Luiza Brina e os porquês da “Prece”

A artista mineira destrincha alguns motivos e desejos que circundam seu mais recente disco; “Música é meu vínculo com a vida, o que me chama a acreditar”

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Fotos: Daniela_Paoliello

Prece é Luiza Brina em sua forma mais essencial. Mesmo com uma discografia que evidencia seus talentos como compositora e cantora, além de participações em outros projetos – como a banda Graveola –, é em seu mais recente álbum que a artista mineira se revela como produtora e arranjadora no mesmo nível das funções que já observávamos. Mais do que isso, é uma obra que nos convida a vermos melhor quem é a pessoa por trás de todos esses trabalhos.

Isso porque o disco nasceu da reunião de suas “Orações”, que é como ela chama um tipo de composição que surgiu durante épocas de crises de pânico e que permeia todos os seus outros lançamentos. Prece chega até nós como uma breve biblioteca da espiritualidade que Luiza desenvolveu por meio da música.

O aspecto conceitual está presente também na forma como o disco foi produzido: com uma orquestra formada por mulheres e uma grande mescla de timbres, ritmos e estilos, além de programações eletrônicas feitas por Charles Tixier (conhecido principalmente pela parceria com Luiza Lian).

Aqui, Luiza responde a alguns porquês que envolvem Prece.

Por que gravar com uma orquestra?

É um sonho que eu tinha já há muito tempo – o de poder explorar melhor os timbres e trabalhar com graves e agudos com uma extensão grande de informação. Me formei em composição na universidade e pude estudar orquestração. No curso, escrevemos no software de partituras, mas não temos a oportunidade, de fato, de escrever para uma orquestra, que é algo muito difícil, ainda mais no Brasil. Sinto que isso é ainda mais difícil para uma mulher. Vejo alguns amigos homens que já tiveram mais oportunidades de escrever para uma formação orquestral, e era algo que eu tinha vontade de fazer há muito tempo. Nos meus primeiros discos, escrevi para outras formações. [A banda] Liquidificador era uma formação com quarteto de sopros e violoncelo, então já tinha madeiras, metais e cortas, mas de maneira reduzida, além de percussão. [A orquestração] é uma pesquisa que me interessa – explorar capacidades de cada instrumento, entender até onde um fagote vai, por exemplo, qual a beleza da dobra de um fagote com outro instrumento.

Mas, ao mesmo tempo, não queria escrever de uma maneira europeia, queria trazer também outras linguagens para essa orquestra. Tinha um desejo de misturar não só instrumentações, não só pela mistura, mas para pegar algo da linguagem do batá (tambor da santeria cubana) e ter aquilo feito por um violoncelo, tentando levar essa orquestra para outro lugar. E, depois, passar por esse processamento que Charles Tixier fez com timbres ainda mais inusitados, que, no fundo, é uma dobra de um fagote com um synth.

Por que propor tantas misturas?

É algo natural em mim. Fui estudar composição na universidade porque não tinha música popular quando fui fazer vestibular, mas entendi que esse era o curso que me daria materiais para fazer o que queria. Não tinha vontade de estudar violão e virar uma grande violonista erudita, queria estudar música de uma maneira mais ampla. Meu interesse sempre foi a canção e a cultura popular. Na universidade, minha cabeça abriu muito e entendi que não dava para estudar apenas música europeia, como consequência dos processos de colonização, mas, ao mesmo tempo, não dá para negar que esse é um conhecimento também muito interessante, da história dessa música e seus compositores à maneira como era vista a harmonia. Mas eu também estudava com Jose Izquierdo, com quem estudo até hoje, que foi quem gravou os tambores em Prece, e já tinha outra perspectiva da linguagem e compreensão da música e de toda a cosmologia que vem dos toques da santeria cubana, ou do candomblé, ou do landó e do festejo peruanos, e de poder adentrar nesses universos não só na perspectiva ocidental das colcheias e semicolcheias, mas aprender a partir de outros sentidos cosmológicos. E também fazia aula com Itiberê Zwarg (baixista que acompanha Hermeto Paschoal) nessa mesma época, um cara fantástico que já tem outra perspectiva da música – mais livre, do ouvido, de escuta, do improviso… Então, acho que a maneira como vou fazendo os arranjos hoje em dia é uma mistura dessas vivências.

“A música surgiu na minha vida pelas mulheres; minhas duas avós eram pianistas e eu aprendi música com elas. Então, acho que a música é feminina para mim”

Por que gravar com mulheres?

Acho que isso é meio natural na minha vida também. Aconteceu naturalmente ter a maioria mulheres de instrumentistas em meus primeiros discos com Liquidificador. Para Prece, queria só mulheres na orquestra por mil questões, a mais óbvia delas sendo política mesmo. As pessoas normalizam que uma orquestra é formada por uma maioria de homens, quando, na verdade, há mulheres instrumentistas brilhantes. Inclusive, boa parte das mulheres que estão nesse disco são minhas ídolas. Mas tenho também o fato de que a música surgiu na minha vida pelas mulheres, porque minhas duas avós eram pianistas e eu aprendi música com elas. Então, acho que a música é feminina para mim.

Por que é esse o repertório de Prece?

O repertório reúne algumas das “Orações” que eu compus. Tive uma crise de pânico lá atrás, em 2010. Nunca tive religião nenhuma, minha família também não tem, e comecei a sentir que eu precisava acreditar, ter alguma fé em algo mais concreto, porque estava me sentindo muito perdida. Então, comecei a compor essas músicas nesse período em busca de uma salvação, ou crença. As primeiras orações falam muito sobre essa crise de pânico, ou sobre a morte. Depois [dessa fase] eu quis continuar compondo essas orações com outros temas, mas fui entendendo também que isso foi virando uma linguagem minha e que, na verdade, a música é minha religião – meu vínculo com a vida, o que me chama a acreditar.

Por que lançar Prece agora?

Isso eu não sei, acho que é coisa da vida. Acho que é um disco meio “de vida” mesmo. Estava esses dias conversando com Octávio Carmo, um escritor português que ama música brasileira, ele comentou que eu falo que fiz o disco em quatro anos, mas ele tem a sensação que é um disco que fiz durante minha vida inteira. E acho que é isso mesmo, que todos os outros discos eu fiz para chegar também nesse. É um desenvolvimento profundo do que eu já vinha pesquisando.

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ARTISTA: Luiza Brina

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.