Kodiak Bachine, Alpa Kamashka e o lançamento de MUMIA

Pérola do underground paulistano que mistura Industrial, Post Punk e Ambient é lançada em vinil 32 anos depois; conversamos com o(s) autor(es) do projeto e os envolvidos na empreitada

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Fotos: Gabriel Finotti

1988 foi um ano intenso e transformador no Brasil: a abertura democrática fora, enfim, consolidada com a promulgação da nova Constituição e, com ela, veio a ratificação da liberdade de expressão cultural. Xuxa lançou o hit “Ilariê”, o festival Hollywood Rock acontecia oficialmente pela primeira vez no país e um Boeing da Vasp foi sequestrado por um suposto terrorista desempregado que pretendia jogar o avião contra o Palácio do Planalto para matar o presidente. Sem sucesso. Em meio a isso tudo, no mesmo período, surgia o MUMIA, uma parceria singular entre os músicos Kodiak Bachine, da banda Post Punk Agentss, e Celso Alves – marcada pela impossibilidade de rotulação sonora e construída à base de sintetizadores e baterias eletrônicas. Em rara entrevista, Alpa Kamashka, ser habitante do mesmo corpo de Kodiak Bachine, respondeu à solicitação de entrevista do Monkeybuzz em enigmáticos parágrafos expostos no decorrer deste texto.

Nas palavras da entidade, uma interessante definição. “MUMIA – um dos projetos musicais criados nos anos 1980, entre vários outros, tais como: Larga tXi tXa, C. Nemo´s Thoughts, Jungle Bells, Process Reprocessing Nun, etc. Alguns desses projetos foram lançados publicamente por meio de discos e vídeos. Entretanto, a maioria deles permanece inédita. Após o término da banda Agentss (1983), iniciei uma série de parcerias musicais. Realmente gosto de ‘trabalhar em duplas’ e mais tarde adicionar alguns outros artistas quando necessário. O resultado é mais rico e orgânico. Diferentes inputs/outputs, ações/reações nos processos criativos, assim acrescentando aspectos distintos e surpreendentes. Entre essas parcerias, a primeira ocorreu com o fotógrafo e videomaker Fritz Nagib que resultou no vídeo “Eletricidade” (1983). Posteriormente, para o meu projeto solo Kom Licença, Vou Rezar… (1985), trabalhei principalmente com o tecladista Paulo Edson e acrescentei um percussionista, Luiz Ferranti. MUMIA (1988) foi uma das últimas dessas parcerias dos anos 1980. As gravações se desenvolveram por puro prazer de estarmos vivos e não… mumificados… ainda. Mas conscientemente em contato com os reinos e legados dos falecidos. E por respeito e admiração a eles, fomos inspirados a continuar a linha musical de onde eles deixaram, que está presente em nossos DNAs e também no éter (akasha), frequências e padrões sonoros a serem traduzidos por nossos cérebros, sistemas nervosos, impulsos motores, dedos e ouvidos (internos e externos)”

Uma gravação do MUMIA, feita na casa de campo de Celso, no interior de São Paulo, foi registrada em fita cassete. O material inédito vem à tona em versão digital e vinil pelo selo Lugar Alto, responsável também por projetos de Leonardo Boccia e Zé Eduardo Nazário, que têm seus vinis caçados por colecionadores aficionados.

“Acho que nunca tivemos uma linha estética bem definida, acreditamos que é importante manter-se aberto para quaisquer gêneros musicais. Entretanto, olhando os nossos lançamentos, é possível ver que os instrumentos eletrônicos são bem presentes nas obras. O Leonardo mistura típicos elementos da música tradicional brasileira com baterias eletrônicas e sintetizadores. O Zé, no ‘Poema da Gota Serena’, combina sua percussão e bateria com as linhas sintéticas do seu irmão Lelo Nazario. MUMIA é o primeiro disco 100% eletrônico que lançamos, com um forte diálogo com o Pós-Punk, o Industrial e a música Ambiente. No fim, mesmo sem querer, os instrumentos eletrônicos formam o elo entre nossos lançamentos, mas nada impede que em um futuro próximo um disco integralmente composto por instrumentos orgânicos saia pela Lugar Alto” afirmam João Visconde e Rafael Toledo, criadores do selo e organizadores da rádio digital Veneno.

MUMIA teve o áudio Lo-Fi digitalizado por Ernani Napolitano e a master é de Arthur Joly. A obra é coberta de referências egípcias post mortem, traduzidas visualmente a partir de artes feitas pelo designer Gabriel Finotti (Sometimes Always), que utiliza textos de Kodiak. Segundo a gravadora, o trabalho articula “uma experiência cinematográfica e lisérgica das desérticas paisagens do país africano”. A faixa de abertura, “Ave do Deserto”, sinaliza uma viagem improvável por um universo de seres fantásticos, em clima mais etéreo. Na sequência, “L. Varrido” segue derretendo ainda mais o cérebro do ouvinte com sons ininteligíveis – é árduo identificar se eles provêm de pessoas, animais ou máquinas. A ideia de psicodelia atinge outro patamar em “Doctor Albert Hofmann Encontra Em Barcelona Os Irmãos Siameses (2 cabeças e 1 cérebro) ‘Pico & Peco’ Com Sus Sombreros a Admirar La Raponesita de Osaka”. Sem dúvida, até o criador do LSD, que batiza a faixa, admiraria a brisa se estivesse entre nós. Quando você pensa ter começado a entender alguma coisa, esquece, a chavinha vira totalmente e lá vem a perturbadora “She is Going to “The Hell” and Everybody Knows and Everybody Goes…”. Para finalizar, os ares pesam como cinzas em “Massacre da Serra Elétrica I” e “Massacre da Serra Elétrica II”. Não estranhe se, após o término das tracks, brotar uma ânsia incontrolável de ouvir tudo de novo muitas vezes. A cada audição, um novo detalhe ou nuance é reconhecido, e emerge um convite para diversas interpretações sem atingir uma conclusão. O disco reverbera em descompasso de transe genuíno.

Celso e Kodiak embaralham palavras em inglês, português, espanhol, francês e alemão, sem lógica aparente. Mas são deliciosamente debochados em alguns momentos e fugazes a ponto de mudarem totalmente de humor em segundos. Reina a imprevisibilidade constante. Munidos de synths, baterias eletrônicas e samplers, a sonoridade resulta em uma impressionante atemporalidade. A respeito disso, temos uma informação importante de Alpa Kamashka. “É muito prazeroso poder contar com parceiros musicais sensíveis e profissionais, técnicos de som competentes e logicamente equipamentos de boa qualidade, e com isso quero dizer, principalmente analógicos, porque a tecnologia digital… considero-a bastante enfadonha, niveladora. E em muitos casos soa débil e ‘artificial’. Especialmente durante a fase de mixagem. Destrói a espontaneidade, me deixa extremamente entediado. Claro que para algumas tarefas específicas, o equipamento digital é absolutamente útil, necessário e brilhante, mas considerando a maneira como aprecio trabalhar (basicamente ‘em transe’), esse método ‘tecnocrata digital’, por muitas vezes é bem moroso e ‘extenuantemente’ maçante! Obviamente, em vários outros casos, o ideal é o uso híbrido de tecnologias analógicas, digitais e outras ‘transdimensionais’”.

A elaboração do álbum ocorreu por indicação de Millos Kaiser, curador do lançamento e um dos sócios do Caracol Bar, em São Paulo, espaço da cidade reconhecido pelo sound system de alta qualidade e notável programação musical. Ávido por pesquisas profundas, gosto oriundo da formação investigativa de jornalista, o produtor caiu em um site totalmente old school do Kodiak com faixas do MUMIA, feito no estilo beta do começo da internet. “Meu primeiro contato com o Kodiak foi por e-mail. A primeira vez que eu escutei o som da MUMIA no site dele eu pirei, achei aquilo muito diferente de tudo que tinha sido gravado no Brasil naquela época, totalmente vanguarda. Escrevi elogiando e perguntei se ele tinha interesse em relançar. Naquele momento eu era sócio da Selva Discos, mas eu me desliguei da Selvagem e do selo. Porém, resolvi carregar essa descoberta, fiquei com isso um pouco na gaveta até que conheci o João e a Lugar Alto, achei que era o lugar perfeito para o lançamento. Resolvemos fazer o projeto. Logo depois, marcamos um encontro lá em casa. Ele é incrível, uma pessoa muito iluminada e muito diferente, que realmente opera em outra frequência, com outras prioridades e outra visão de mundo mesmo. Foi bem interessante conhecê-lo, depois nos encontramos algumas vezes em casa e fomos ao Caracol para oficializar o lançamento com o João e o Rafa, depois ele apareceu no bar como frequentador, virou um amigo bem especial”.

Questionados a respeito de quais elementos da obra do MUMIA mais despertaram a atenção da Lugar Alto, os dois, assumidos fãs da banda Agentss, não hesitaram em conhecer a indicação: “O Millos comentou do disco um dia no Caracol e logo ficamos muito ansiosos para escutar.  Ele já nos mandou o arquivo digitalizado. Na primeira audição, a autenticidade do disco já era muito clara. As letras eram uma mistura pitoresca de diversos idiomas, os vocais muito diferentes de tudo que já tínhamos escutado e a sonoridade do disco trazia elementos que nos identificamos instantaneamente. Junto do arquivo que o Millos enviou, tinha também os textos que o Kodiak escreveu e a arte concebida anteriormente para um minúsculo lote de CDs que o próprio Kodiak distribuiu do MUMIA. Esse material foi importante, pois ele contextualizou as músicas e condensou de forma criativa o ambiente do MUMIA, que tem toda uma estética egípcia e lisérgica”.

Vanguardista e autêntico são características inerentes à trajetória de Kodiak, pouco registrada na mídia devido ao caráter extremamente underground e experimental de atuação. Some a tais fatores uma aversão aos holofotes potencializada por uma traumática entrevista dada a um repórter que distorceu as falas do artista na publicação. Mais conhecido por colecionadores de discos fãs de Post Punk e ruídos industriais do rock oitentista – ávidos pelos vinis do Agentss intitulados Agentes / Angra (1982) e Professor Digital / Cidade Industrial (1983) –, o músico opera em diversas frentes. Alguns dados soltam pistas a respeito do perfil de Kodiak. Em 1976, ele fez um curso de sintetizadores no MASP (Museu de Arte de São Paulo) ministrado por Luiz Roberto Oliveira, multi-instrumentista celebrado da Bossa Nova, que colaborou com Geraldo Vandré e Vinicius de Moraes. Após estudar na Berklee College of Music, Kodiak aprendeu a tocar synth com o responsável por trazer os primeiros sintetizadores eletrônicos ao Brasil. Luiz Roberto foi um dos criadores da primeira interface MIDI, do primeiro sequenciador de sons e do primeiro sampler do Brasil. Em 1979, Kodiak foi para Califórnia estudar inglês e ter aulas de Música Eletrônica e Cinema na San Diego State University – momento em que mergulha no movimento Punk, além de ter o primeiro contato com a New Wave.

Na sequência, ele volta ao Brasil e, junto dos guitarristas Miguel Barella e Eduardo Amarante, forma a banda Agentss, com letras feitas em um idioma todo especial chamado Elektrotranslyriks. O selo Nada Nada Discos tem o plano de, em breve, lançar um disco duplo de retrospectiva do grupo icônico.

Em 1982, Kodiak compôs e gravou “Eletricidade” usando Minimoog Model D, Moog Liberation, Crumar String Ensemble e Vocoder. Essa track pode ser considerada a primeira Techno-Pop do Brasil. A impressionante estética urbana futurista é o cenário para “o eterno paradoxo do prazer e da dor vivido pelos humanos que alcançam o poder de comandar controles remotos eletrônicos e ao mesmo tempo acabam sendo controlados por eles” definiu um festival de artes digitais na década de 1980.

“Eletricidade” foi exibido pela primeira vez em março de 1984 no Carbono 14”, na cidade de São Paulo, e foi premiado em diversos festivais, como o II Festival Fotótica de Vídeo Brasil no MIS-SP (Museu da Imagem e do Som de São Paulo). (Destaque para o look futurista de Kodiak, obra da estilista Maída Lombardi (1924-1988)). Dois pedais de efeitos para modificar vocais (Flanger e Delay) movidos à bateria acoplados em compartimentos no peito e nos ombros do músico eram manuseados por meio de botões acionados pelos dedos de Kodiak. Chama a atenção o acessório performático do ursinho de pelúcia, suporte ideal para uma caixa de música utilizada em caminhadas por São Paulo.

Queridinho de colecionadores, o vinil Remota Batucada (1985), da performática brasileira May East contém a faixa “Ideias de Brincar”, feita por Kodiak Bachine a convite da cantora. Aqui, ele compõe, arranja, produz, mixa, toca teclados, baterias eletrônicas e ainda investe nos vocais com participação de Heitor T.P no violão.

Outro registro vem da Bienal de São Paulo de 1987, com temática musical conduzida pelo minimalismo eletrônico. Ao lado do alemão Michael Fahres, Kodiak participou do evento organizando a exposição “European Minimal Music Project”(Utrecht/Holanda), dotada de uma videoteca, biblioteca e audioteca com partituras e perfis de mais de 200 compositores americanos e europeus – como Lamonte Young, Steve Reich, Terry Riley, Philip Glass, Cornelius Cardew, Louis Andriessen, Stephen Montague e Brian Eno, que trouxe ao país a vídeo-instalação “Mistaken Memories of Medieval Manhattan”. Eno veio pessoalmente a São Paulo integrar uma mesa redonda com participação de Kodiak.

Vídeo-arte e experimentações sonoras dividem espaço com trilhas sonoras de filmes, além de outras intervenções audiovisuais que completam o notável currículo do artista multidisciplinar. “Apesar de não ser muito conhecida (por não ter tido a oportunidade de publicar), minha produção musical nunca cessou… de fato! Sempre continuei trabalhando em meus projetos musicais, desde compor canções populares, trilhas para documentários até um trabalho instrumental de caráter mais erudito. Entre os projetos pessoais, o principal atualmente é Alpa Kamashka (nome da entidade que atualmente habita meu biológico). K.B. já é quase inexistente. Adoro compor e simplesmente interpretar canções (no momento em torno de 50), de diferentes temáticas: contos estranhos e, por vezes, bizarros sobre diversificadas ‘in-sanidades’, baladas românticas e bregas com pitadas de humor. As vezes acentuadas por pujantes ‘tons’ latinos de dor sarcástica, mas expressiva, e por vezes solene e profunda. Nesse projeto conto com um talentoso violonista, e também pretendo reunir mais alguns músicos em ‘vibe semelhante’ e que se identifiquem com essa proposta musical. Realizar gravações e talvez algumas apresentações ao vivo. Tarefa nada fácil devido às ‘circunstâncias atuais’ de alucinação coletiva no planeta”.

O MUMIA me impressionou muito desde quando ouvi pela primeira vez. O que mais me encantou foi a estética sonora muito diferente do que era produzido no Brasil na época.  Essa composição mais livre, mais fluida, que é meio anárquica. Desta forma, parece que a coisa vai indo, vai indo… mas não se sabe muito bem aonde vai. Não tem refrão, não tem verso, ela não é dance music obviamente, mas também não é uma canção. Porque ela não tem e não segue essas estruturas formais. Como uma música que vai indo e acontecendo com timbre muito interessante dos anos 80 de equipamento barato, dos primeiros samplers e baterias eletrônicas produzidas na época. Tinha um som muito característico, que é hoje valorizado por pesquisadores e pessoas que curtem essas coisas que nem eu. É um som que envelheceu muito bem, ao menos para mim. Achei muito curioso aquilo ter nascido no brasil entre 1987/88/89 muito sui generis, fiquei tentando entender que caldo deu aquilo. Mas para entender um pouco o Kodiak, ele sempre teve essa pira com sintetizador, bateria eletrônica, sempre usou isso e fez um Punk diferente. Então, acho [que o MUMIA] foi um lado mais experimental dele - MILLOS KAISER 

Pouco se sabe a respeito da vida musical de Celso Alves, outra parte de MUMIA. “Ele é arquiteto, parece ser um cara muito legal. Eu o vi e cumprimentei rapidamente em um dia no Caracol, pois eu estava de passagem”, relata Millos Kaiser. As palavras de AK dão uma luz e aguçam a curiosidade a respeito dele: “A alquimia entre nós, Celso Alves e eu, floresceu naturalmente. Ele, sendo arquiteto, tem um senso estético bastante apurado e contemporâneo que, em contraponto, mescla muito bem com meus próprios valores estéticos mais clássicos, e sempre elegantemente nos arrojamos em nossas perspectivas individuais aliadas ao humor dos trópicos. Compartilhamos também uma paixão brutal pelo ballet clássico como forma de expressão a qual expandimos para nossa esfera musical. A combinação de nossos elementos (fogo e água em modos cardinais) nos permitiu alcançar estados de integração muito interessantes, pois estávamos muito receptivos e relaxados em relação aos procedimentos criativos internos. Permanecer calmo e em controle das funções e ações corporais é fundamental para que os ‘acontecimentos mágicos’ ocorram. Sempre me sinto em êxtase e integral enquanto crio e realizo. É um evento arrebatador dentro de meu ser, uma dança cósmica interna onde vivo o momento pelo momento”.

No momento, a Lugar Alto trabalha para trazer uma nova versão do álbum The Dreambird, de Mitar Subotić (Suba) e Goran Vejvoda. O projeto foi lançado exclusivamente no Brasil pela gravadora brasileira COMEP, em 1992. “A primeira coisa é mapear quem são os donos dos direitos do disco, assim é possível negociar com pessoas/editoras/gravadoras corretas. Esse processo tem um grau de complexidade que varia de acordo com a quantidade de donos do direito sobre a obra. Felizmente, até hoje, só trabalhamos com produções independentes, o que nos facilitou nesse processo. Passado esse processo, entramos na parte mais legal, que é a elaboração da arte e master com o artista. Essa é a parte mais prazerosa de ter um selo com certeza”.

A distribuição dos títulos da gravadora brasileira é feita em parceria com o selo Honest Jon’s, de Damon Albarn (Blur e Gorillaz), dono de uma loja de disco em Londres e responsável pela ponte com a fábrica alemã de prensagem dos discos. Iniciativas de valorização e registro histórico da cultura musical brasileira são essenciais para levar registros analógicos fora do mainstream de suas épocas – como MUMIA – para atuais, futuras e futuríssimas gerações.

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