LEALL: lapidado para o sucesso

Dono de um dos grandes discos do ano – o visceral “Esculpido a Machado” –, o artista carioca relembra a construção do projeto de estreia, conta o que mudou após descobrir que vai ser pai e mostra áudios sagrados de KL Jay

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Fotos: Pétala Lopes/Monkeybuzz

As coisas têm mudado rápido na vida de Arthur de Jesus Leal, de 19 anos. Ainda que a transformação seja fruto do seu ímpeto criativo — muito despertado por Vivaz (2012), de Filipe Ret, que escutara pela primeira vez aos 15 anos —, foi em 2019 que uma maré chamada mundo começou a inundar LEALL, que, por sua vez, amadureceu dez anos em três. Talvez por isso seu rosto soe tão sério nos clipes, sintonizado a uma escrita visceral e flow afiado. Mas, quando as lentes se abaixam, a guarda do jovem cantor também descansa e Arthur se desmancha em sorrisos. LEALL é um jovem educado, muito gentil e transparente, mesmo com o gravador ligado; não parece se intimidar com isso. É uma pessoa preocupada com os caminhos sinuosos do Brasil e orgulhosa dos seus próprios passos. Seu disco de estreia, Esculpido a Machado (2021), é uma investigação emocional, social e psicológica sobre a pegada de quem escapou das rotas de genocídio traçadas para a população negra, pobre e periférica no país.

Na casa do artista em Bento Ribeiro, na zona norte do Rio de Janeiro, a chamada de vídeo do WhatsApp mostrava uma parede branca e, nela, um quadro de Jesus. Dessa vez, o quadro não apareceu durante toda a ligação porque Arthur estava mais agitado do que o normal. Ainda que sua voz mantivesse o tom de calma, ele trocava a posição em que estava sentado várias vezes como se buscasse um conforto inacessível. Em certo momento, confessou: era o terceiro dia sem fumar, hábito que tinha desde os 14 anos e cortou de uma vez só. “Eu parei do nada. Estava lendo de madrugada sobre gestantes que são fumantes passivas e eu vou ser pai agora, então fiquei pensando. Era 3 horas da manhã, eu peguei o maço, quebrei, molhei — para não poder fumar mesmo — e joguei no lixo”, conta. LEALL reconhece que a cena não precisava ser tão dramática, porém ele queria grafar o ponto final com a devida seriedade.

A paternidade tem mexido muito com Arthur. Feliz e ansioso, ele não esconde o sorriso largo quando o assunto vem à tona. Sua companheira vai dar à luz em outubro e a notícia da gravidez veio com um padrinho inesperado. “Acho que foi o RAP TV que postou meu perfil da Pineapple, começou assim. Aí o KL Jay comentou elogiando, chamei ele na DM, ele me passou o número dele, eu chamei no Whatsapp”, remonta. “Esse áudio dele é muito sinistro”, comenta o assessor, Rodrigo Lemos, que nos recebeu na diária de fotos para o Monkeybuzz. LEALL sorri para Rodrigo e coloca o áudio para tocar. A voz do DJ e produtor musical mais influente da nossa geração toma conta da cobertura em que nos receberam.

Salve, boa tarde. Primeiramente, satisfação falar com você. Muito difícil ver os cara talentoso assim igual você, a maioria é daquele jeito que a gente já sabe. Vamos fazer, sim; eu to enrolado esse mês, mano. Minha MPC tá consertando, mas vamo fazer um som, sim. Vou ver umas música aqui… (KL Jay)

— “Esse daqui é mais bolado”, diz LEALL e bota para outro áudio para tocar, interrompendo o anterior.

Ah, para mim, se é bom, tem que elogiar mesmo; eu não fico fazendo média com Rap ruim, não, pode ser quem for. Se é bom, eu elogio mesmo, tá ligado? Seu Rap é bom para caralho, mano. Eu vi alguns vídeos seus e as ideias, o jeito que você canta é original para caralho. Flow original, tá ligado? Não é esse flow que a maioria faz, não. É o flow seu. É igual jogador de futebol, tá ligado? Tem uns que joga bem ali, se posiciona, mas só toca a bola. Agora tem os craque, né, mano? Craque arrisca, troca de posição, dá drible, erra gol para caralho, mas quando acerta os gol é quadro, tá ligado? É pintura. Eu gosto dos craque, mano. (KL Jay)

“Tá maluco, o cara é minha referência”, dispara Arthur no meio de uma risada, leve como se estivesse levitando, “Esse dia eu tava no hospital com a minha mina, tinha descoberto que ia ser pai. Eu comecei a ouvir o áudio e só pensei que quando meu filho crescer, vou poder mostrar pra ele e dizer: no dia que eu descobri que você ia vir ao mundo, olha quem mandou um áudio pra mim. Eu fiquei sem palavras, tá ligado?” Meio a tantas risadas, a cena imaginada por LEALL abriu espaço a um tipo de silêncio muito confortável e esperançoso. “Até a escrita já mudou”, observa Rodrigo, que acompanha o artista de perto.

Na nossa primeira conversa, LEALL disse que ignorância é uma benção. Estranhei. É absolutamente tudo que você não espera de um compositor marcado pela sua contundência, ainda mais quando o tópico é o efeito psicológico de ter consciência racial no Brasil, ou seja, o quanto entender como o racismo opera afeta sua saúde mental. E ele dizia que “Quanto mais tu entende, pior tu fica. O bagulho acontece debaixo do seu nariz e você não pode fazer nada. Antes, a gente reclamava que não tinha conteúdo sobre relação racial, agora tem um monte de coisa e é sufocante. Saiu um do Joey Badass na Netflix [o vencedor de Oscar, Dois Estranhos Perfeitos (2020)] que nossa… a gente também precisa ver outra coisa, fazer outra coisa. Ouvir música de amor.” Como Esculpido a Machado são 27 minutos de um retrato de opressão, abusos e descasos, a declaração soou absurda. No entanto, o que esperam de LEALL não parece ser um critério que orienta sua produção artística — e, no mínimo, isso só faz com que ele se torne um artista ainda mais admirável.

“Mas, o que a paternidade muda na escrita?”, pergunta Pétala Lopes, a fotojornalista que estava na cobertura com LEALL e Rodrigo. O sol já tinha se posto e o gravador estava em cima de uma mesa de centro. Aos poucos, o Rio de Janeiro começava a se acender. “A maneira com que eu falo sobre os assuntos têm mudado. Eu tenho tentado ser menos violento nas músicas, fazer outras paradas, experimentar outros estilos. Quem sabe fazer uma coisa mais para cima, ainda mais pelo disco ter retratado bastante violência. Eu venho em outro ritmo agora — não que eu vá deixar de falar de violência, mas eu vou experimentar outras paradas”, explica.

Para Arthur, conhecer pessoas de outros lugares do Brasil foi fundamental para entender que a violência urbana do Rio de Janeiro é fora do normal. “Quando eu fui pra Minas Gerais, em 2019, eu vi que os polícia não anda de arma para fora. Para mim, toda polícia andava com o fuzil para fora. Estranhei em Minas; quando eu vim pra zona sul do Rio, eu reparei de novo essa porra: no Recreio, na Barra, a polícia também não anda de fuzil pra fora. Só pra lá mesmo. Eu nunca tinha me tocado nisso. A violência é tão presente o tempo todo que a tendência é não pensar sobre ela, mas chega um momento em que tu começa a entender como funcionam as paradas — aí é que você começa a criar casca”.

“A violência é tão presente o tempo todo que a tendência é não pensar sobre ela, mas chega um momento em que tu começa a entender como funcionam as paradas — aí é que você começa a criar casca”

Apesar de “Encomenda” ser a faixa-clímax da história do disco, “Posso Mudar Meu Destino” é o auge emocional, em um caminho de redenção do eu-lírico. “É um mantra. Eu escrevi essa música quando eu tinha 17 anos, tentando me convencer. Minha mãe estava com pré-leucemia, minha ex estava grávida, eu estava perdido. Era um exercício: posso mudar meu destino. Eu quero viver de música, eu vou sair dessas merdas que eu faço”, relembra. Além do envolvimento pessoal, a sensibilidade da composição também se deve à paixão de LEALL por cinema. Scorsese é um dos seus diretores favoritos, e Arthur julga ser capaz de situar quem assiste dentro do filme, imerso em cheiros e sensações que ultrapassam o audiovisual da tela. Na literatura, gosta muito da história de Carolina Maria de Jesus; apesar de ter parado de ler o clássico Quarto de Despejo na metade, ele teve a mesma impressão de sentir cheiros e enxergar lugares nas palavras de Carolina.

A oração no final de “Posso Mudar Meu Destino” foi um achado na internet, nessas contas do Twitter que falam sobre criminalidade. Fora as linhas cortantes de LEALL, as quais arrepiam da cabeça aos pés, estas inserções sonoras são elementos cruciais para a densidade narrativa de Esculpido a Machado. Desde a narração com dados sobre o Rio de Janeiro em “Na Barriga da Miséria”, os áudios de “Encomenda”, “Esculpido a Machado” e “Posso Mudar Meu Destino” até a voz grave de deus em uma oração-diálogo em “Lamentações 2:19”, com direito a trovões, despertador e radinho tocando. “Lamentações 2:19”, inclusive, foi a última música a entrar no álbum, precisamente três dias antes do disco ir para a mixagem e masterização. “Eu escrevi, corri no estúdio, gravei e perguntei para o Luna se dava tempo de colocar no disco”, relembra. A parceria entre LEALL e Luna, produtor musical que assina o disco, foi essencial para a construção e coesão narrativa da obra; foi um longo processo de experimentação, no qual o entra-e-sai de faixas se tornou uma necessidade para testar a experiência sonora. Neste trânsito, Esculpido a Machado chegou a ter 25 faixas até os músicos consolidarem as 12 finais.

O disco reúne uma seleção invejável da produção musical atual: VND, Tárcis, VHOOR, Babidi, Nagalli e DIIGO. Luna produziu “Na Barriga da Miséria”, a incomparável “Encomenda” e “Cadeia ou Morte?”, mas também foi quem orquestrou os demais produtores com LEALL. “Os caras produziam, mandavam o beat e eu e o Luna trabalhava mais junto no estúdio. O Luna é meu parceiro, já produzia comigo desde antes. Quando o WC morreu, a gente fazia parte de um outro coletivo”, relembra. WC foi uma pessoa muito relevante para Arthur e os demais membros do Covil da Bruxa. Um dos fundadores do coletivo, ele deu o nome do grupo e, em 2018, faleceu após uma parada cardíaca. Sua perda foi sentida em uníssono e o vínculo foi traduzido em uma tatuagem que todos os membros carregam; nela, lê-se: Covil 2017

“O WC era meu amigo, mas eu tinha ele muito como um professor, sabe? De aprender várias paradas. Eu achava uma brisa porque o menor era de raça, tinha uma mentalidade sinistra de rua, mas era um cara inteligente, pesquisava muito. Comecei a pegar isso pra mim: estudar música, conhecer o máximo de coisas possível”, conta, inspirado. “Desfile Bélico eu escrevi no estilo do WC, como se fosse um som que ele faria se ele estivesse vivo. Eu sempre falo dele, até em Moda Síria Anti Adidas, eu falo: WC vive.” LEALL é o mais novo do coletivo. Conheceu o som dos mais velhos primeiro e, depois, o grupo pessoalmente; o encontro foi quase em tom de fã. Era o VND que andava com WC e Tárcis; e como VND morava na mesma rua que Arthur, as ligações foram se desenvolvendo organicamente. Hoje, LEALL é um dos expoentes do coletivo e o laço entre eles parece resistente e impenetrável. Ao fotografarmos a tatuagem em homenagem ao WC, LEALL lamentou: “Tinha que estar todo mundo do Covil para fazer a foto todo mundo junto!”

“A estratégia [de sobrevivência] foi sendo adquirida ao longo das derrotas, certo? Não tinha glamour, a gente teve que desbravar e a gente foi lapidado no machado — é uma coisa que eu e o Blue costuma falar, lapidado a machado”, responde Mano Brown ao Silvio Almeida em outubro de 2020, “Quando errava, errava feio. Acertar já era uma coisa de uma dedicação de mais de 100%, era 150% para o primeiro acerto. O primeiro acerto é o mais difícil. É pular o muro da capacidade: eu sou capaz de. A partir do momento que eu fiz a primeira ação que deu certo, eu passo a acreditar na segunda. O primeiro muro é mais difícil porque, às vezes, o primeiro muro é de frente para o espelho, na solidão, no caos, do seu caos particular.” Em tempos de excesso de live, esta entrevista foi muito esperada e comentada — não era para menos: são dois dos maiores intelectuais negros brasileiros conversando. Como tantas outras pessoas, LEALL abriu o canal do Silvio Almeida no YouTube, clicou e assistiu. “Eu vi o Brown falando em uma entrevista, o bagulho me marcou: esculpido a machado”, relembra, “Quando eu fui formando o que seria o álbum, eu vi que é uma frase que define o disco, define a minha história — e de vários outros moleques. Ouvi o Brown falando, me marcou e eu abracei”.

A composição de Arthur é intrigante e, por ser tão bem-feita, alguns diamantes podem passar despercebidos na primeira audição. É na degustação de Esculpido a Machado que se torna inegável o talento literário de LEALL. Curiosamente, não foi sua primeira investida na cena cultural. Antes, tentou grafitar, mas não tinha a mão. Então, começou a escrever. “Eu queria estar inserido no bagulho de alguma forma”, diz, “Eu peguei um caderno e escrevia avulso, como se fosse pra rima e a frase até era maneira, mas na época eu não sabia como contava o compasso, então quando tentava entrar no beat, saía tudo errado! Comecei a escutar os outros e ver como eles formulavam uma rima, fui aprendendo o feijão com arroz”.

Hoje, o verso “Quando meu som tocar na Europa, talvez meu pai saia da janela” que corta a quarta estrofe de “Posso Mudar Meu Destino”, abrindo espaço para o refrão, vem sem tanto pesar para Arthur. Quando compôs, no entanto, a situação era outra. “É sobre sair da janela literalmente. Eu morava perto do meu pai, tá ligado? Quando ia para a escola, eu passava em frente a casa dele e, vira e mexe, ele estava na janela — e ele não falava comigo. A gente morava perto, eu passava e via meu pai na janela…é um bagulho marcante pra mim”, relembra. “É literal. Quando meu som tocar na Europa, ele vai mudar, vai querer chegar mais perto, se aproximar de mim. Hoje eu tenho uma relação melhor com meu pai, consegui perdoar e entender também o lado dele, de quem perdeu o pai muito novo, até para não guardar rancor, sabe? Mas a gente não tinha contato quando eu era mais novo, ele me via no meu aniversário e no Natal. Nunca fui ao cinema com meu pai. Nem tive essas paradas de convivência, de instruir mesmo, o que é o papel de um pai, né?”

“Sempre pensei nisso: quero fazer de tudo para o meu filho do que eu não tive. Às vezes, é o mínimo: trocar ideia, levar e buscar na escola, coisas básicas — a questão não é o dinheiro, é o afeto. Quando a gente cresce, vê que faz a maior diferença”

Para um jovem esculpido a machado, LEALL é lapidado para o sucesso. “Eu quero fazer totalmente o contrário. Muita gente tem um pai foda e não é um bom pai; muita gente não tem um pai e é um paizão. Sempre pensei nisso: quero fazer de tudo para o meu filho do que eu não tive. Às vezes, é o mínimo: trocar ideia, levar e buscar na escola, coisas básicas — a questão não é o dinheiro, é o afeto. Quando a gente cresce, vê que faz a maior diferença”. Finalizando o disco de estreia, o músico pensou na capa. A partir da ideia da capa, escreveu a faixa de abertura, “Na Barriga da Miséria”. À época, já prometera aos primos mais novos que eles participariam, o que gerou certa ansiedade e a cobrança contundente das crianças. “A gente fez no quintal da minha avó, acho que foi muito simbólico. Cada elemento da capa é importante para mim, mas o que eu queria muito era estar vestindo a camisa do Brasil e que os meninos estivessem com a camisa da escola. A cena é: as armas ali e as crianças brincando, porque a violência é tão natural que eles não se chocam. Os meninos fazem parte daquele contexto e, para mim, é foda saber que meus primos vão crescer sabendo que são parte da obra. Eles são artistas”.

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ARTISTA: LEALL