Lauryn Hill – MTV Unplugged No. 2.0: anotações e interpretações 20 anos depois

Há exatas duas décadas, Lauryn Hill dava um nó na indústria fonográfica com um disco que abandonava o enérgico R&B de sua aclamada estreia e se voltava à espiritualidade e ao intimismo do formato voz & violão

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Fotos: Getty Images

Antes, (algo como) duas epígrafes…

No filme Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up, de Adam McKay, 2021), a cientista vivida por Jennifer Lawrence passa meses convivendo com o fato de que um cometa gigantesco colidirá com a Terra, enquanto poucos ao seu redor compreendem a importância e o risco do evento para o futuro da espécie humana e de todo o planeta. Ela vive uma grande gama de emoções e reações entre o choque inicial da descoberta até a aceitação da inevitabilidade daquela realidade. No clímax do filme, após uma compilação de várias cenas curtas ao redor do globo, a câmera fica parada em seu rosto sem nenhuma expressão, mas com o olhar cansado de tantos sentimentos vividos naqueles meses
Paulo de Tarso escreveu na década de 50 AD, em uma carta à igreja em Roma que está compilada no que hoje conhecemos como a Bíblia, que as pessoas não se acomodassem ao pensamento cultural vigente para que, então, pudessem conhecer o plano divino. O verbo original no grego, συσχηματίζεσθε, costuma também ser traduzido como “conformar-se”, no sentido de caber em uma forma, ou molde. Independentemente da escolha de palavras no português brasileiro atual, o sentido da frase parece apontar a um alerta para quem se deixa levar pela tentação de se encaixar em uma zona de conforto aceita pela sociedade – por exemplo, se amoldar a um status quo perpetuado pelo meio social, mas distante do que é bom.

Em contrapartida, ele convida os romanos a se deixarem ser transformados pela renovação da mente. O “deixar-se ser” (μεταμορφουσθε) indica uma ação espiritual sobre o indivíduo, que ocorre por uma reforma das ideias (ανακαινωσει). Isso vai ao encontro do conceito chamado de metanóia (μετανοεῖν), que aparece em outros momentos da Bíblia e costuma ser traduzido para nosso idioma como “arrependimento”, embora signifique algo como “uma nova mente”. Ou seja, não tem necessariamente uma relação com sentimento, mas muito mais com entendimento.

Imagine você ser a nova artista mais celebrada de uma época em todos os seus índices – sucesso de público e crítica, capa de revista e detentora dos mais prestigiados prêmios, por exemplo – e, em um momento seguinte, abrir mão da posição que lhe foi dada e arriscar perder muito do que construiu, ou mesmo tudo. Quem viu Ms. Lauryn Hill ser uma promessa no grupo The Fugees e consagrada com seu álbum solo The Miseducation of Lauryn Hill (1998) testemunhou, com o perdão do clichê, o “nascer de uma estrela” que já surgia gigantesca e, logo em seguida, viu a artista praticamente sumir do mapa sem surfar a onda, ou vagalhão, que lhe era esperada.

Foi difícil entender também como levou quatro anos (uma eternidade para o mercado) para que ela anunciasse uma nova obra. E se fazia algum sentido comercial ela levar o repertório de seu disco e de The Fugees para perto da marca MTV Unplugged – a mesma que no Brasil foi chamada de Acústico MTV e renovou as carreiras de nomes como Cássia Eller, Titãs e Marcelo D2 –, ninguém poderia prever que ela deixaria de lado a oportunidade de agradar os fãs com seus maiores sucessos para apostar em 1) composições inéditas 2) em voz e violão 3) com longas falas entre as faixas.

Se você não conhece a história e achou que este parágrafo traria um desfecho feliz para a narrativa, é uma pena ter que abraçar a decepção e dizer que não, o disco não foi no geral bem recebido pelos críticos, confusos com as escolhas de Lauryn para a continuação de uma estreia tão genial. As vendas também foram mornas, ainda mais se comparadas ao seu trabalho anterior, o que mostra que o público também não aceitou muito bem a mudança de ares.

“Por que você vai subir [ao palco] com o violão? Vai parecer uma cantora folk do hip hop”, Lauryn brinca em determinado momento de seu show/programa de TV/DVD/álbum duplo. Dona de uma absoluta excelência tanto como rapper, quanto como cantora, é encantador vê-la sentada no banquinho cercada de pessoas que admiram a força do que ela apresenta ali.

Logo na primeira música, “Mr. Intentional”, você sente que há algo em seu jeito de cantar que vem do hip hop, principalmente na maneira como ela faz a métrica caber entre os momentos em que toca as cordas do violão, algo que ela repete em “I Get Out”. Já em “Mystery of Iniquity” (aquela que Kanye West sampleou em “All Falls Down”), ela repete seu feito de hits como “Doo Wop” e “Everything Is Everything” e versa com potência, alternando entre momentos melódicos no refrão.

Talvez o que mais fique da audição seja mais o lado “cantora folk” do que o “do hip hop”, até pelo choque de vê-la naquele formato, sem samples, beats ou mesmo uma banda inteira por trás, como nas músicas de The Miseducation. O dedilhado de “I Find It Hard to Say (Rebel)” ao lado de sua interpretação emocionada é um dos momentos mais icônicos de toda a obra.

Grande parte de seu segundo álbum é formada por falas de Lauryn Hill para a plateia – são sete interlúdios “oficiais”, além de uma introdução, um encerramento e um ou outro momento falado dentro das músicas. A narrativa que se forma a partir de seus discursos é a de uma artista que quer explicar as suas escolhas naquele momento, e elas parecem vir de dois fatos não isolados.O primeiro é o desencanto com a indústria fonográfica, que demandou tanto de sua energia vital e criativa ao ponto dela chegar a um momento de esgotamento (lembre-se: em uma época na qual as pautas de saúde mental não eram tão difundidas como hoje). Ela fala muito em cobrança, em expectativas e em um lugar onde era colocada no qual mal era vista como pessoa. Ela era a estrela, a diva, o produto, não a Lauryn.

Na mesma época, ela passou por novos momentos de espiritualidade, cujos resultados são mencionados diversas vezes ao longo daquela performance ao vivo. Com uma relação com Deus ressignificada, Lauryn percebeu-se em um lugar de não poder mais aceitar a versão plastificada que lhe era cobrada. Havia uma nova intenção de interpretar e de viver a realidade, “a vida como ela é”, incompatível com as aparências exigidas por um mercado tão desumano.

Na proporção de nove faixas faladas para 13 canções, seu disco acústico equipara ambos os formatos em importância. É como se você tivesse a chance de conhecer mais sobre quem é Lauryn Hill tanto de maneira objetiva, com o que ela conta ao público em tom de conversa, quanto em um nível lúdico através da música.

Lauryn Hill é famosa por ser uma artista de pouco contato com a imprensa. Em uma rara entrevista, para o jornalista Sway Calloway no site da própria MTV (muito provavelmente prevista em contrato para a divulgação do Unplugged), ela conta:

“Conheci alguém com um entendimento da Bíblia como ninguém que eu já tinha conhecido em toda a minha vida. Eu me sentei aos seus pés e me alimentei com as escrituras de forma pura por cerca de um ano. E comecei a ver que eu era meu pior inimigo. Eu era o meu problema – minha autoimagem, quem eu achava que deveria ser, contrário a quem eu realmente era. Absorvi tudo isso e comecei a ver que o meu conceito de espiritualidade estava errado, era lixo, e que a espiritualidade verdadeira é a realidade, e que a religião verdadeira não é sequer religião. E quando comecei a enxergar… Duas coisas aconteceram: minha criatividade voltou em abundância e está transbordando, e eu entrei em confronto direto com todos que eu amo”.

É um exercício interessante escutar seus dois álbuns tentando encontrar a intersecção entre eles, até porque o que salta aos olhos (e aos ouvidos) é a diferença óbvia entre os arranjos e camadas do primeiro e toda a singeleza do voz & violão no acústico. As temáticas espirituais, dissertadas com referências bíblicas, acabam sendo o maior paralelo nas letras.

Em “To Zion” (do disco de 1998), ela canta sobre o nascimento do primeiro filho como um “belo reflexo da graça” divina. Não por acaso, o primogênito foi batizado como Zion (ou Sião, em português), a terra prometida dos judeus. No álbum seguinte, as citações a temas bíblicos vão desde “Adam Lives in Theory” a “The Conquering Lion” (chamada “Lion of Judah” na original de Bob Marley), enquanto “I Gotta Find Peace of Mind” é uma oração musicada de nove minutos de duração.

Dois outros trechos daquela mesma entrevista a Sway Calloway chamam atenção. Em um deles, Lauryn diz, dando risada, que, “de repente”, a Bíblia deixou de ser “uma coisa de uns caras carecas de mantos marrons fazendo ‘oooh’” e se tornou “o texto mais legal” que ela já leu. Em outro, na sequência, ela conta: “Vi minha vida antiga, vi a realidade, vi o mundo inteiro… uma bagunça. Matamos a liberdade para caber em uma estrutura social”.

Talvez a mensagem da obra não seja para você – a impressão é a de que Lauryn seria a primeira a afirmar isso –, mas é impressionante como ela é relevante duas décadas depois, em um mundo pautado por redes sociais e todos os fenômenos que vêm delas, das pressões sobre aparências (físicas ou não) ao pleno esgotamento no qual grande parte da sociedade vive. “Estou pronta para ser eu mesma”, ela conta em “Interlude 5” e minutos depois, diz que “algumas pessoas preferem a enganação. Elas dizem ‘eu não gosto dessa sua nova expressão’, e eu vou dizer ‘você quer que dois terços de mim fiquem do lado de fora? Eu sou uma pessoa inteira (…) assim como todo mundo”, e conclui: “Quando eles disserem ‘isso não se encaixa na caixa que temos para você’, nós dizemos ‘eu não caibo em nenhuma caixa, nem tente me colocar em uma’”.

Seu convite a uma vida mais sincera, ainda que ela gere conflitos e grandes perdas (como a de popularidade ou de oportunidades financeiras, como a carreira dela mostra), não é apenas retórico. Ela diz ter se tornado uma espécie de “cientista louca que testa primeiro seus experimentos em si mesma para ver que eles funcionam”. Após passar por todos os processos, todas as dúvidas e todas as emoções que uma grande mudança gera, ela agora tem moral de nos levar a todas essas reflexões, porque sabe em seu próprio corpo o que está falando.

Não é arriscado afirmar que essa é uma marca dos grandes artistas, aqueles que expressam as verdades que vivem, que usam suas vozes em função daquilo que acreditam. O valor da realidade que eles contemplam é grandioso demais para que se calem, mesmo que os outros não queiram escutá-los.


À primeira vista, pode parecer que o “2.0” no título MTV Unplugged No. 2.0 se refira a um novo momento para o formato, ou para o programa de TV. Após a audição, fica a ideia de que trata-se de um upgrade na própria Lauryn Hill.

A partir de agora, podemos dizer (e lamentar): estamos há 20 anos sem Lauryn Hill lançar um álbum.

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ARTISTA: Lauryn Hill

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.