kolx & Keith em alto-relevo

Com referências que vão de Olodum a Kraftwerk, passando pelo cinema francês, compositor baiano e beatmaker sul-mato-grossense se reúnem em “Tipos de Rochas e Minerais”; o duo destrincha o projeto

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Fotos: Divulgação / Saja

Segundo a CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), uma rocha é uma associação de, geralmente, dois ou mais minerais em proporções definidas e que ocorre em uma extensão considerável. As rochas são classificadas em três tipos, que variam conforme o processo de gênese: ígneas, sedimentares e metamórficas. Por meio de fusão, erosão ou metamorfose, qualquer um dos três tipos de rocha pode gerar qualquer um dos outros dois.

Ressignificando a rocha como um coração, é a partir desse conceito de intemperismo humano que kolx constrói a mixtape Tipos de Rochas e Minerais (2020). A colaboração com o beatmaker Keith é também o projeto de estreia de ambos. “É transformar-se; o corpo do ser é uma rocha, onde seus órgãos são os variados tipos de minerais”, ele conta, explicitando a escavação de si próprio em busca de autoconhecimento.

Integrante do coletivo artístico baiano Underismo, kolx é rapper, compositor e artista visual/plástico, sob a alcunha de torajjjosu. O aprofundamento linguístico que ele demonstra em sua obra surpreende, também, pela pouca idade: ele tem apenas 20 anos. Apesar de não ter crescido em um ambiente tão doloroso, kolx parece ter em si a ansiedade decorrente do amadurecimento precoce que muitos jovens pretos vivenciam. Isso faz com que o artista sinta que já está “há muito tempo vivo” e use expressões como “depois de velho” – referindo-se à fase dos quinze anos, quando descobriu Goddard e se aprofundou em cinema. Perguntado sobre quando começou a fazer arte, diz que ela sempre esteve presente, desde os tempos em que atuou nas categorias de base do Esporte Clube Bahia. Pelas pontas, gostava de jogar futebol pela liberdade que sentia. O interesse por Rap foi o responsável pela guinada artística de que kolx precisava, oferecendo, principalmente, perspectivas de consciência racial. O rolé das batalhas de MC o colocou em contato com Senpai, que o convidou a integrar a Underismo oficialmente.

Enquanto kolx fazia as primeiras descobertas como artista, o sul-mato-grossense Keith se encantava pelas produções de J Dilla e Wun Two. Sem se preocupar com mixagem e masterização, o beatmaker apenas subia suas batidas que no SoundCloud, plataforma querida dos novíssimos artistas e, principalmente, dos que buscam simplesmente experimentar – com ou sem pretensão. Tipos de Rochas e Minerais precede a demo tape Naufrágio na Crosta de um Ser (2019), ambas inseridas no mesmo imaginário. Foi esse trabalho caseiro de kolx, também disponibilizado no SoundCloud, que firmou a união dos dois. A parada entre os dois artistas foi quase um “match”. “Eu tenho uma onda de comentar o que eu vejo, curtir, salvar em playlist e aí eu comentei em tudo do Keith porque eu fiquei apaixonado”. A conexão entre os dois artistas progrediu rapidamente e Keith logo mandou uma pasta com 20 instrumentais para kolx, dos quais 15 entraram na versão final da mixtape.

“Nenhuma transmutação é abrupta, a borboleta não sai do casulo de um dia para o outro. O bagulho é louco” – kolx

Keith comenta de uma entrevista de Kanye West para falar sobre o que considera a maior congruência criativa com o parceiro de mixtape: o interesse obsessivo por texturas. “Ainda que eu sampleie de todo lugar – a gente não deve se limitar ao vinil ou ao cassete – meu processo sampleando de vinil fica mais natural”. Buscando especialmente loops brasileiros, entre desconhecidos cantores sul-mato-grossenses e nomes baianos consagradas como Gal Costa e Maria Bethânia, os instrumentais produzidos por Keith são “blasfemados” por kolx. Em Tipos de Rochas e Minerais, os grãos do vinil se somam a inúmeras camadas de vozes e efeitos sonoros, como o som de algo sendo plugado num sistema Windows, cachorros latindo e até uma coceira na garganta. A ideia é que essas camadas e texturas evoquem sentimentos no ouvinte, propiciando uma identificação que vá além da rima. “Nesse trabalho em si, eu tentei criar uma imagem na cabeça das pessoas e a maneira que eu consegui foi construindo essas camadas dentro da mixagem”, comenta kolx.

Quando eu ouvi a mixtape pela primeira vez, foi impossível não me lembrar do disco ensley (2018), do Pink Siifu. O rapper americano também se utiliza de camadas e, principalmente, de recortes de sample não-musicais, como discursos, entrevistas ou até mesmo memes. No entanto, ao sacar a playlist inspiracional que kolx e Keith disponibilizaram no Spotify vi que a coisa era mais diversa: Olodum, seguido de Kraftwerk, passando por Pharrell e Snoop Dogg, sem se esquecer de dar um salve em Rogério Skylab. Keith é destemido e caleidoscópico na hora de escavar influências e destaca Some Rap Songs, disco de Earl Sweatshirt, que, segundo o beatmaker, transformou sua maneira de samplear. “Tem muito beat [no Some Rap Songs] que no meu modo de ver parece com glitch – o sample arrastado que parece que tá travando. Me influenciou nessa liberdade de não precisar estar tudo sempre metrificado”. Kolx destrincha: “Tem sample de Pharrell na ‘Ambience I’, é ‘Beautiful’. Peguei a capela, manipulei com Flanger, Phaser e joguei lá junto com Ferrugem, aquele desgraçado. É um corno, mas tá lá. A música não é dele, né? ‘Climatizar’ é de Tiee, eu gosto mais. E ‘Alllimento’ foi essa faixa que peguei muita referência nos vocais do James blake e ROSA BEGE. Reverti os vocais de ‘Antidote’, do Travis Scott, e coloquei lá junto com a minha voz em Alllimento; Obí II”.

A grafia de kolx, inclusive no título das músicas – com letras que se repetem ou acentos fora de lugar –, seguem a ideia do glitch mencionada por Keith. “É o erro pelo acerto, o acerto pelo erro”, comenta kolx. Quando começou a escrever, o artista tentava rimar tudo que pudesse, além de manter a letra em um esquema visual – uma mistura entre parnasianismo e poesia concreta, rompida neste trabalho. No fim do disco, kolx abandona completamente a ideia de rimar, mas afirma que fez um disco majoritariamente de Rap, embora, não estritamente só de Rap. “Alllimentos” (I e II), por exemplo, são músicas nas quais ele mirou o Soul – sem a certeza de o ter atingido, mas com resignação quanto a isso. Ele também acha que o público interpreta mal ao enxergar uma espécie de negacionismo do Rap, quando artistas produzem discos que escapam do gênero, como é o caso de Tyler, The Creator em IGOR (2019) ou JOCA em A Salvação É Pelo Risco (2019). Para ele, é o oposto: o orgulho que deve existir na capacidade do Rap de agregar outros gêneros. “O Rap é a figura da modernidade pra mim. É a forma benéfica do capitalismo. O Rap é plástico, pra mim é um monstro. Ele devora tudo, é devorador e vomitador. Antropofágico. O hip-hop é uma tecnologia preta, a mais foda”.

Entre os recortes que encarnam os sentimentos do disco, um se destaca. Aparecendo na série de três faixas denominada “Ambience”, há uma história contada pelo pastor Cláudio Duarte, um homem branco de meia idade e voz aguda, quase ranheta e que foi pouquíssimo alterada por kolx. No vídeo (disponível na internet), o pastor conta a saga de um insatisfeito homem que quebrava pedras e, então, faz um trato para que Deus mude sua natureza. O conto é a coluna vertebral da mixtape e foi essencial para a criação da estrutura de início-meio-fim, muito prezada na narrativa de kolx, assim como a ordem intencional das faixas. Tipos de Rochas e Minerais teve cerca de seis estruturas diferentes, até kolx encontrar o vídeo do Pastor Cláudio Duarte em uma pesquisa durante a madrugada.

A preza do baiano pela narrativa também tem muito a ver com cinema, presente em sua vida desde que se conhece por gente, devido a locadora que a mãe possuía. Apesar do fácil acesso à sétima arte, até o começo da adolescência ele só tinha assistido aos filmes de circuito mais comercial. Para Tipos de Rochas e Minerais, ele estudou, com a ajuda do primo, a fundamentação de roteiro baseado na jornada do herói, esquema estrutural base das narrativas ocidentais. O distópico filme francês La Jetée (1962) foi inspiração para o museu virtual da mixtape – um tumblr em que kolx e Keith compartilham os materiais visuais da obra. “Eu pensei muito nessa onda do museu e da figura humana – os órgãos, o coração (na figura da pedra), pulmão, pele, o maior órgão que a gente tem, tudo isso posto num museu; sobre um tempo que não existe mais”.

“Ainda que eu sampleie de todo lugar – a gente não deve se limitar ao vinil ou ao cassete – meu processo sampleando de vinil fica mais natural” – Keith

Em determinado ponto da conversa, kolx menciona a época em que buscou um “afrocentrismo” (com leves risadas como quem ironiza o uso saturado do termo) das referências cinematográficas. Desse período, dois filmes ganharam atenção especial na mixtape. O primeiro é The Gods Must Be Crazy, um longa botsuano protagonizado pelo ator N!Xau – nome que leva a quinta faixa da mixtape. Com retidão, kolx fala sobre uma entrevista na qual o ator menciona a desvalorização que sofreu ao receber algumas centenas de dólares em um filme que teve sucesso comercial internacional e lucro de milhões. “É a ridicularizaçao da pessoa dele, mas muito mais a retirada da humanidade. Porque cê ta ligado, você é preto, mano. A realidade que a gente tá envolto é uma realidade branca. Os sonhos, metas, objetivos, prazeres, tudo é, em suma de uma tese branca. A gente vai sendo consumido por isso a nossa vida toda e N!Xau é a representação disso, ele tá falando isso, que ele foi usurpado”.

Ele não se sente com potencial de determinar qual o caminho para romper com as máscaras brancas, mas revela um pouco sobre sagas pessoais, com a coragem e humildade de assumir as hipocrisias do processo. Tentando achar um meio-termo entre os estudos e o empirismo, kolx acredita que a transformação acontece “aos miúdos”. “Acho que o primeiro de tudo é a gente se entender como pessoa humana, humanizar nosso corpo e o que tem dentro do nosso corpo. É o básico do básico. Uma das primeiras coisas que a gente aprende quando começa a entrar nos estudos raciais é que nosso corpo é desumanizado. E aí eu acho que se adequar a uma realidade negra é se adequar a certos padrões que a gente não tá acostumado. A realidade negra não vem só da realidade negra, vem da indígena, todo esse bagulho que se perdeu e a gente tem que se readaptar. Eu me sinto hipócrita falando, porque eu tento mudar umas paradas tipo comer carne, saca? Alimentação, além de ser uma forma fundamental, é um princípio de dominação, é resquício de escravidão esse bagulho. A gente se alimenta mal, dorme mal, vive mal, porra! Ração, a gente comia ração e ainda come. Você tá fraco com seu corpo você tá fraco com sua mente”. O filme que faz a representação contrária – elevando a figura da pessoa negra e da construção dessa nova realidade – é Tanna, um drama australiano-vanuatuano de 2015. Dele, kolx evoca a figura da personagem Felicètee, que não à toa é o nome da sexta música, logo após “N!Xau”.

Para kolx, o processo de reconhecimento e metamorfose que o disco narra é diário, mas ele sente que houve um pontapé mais profundo de 2017 para 2018, coincidindo com sua entrada mais profissional no Rap por meio da Underismo. Essa movimentação o reaproximou da avó paterna, de quem esteve afastado entre 2016 e o fim de 2019, por conta de divergências dele com o pai. Situações de vida. “A primeira [referência masculina] que eu tive e que pude aprender foi na adolescência quando eu conheci o Rap de Tupac. ‘Letter to My Unborn Child’, eu chorava vendo aquilo, porque nunca tinha tido uma conversa assim com meu pai”. Apesar de ainda estar afastado do pai, o artista fala com naturalidade sobre a situação, como quem não guarda remorso ou mágoas – o amadurecimento foi essencial para ter essa clareza, segundo ele. Kolx reencontrou a avó no aniversário dela no fim do ano passado. A matriarca contou que sempre rezava por ele, por paz, saúde e prosperidade. O neto diz com humor e alívio que tem certeza que as orações da matriarca já o salvaram em situações de vida ou morte. “Yanomamizar” é o verbo com o qual kolx define a renovação na faixa “Alllimento, um OBí (Versão II]”. Traçando um paralelo com o perspectivo ameríndio, é a busca da reintegração com a natureza e o reconhecimento da humanidade em tudo. “Minha didática é essa. Nenhuma transmutação é abrupta, a borboleta não sai do casulo de um dia para o outro. O bagulho é louco”.

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ARTISTA: Keith, kolx