A década que se encerra daqui a um mês foi especialmente interessante para o Hip Hop britânico – principalmente em seus últimos anos. Em 2016, o londrino Skepta fez história ao conseguir a primeira entrada de um rapper inglês nas paradas da Billboard nos Estados Unidos com seu álbum Konnichiwa e, no ano seguinte, fez uma participação em uma faixa de More Life, o álbum-playlist-mixtape lançado pelo Drake.
A rapper Stefflon Don também protagonizou uma estreia importante para o Hip Hop britânico, sendo a primeira inglesa a ser incluída na lista de freshman da revista XXL em 2018. Alguns rappers também lançaram trabalhos que repercutiram bem dentro e fora do Reino Unido, como Dave e Slowthai com seus respectivos trabalhos de estreia.
Enquanto tudo isso acontecia, a londrina Little Simz esteve lançando mixtapes que pareciam passar um tanto despercebidas. Em anos recentes, ela colaborou com artistas como alt-J e Gorillaz, mas seu potencial continuou parecendo pouco explorado até o lançamento de Grey Area no começo deste ano.
Grey Area não é seu primeiro álbum – como muitos ouvintes chegaram a acreditar – mas ele certamente soa muito mais fresco do que qualquer coisa que Simz tenha feito antes. A rapper, que se define como “Jay-Z num dia ruim, Shakespeare nos piores”, rima com uma suavidade inigualável por cima de beats que se constroem menos sobre batidas frenéticas e sintéticas como seus conterrâneos e mais sobre instrumentação acústica com um toque de Jazz. O disco soa como um passo em direção a uma integração maior entre esses dois pólos do Hip Hop.
Nesta sexta (15), Little Simz se apresenta pela primeira vez no Brasil no Popload Festival. Em entrevista, ela contou sobre o processo de gravar Grey Area e sobre as vitórias do Hip Hop britânico e de mulheres rappers ao longo dos últimos anos.
Seu último álbum foi lançado em 2016. Você estava trabalhando no Grey Area desde então? Qual foi a mentalidade por trás deste álbum?
Não, eu fiz o Grey Area em janeiro de 2018. Em um mês. Quando você está num estúdio todos os dias por um mês, as ideias chegam muito rápido. Pensei em algumas coisas antes de ir ao estúdio, mas não tinha nada definido. Passei algumas semanas em Los Angeles antes do Natal para entrar na mentalidade do novo álbum, depois voltei para Londres no Natal e em janeiro entrei em estúdio definitivamente. Durante a gravação do disco, eu saí das redes sociais e vivia muito esquiva, como um fantasma. Eu fiz daquele estúdio a minha casa. E tirei inspiração principalmente de eventos atuais, coisas que estão acontecendo na minha vida. Coisas que estão super perto de mim, que estão acontecendo na vida das pessoas próximas ou no mundo em geral.
Você está lançando mixtapes desde o início da década. Por que você acha que Grey Area teve uma recepção maior e melhor?
Eu acho que talvez a música seja mais madura, muito aberta e honesta. Talvez as pessoas se identifiquem mais com isso mais do que foram capazes de se identificar com a minha música antes deste disco. O que é bom. Talvez mais pra frente, mais pessoas continuem gravitando em direção à minha música e ouvindo falar de mim. Grey Area foi o meu terceiro álbum, mas para algumas pessoas é o meu primeiro. Muita gente ainda não era familiarizada com a minha música, então eu precisava encontrar um jeito de fazer tanto com que as pessoas que já estavam nessa jornada comigo ainda se sentissem interessadas quanto de me introduzir às pessoas que ainda não me conheciam.
Seu disco conta com muitos sons vintage: Jazz rap, muita influência do Hip Hop mais clássico do Reino Unido. Você ouve Hip Hop moderno ou de fato curte mais os antigos?
Eu gosto bastante das coisas antigas. Sou bastante atual e ouço o que está acontecendo agora, mas porque todo mundo está lançando um álbum toda semana, às vezes fica difícil de acompanhar. Às vezes, eu ouço só coisas que saíram há 10, 15 anos. Eu amo o Miseducation [da Lauryn Hill], os primeiros discos da Missy Elliott, os primeiros discos do Kanye, o Biggie …
Tem muita coisa legal acontecendo no Hip Hop britânico. Você acompanha essa cena? Gosta?
Sim, com certeza. Especialmente artistas de Londres, com quem eu quase sempre tenho uma conexão direta. Eu gosto muito do Slowthai, adoro o que ele está fazendo e é uma pessoa muito legal também. Ele se destaca totalmente nessa cena, o que eu acho legal. O Skepta também, que já está na cena há muito tempo.
Ainda existe uma barreira entre o Hip Hop britânico e o norte-americano?
Sim. Não sei exatamente por quê, mas talvez seja porque as pessoas nos Estados Unidos acham difícil se conectar com o que estamos dizendo, porque há um ritmo rápido, uma velocidade, e também tem o sotaque. Eu acho que essas coisas juntas tornam [o rap britânico] um pouco difícil de digerir. Mas vi, quando fui aos Estados Unidos, que as pessoas conseguem se conectar com a minha música. Acho que isso acontece porque, embora eu tenha um sotaque britânico – é muito perceptível que eu sou de Londres – em termos de batidas, eu sou bastante diversa.
Sinto que há mais abertura para rappers mulheres nos últimos anos do que tínhamos nas décadas passadas – hoje temos nomes como Cardi B, Tierra Whack, Rico Nasty, Megan Thee Stallion. Como artista, você vê essa mudança?
Algo mudou definitivamente, mas já deveria ter mudado há tempos. Acho que estamos bastante atrasados, honestamente. Tenho certeza de que a Rico Nasty não começou a fazer música há três meses, ou a Cardi B, ou quem quer que seja. Essas pessoas estão fazendo música faz tempo. Nós deveríamos saber delas, apoiá-las, desde que elas começaram. Às vezes eu não gosto de fazer desse espaço conquistado pelas rappers mulheres uma “coisa”, porque sinto que elas estão florescendo e isso é ótimo, mas é assim que deveria ter sido desde sempre.
Você também é conhecida por seu trabalho como atriz, principalmente em Top Boy. Como é viver entre os dois mundos?
Ultimamente essa pergunta tem sido muito feita para mim e acho que esses dois mundos precisam se fundir, se unir para fazer sentido, mas, ao mesmo tempo, não quero que alguém me assista a um filme e pensei tipo, “ah, ela está interpretando a Little Simz!”. Quero poder separar os dois de uma maneira que, quando você me vê na tela, acredite no meu personagem e acredite que estou nesse papel. Eu acho que essa é a coisa mais complicada do ofício de atriz, não porque eu não consigo, mas porque é difícil fazer as pessoas me verem como atriz e não apenas ver a Little Simz.