kel: Eu e o Kenan, no pessoal, a gente não é assim. Nós é uns mano suave. Tem a zoeira, a festa. Entre nós. Quer dizer que você não quer jogar as conquistas? Se às vezes eu conquistar um carro e quiser jogar uma foto lá no meu feed, ou que eu viajei, fui para a Europa. Mas ,assim, sou eu. Eu quero fazer isso. Não porque o artista tem que fazer isso.
Kenan: Tem que buscar formas de ter um contato com o público. Mas não é uma receita de bolo.
Kel: Tem N maneiras de fazer isso.
Produced By Kenan & Kel
Kel: Acho que a gente vem criando uma carreira sólida. Não é que estourou um hit ou apareceu num vídeo, aconteceu alguma coisa e pum: fomos jogados em um mundo de mais influência. A gente vem criando.
Kenan: Tudo o que aconteceu foi uma construção natural.
Kel: E hoje a gente consegue viver de música, mas ainda tem muito para conquistar. A gente não tem um hit no Spotify – e para ser DJ não é obrigatório ser produtor. Não que a gente não seja. A gente é. Tem música na rua, produz todo dia. Sabe fazer, mexer em tudo. Mas a gente sempre gostou de soltar trampo foda na rua. Tem esse apreço, esse zelo de fazer uma parada no nível que a gente gosta. Sinto que ainda dá para aprender mais. A gente já teve oportunidade de soltar música – solo ou como feat. – mas que, para a gente, não tava no nível. Já teve caso de DJ grande que deu um salve e falou “pula?”. Mas só pular? Eu quero estar dentro do bagulho, trampando. E o Kenan & Kel sempre foi na calma, tá ligado? Um passo de cada vez. E a gente nunca para de produzir. Pode não estar soltando, mas tá sempre envolvido com produção aqui no Undersoil.
Kenan: E principalmente, a gente quer que o som bata de verdade, porque ele vai fazer parte do nosso show, tá ligado? E não tem pressa. Vai sair uma parada foda, isso já é certo. A gente é muito cuidadoso, vai acontecer na hora que tiver que acontecer.
Imagina quando tiver vendendo o show e com vários ouvintes mensais? Esquece, moleque.
Kel: Rola uma cobrança, mas acho que é pessoal. É decisão artística. Muita gente fala de “timing”, tipo “o tempo é agora”. Mas eu sinto que, se a gente continuar trampando, a gente vai estar sempre ali, envolvido na cena. E de uma maneira prazerosa. Por isso que eu gosto do jeito que a gente trabalha com a GH Booking. É tipo “a gente acredita no trampo de vocês, mete marcha”.
Eurotour
Kenan: Foi um dos momentos mais chaves da minha vida. Transmitir o que é o funk, para nós, lá para eles. Ninguém da minha família nunca saiu do Brasil. E são coisas que, provavelmente, se não fosse o funk, eu não ia conseguir. E os bailes, claro, foram foda. Mas ter conhecido cada país, tá ligado? Na hora que eu virei na rua do Coliseu, fali “nossa, mano, tô aqui.” Olha onde a gente tá. Eu arrepiei, é muito louco. Ter assistido a um jogo no San Siro, fazer ligação de chamada pro meu pai, lá do Vaticano. E nos rolês, nem todos eram gringos, mas são coisas que os brasileiros sentem falta lá. Alguns disseram para mim: “mó saudade de casa”. Então, ir lá e levar essa essência do Brasil, muito foda.
Kel: Eu achei muito louco não só chegar, mas chegar com o mandelão, com música periférica. Na primeira conversa, a gente matou. “O que a gente vai fazer? A gente vai fazer o que a gente faz aqui”. Porque a gente sabe que se fizesse diferente dava para pegar mais balada, aquelas baladas hype, de gente rica. Se a gente quisesse sair do undeground, daria para ter voltado com dois carros na garagem. Só que a gente foi para ser o que a gente é. Lógico que tinha um nervosismo, só que na hora que eu olhava para CDJ eu pensava “Não tem um botão aqui que eu não sei o que faz”. É igual o peixe: jogou na água, ele sai nadando.
Kenan: E é por isso que chamam o Kenan & Kel, né? Para a gente fazer o que faz.
Kel: E a gente não passou perrengue, foi muito planejamento de todo mundo envolvido. Desde o artwork, a Vic, o Dedé, o Gui, o Vini, o Gabriel, o Vitão. Todo mundo pelo mesmo objetivo, foi levíssimo. A gente tem esse senso de equipe. Todo mundo é amigo.
Kenan: Foi mais até do que a gente esperava, tá ligado? As coisas foram rolando, aí trocava de país e continuava tudo certo.
Kel: E eu também fui o primeiro a sair do Brasil da minha família. Andei de avião antes dos meus pais, tá ligado? É um bagulho muito louco você chegar lá com a sua arte, com o funk de periferia e ainda poder comprar um bagulho, levar presente para pai e mãe.
Kenan: Minha mãe só pediu um souvenir – “um chaveirinho, alguma coisa para eu colocar aqui na geladeira”. Eu vou é levar um perfumão, mano. Foi marcante.
Ídolos-refs-amigos
Kel: Eu acompanho muito artista, mas muita referência e admiração vêm da galera que tá próxima, tá ligado? Chacal, desde o começo. O Tresk – já curti muita pista do Tresk sem nem conhecer ele. O Deekapz, quando eu conheci, me apaixonei. A autenticidade, o que eles representam no cenário musical. O Mu540, desde a época do Weird Baile, JLZ e o CLAP, o VHOOR. E em gêneros, o mandelão agressivo tem o meu coração. Mas na Era KondZilla ali, MC Dede, G15, eu chapava muito. Porque era o funk de chacrinha, clássico.
Kenan: O meu é a mesma linha dele, mais ou menos. Funk de chacrinha foi histórico. Mas o que eu mais gosto é o mandela. Só que o ritmado vem conquistando legal o meu coração também. E de ref, mano, é o 50 Cent, eu sempre vou falar isso [risos]. E o Jeeh FDC.
Kel: O Jeeh demais, mano. Quando ele mandou mensagem elogiando nosso trampo, o coração encheu.
Kenan: O Deekapz, óbvio. O Tresk.
Kel: E ref máxima é o Kendrick Lamar. Quando ele aparece, quando ele dropa um trampo, um clipe, é sempre um acontecimento.
Kenan: De sentar, pegar uma pipoca e assistir…
Kel: Quando alguém mexe com ele, igual o Drake mexeu…
OS K indo nessa…
Kel: O futuro acho que é dar ainda mais visibilidade para o funk periférico e passar essa visão para a galera. De independência. De fazer o seu corre acontecer e fugir das armadilhas do mercado musical. Acho que tentar ser, de alguma forma, um exemplo disso. Trazer amigo para perto, pegar gente da quebrada – e já tem muita gente que faz isso.
Kenan: E é crescer junto. Undersoil, Submundo, 808, 019, Aysha, Ruas, Dé, Black, Julião, Gabriel, Cava. Geral junto.
Kel: E ser um exemplo desse corre. Pô, e eu tenho muita vontade de expandir o show. Ter um show no Palco Mundo do Rock In Rio, tá ligado? Um show para um Rolling Loud. A gente sonha alto para ter peito de entrar nesses palcos assim. Confiante mesmo.
Kenan: E a gente ainda vai chegar, mano.
Kel: Mas para entregar nosso show, entregar a jornada e levar o funk para lugares cada vez maiores, crescer na carreira. Eu não tenho essa ânsia de fama. Eu quero é ter um nome na cena.