Marabu começou a entrevista “invertendo” os papéis de quem pergunta e quem responde – coisa na qual eu, pessoal e profissionalmente, não vejo problema algum. Ele lembrou que eu sou do sul do país, mas achou que eu estava morando em SP (no entanto, sigo morando em Porto Alegre). “A gente que é paulista é ‘SPcentrado’, acha que todo mundo mora em São Paulo”, refletiu, ao passo que antecipou justamente o gancho pro começo desse papo.
Lançada em 12 de dezembro de 2023, a mixtape DIMALOKA, Vol.1: Denso se curva aos malokeiros e malokeiras de todo o mundo. Mas é fato que muito da atmosfera da qual a obra se inspira está endereçada no chão do MC, compositor, educador e curador: as ruas do Jardim Ângela e do Capão Redondo na zona sul de São Paulo. Filho de um casal interracial, com avós migrantes das regiões rurais de Minas Gerais e da Bahia, o artista nasceu em 1996, mesmo ano em que a quebrada onde passou a maior parte da sua vida foi considerada a região mais violenta do planeta pela Organização das Nações Unidas (ONU). Por essa dimensão territorial, surgiu a inquietação: não seria melhor uma jornalista de SP aqui no meu lugar escrevendo isso para você? Ou, então, deveria eu ter estudado a fundo o mapa da maior metrópole da América Latina para pegar a visão? No final das contas, decidi arriscar escrever do lugar de forasteira, como um esforço pra que, já na própria pauta, fosse possível deslocar o olhar de quem já saca tudo de São Paulo.
A aposta empolgou Marabu, que viu uma oportunidade de pôr sua tese à prova. “A mixtape apresenta a tese de que existe uma malokeiragem do Brasil, norteada por uma [mesma] identidade. Seja em Belém, em Recife, em São Paulo ou em Porto Alegre”, conceitua. Em tempos nos quais a estética periférica é cada vez mais apropriada, Marabu medita justamente sobre o conjunto de tecnologias que só a pedagogia da quebrada é capaz de decodificar. Ouvir DIMALOKA é o teste de pertencimento. A ética e a moral comum à malokeiragem brasileira são expressas em versos sagazes como “Nois até colo na igreja, mas não dava brisa/ Judas na Santa Ceia e não levar nenhum pipoco/ Para de ser loko”, da ótima “praia de santa rita”, que demonstra como a lealdade é um valor levado mais à risca na quebrada do que na trama bíblica.
Para além da postura, das vivências e da lírica, a qualidade da densidade é transportada às bases sonoras em porções minuciosamente calculadas pela orientação de Marabu e produção musical de Levi Keniata. Em nove faixas firmadas no funk e em constante flerte com o boom bap e o drill, DIMALOKA, Vol.1: Denso permeia o maciço e o rarefeito. Um equilíbrio entre a atmosfera de agitação, a neurose e a obscuridade – tangível em faixas como “algo me diz” e “rua escura” – com as cadências dilatadas, quando não ritualísticas, de “lua cheia céu azul (olha lá)” e “onlyblackhands (interlúdio)”.
Assumindo uma perspectiva mais íntima do que a apresentada no disco estreia FUNDAMENTO (2020), o MC revela um mapa afetivo por meio de composições carregadas de lições, memórias, sonhos, intenções, afetos, desejos e inquietações. Papo de visão. Os ruídos que toneladas de publicidades causam na capacidade de escuta, a ausência de conexão nas trocas, a voracidade do mercado musical, as estratégias de sobrevivência, a macumba, a proteção, a intuição e os desejos. A caneta de Marabu opera sem dó. Os versos ganham amplitudes ainda maiores com o repertório vocal do MC, um refino técnico que complexifica ainda mais as nuances narrativas.
Marcando território no funk, na música urbana e nas artes periféricas, Marabu reivindica a subjetividade e dá as costas ao narcisismo e à ostentação que dominam a cena. Em tempos de Evoque, ele surge num Santana 2000 na capa assinada por Demobuda, Lucas Lourenço e Vitor Sepinho. Financiada pelo programa de valorização a iniciativas culturais da Prefeitura de São Paulo (VAI) e lançada pela Nebulosa Selo, a mixtape foi citada com destaque positivo em listas de O Volume Morto, 300Noise, Popload e Billboard Brasil. Aqui, trocamos ideia com Marabu sobre a relação com seu território, os caminhos que levam a DIMALOKA e as bases do seu projeto de malokeiragem, pavilhão do qual se faz guardião.
Que papel a tua área ocupa na cidade e como é viver SP a partir dela?
Existe uma parada muito maluca que é [o fato] da minha quebrada não ser tão perto do centro. No sentido de tempo, de deslocamento, a gente não tem um fácil acesso ao centro, ao contrário da zona norte, da zona leste e da zona oeste da cidade. Claro, o Capão Redondo não é a quebrada mais longe da zona sul, tem quebradas mais distantes, como Parelheiros. Mas acho que esse é um ponto principal desse que foi um território que demorou pra ser ocupado, algo que rolou nos anos 80 e 90. Minha família veio pra cá nesse contexto.
O Jardim Ângela é menos tradicional, digamos assim. Campo Limpo, São Luís e Capão Redondo são quebradas mais tradicionais aqui na zona sul, com uma efervescência cultural mais pra frente. O Jardim Ângela é uma quebrada mais abandonada. Esse aqui é um território muito marginal, mas a parada principal é que a cena cultural que nois vive hoje, essa cena do rap, principalmente, que explodiu nos anos 90, tinha muito vínculo com o que tava acontecendo aqui. O mais extremo era aqui. Os caras da zona norte, da leste e da oeste tinham suas visão pra passar, mas as visão da zona sul eram as mais violentas e radicais. Isso moldou um pouco a parada de ser daqui, essa brisa de que “a malokeiragem dos cara do Capão Redondo e do Jardim Ângela é mais chucra”.
A zona sul não tinha também a parada das escolas de samba, agora tá tendo porque a comunidade tem se mobilizado em torno disso. Mano, o que sempre teve aqui foi rap e cultura nordestina pesada, forró, brega, essas paradas são muito fortes aqui – principalmente no Jardim Ângela. Depois de um tempo, o funk chegou, principalmente na região de Santo Amaro, através dos bailes funks.
Mas o Capão Redondo tem uma parada: diferente do Jardim Ângela, ele recebeu algumas famílias pretas de São Paulo mesmo. Eu pelo menos consigo enxergar mais notadamente a influência da negritude de São Paulo no Capão Redondo, e aí tem a influência do rap. Seja na construção geográfica, seja na cena cultural, o hip hop é muito mobilizado no Capão Redondo. E isso é uma influência das famílias negras daqui. Além da parada cultural mais forte com o rap, o Capão tem também uma brisa com a cultura dancehall. Nesse sentido, o Jardim Ângela é uma quebrada mais largada. Quem faz cultura lá tá na resistência 100%, porque é uma quebrada de nordestino, com cultura de forró, e a gente sabe que hoje em dia a juventude tem dificuldade de dialogar com essas paradas.
Quando eu era mais novo e morava no Jardim Ângela, pagava muito pau pro Capão Redondo. Sempre estudei lá, queria dar rolê lá, queria andar com os meus amigos de lá. E depois do metrô, mudou tudo. O metrô do Capão Redondo dá acesso ao resto da cidade, então, todo o mundo que mora na região vem até aqui pra ir pro metrô, e isso mobiliza muita coisa também.
Com o tempo, fui percebendo qual era a brisa da gente [da zona sul] no centro, entender as diferenças: a [zona] leste tem uma identidade própria, a norte tem uma identidade própria, e a oeste também – mas essa é mais confusa pra mim. É quando a gente vai pro centro que a gente percebe essas coisas. Quando eu chegava na [festa] Discopédia e tinham vários pretão da zona norte, vários pretão da zona leste… Os que vêm de famílias onde todos são pretão; vai ter os pretão rico, com mãe médica e o pai advogado… Aí você já vê que é outras ideia. Eu querendo usar as roupas da Onda Sul, uma marca de roupa aqui da quebrada, e os caras lá já tavam usando Diamond, Supreme, já tava no internacional, tá ligado?
Eu tive contato com a cultura da zona sul, comecei a fazer rap, fazer poesia. Nois queria ser vida loka, ouvia Racionais e pá – Racionais é o orgulho da quebrada. Quando você chega na estação do Capão Redondo, já tem um grafite do Kobra com a cara dos quatro Racionais.[Tem também] o Ferrez, que criou um movimento muito da hora de literatura marginal, ele tem um livro que se chama Capão Pecado sobre a história daqui, e criou a 1DASUL, uma marca de roupa que também é uma editora de livros e que é muito popular aqui na quebrada. Sempre com essa cultura muito de malokeiro. Tem os meninos do Sarau da Cooperifa aqui na divisa da São Luís com o Jardim Ângela. Isso fomenta uma cena entre os anos 2000 e 2010 que já incentivou os caras a pesquisar sobre ser preto, sobre ser de quebrada, sobre ser ideológico, sobre dancehall. Isso fortaleceu o funk da zona sul e tem reverberações.
Se você pegar os trampos do MC Cassiano, MC RN do Capão, MC Leozinho ZS, eles têm características semelhantes. Se você souber um pouco desses detalhes, vai ver que tem muito de zona sul. Assim como se você olhar pro funk da zona norte e da zona leste, também é possível. Se você pegar o trampo do MC IG e do MC Kevin, é uma parada; agora se pegar do MC Cebezinho, é outra. Mas é no detalhe. Hariel é zona norte. MC Paulin da Capital, que é zona leste, já é outra coisa. Tem essas distinções.
“A mixtape apresenta a tese de que existe uma malokeiragem do Brasil, norteada por uma [mesma] identidade. Seja em Belém, em Recife, em São Paulo ou em Porto Alegre”
E tu mora no Capão agora?
Isso, moro no Capão. Mas são quebradas muito próximas, preta, dá pra ir andando. Agora eu moro no Jardim Fraternidade, a favela do 67 é a quebrada mais próxima. Mas o bairro é uma divisa: eu desço essa rua, tô no Capão; subo a rua, tô no Jardim Ângela. A minha vida foi dividida entre esses dois territórios. Estudava no Capão, mas morava no Jardim Ângela, onde também ficava a igreja que eu ia.
Tu já foi crente?
Sim, [durante] a infância e o começo da adolescência.
Tu saiu da igreja evangélica em tempo de ter uma vivência “mais” malokeira?
Sim. Primeiro que na vivência de uma igreja na quebrada nois já têm contato com muita coisa [risos]. Os meninos [com quem] eu jogava bola também já me apresentaram pra “esse mundo”. E não tinha como não ter contato com as músicas, porque eu já tava na escola e também sempre tive amigos mais velhos. Quando eu tinha 12 anos e tava lá na vida da igreja, meus amigos já vinham falando “ó, a música do baile é tal”, já vinham cantando.
Apesar da minha mãe, uma mãe solteira, ter sido mais centrada na vida da igreja e quisesse me isolar pra estar lá, eu ainda tinha meu pai. E meu pai, mano, sempre me apresentou música. A minha experiência musical mais marcante é ouvir música no carro do meu pai. Ele nunca me restringiu de conhecer o mundo. Era muita música, muito rolê… o primeiro samba que eu fui na minha vida foi com o meu pai. Minha mãe queria morrer, tá ligado?
Como várias pessoas, eu também tive minha primeira experiência musical prática no coral da igreja. Fiz parte do grupo de louvor de jovens e pá, mas eu sempre queria inovar, sugeria de botar bateria, batucar, tocar um rap gospel… Aí os pastor queria morrer [risos].
E você é graduado em História, né? Licenciatura ou bacharel?
Sou bacharel e tô terminando a licenciatura agora. E tô começando a pensar em me preparar pra fazer o mestrado, se pá. Quando entrei na USP, logo me vinculei com os pretos – eu tava entendendo que era preto nessa época aí. Fui frequentar um núcleo de consciência negra na USP e foi lá no cursinho popular que tive minha primeira experiência dando aula. Foi minha primeira experiência política, a gente articulou a política por cotas raciais na faculdade, fizemos o festival “Por que a USP não tem cotas?”, fiquei lá vendendo cerveja, tá ligado? Fazia esses rolês. E foi muito importante pra mim, pra eu ser a pessoa que eu sou politica e intelectualmente hoje.
Atualmente eu vejo que na cena pessoas querem se desvincular ou colocar de uma maneira pejorativa as pessoas que têm uma caminhada intelectual ativa. O que é uma grande palhaçada. Eu sou um artista que também é intelectual, tá ligado? Acho que todos os artistas na real têm um grau de intelectualidade, apesar de alguns falarem que não. É todo mundo. Uso esses termos acadêmicos pra poder falar dos bagulhos que eu faço porque consigo ver que o jeito que nois faz música nas quebradas tem método, tem pesquisa, tem hipótese, tem tese, tem porquê, tem ideia. Tem intelectualidade em tudo que nois faz, só não tá na linguagem do mundo acadêmico. A graduação em História foi muito importante na minha vida nesse sentido.
“Sou um artista que também é intelectual. Acho que todos os artistas têm um grau de intelectualidade, apesar de alguns falarem que não. Uso termos acadêmicos pra poder falar do que eu faço porque consigo ver que o jeito que nois faz música nas quebradas tem método, tem pesquisa, tem hipótese, tem tese, tem porquê, tem ideia. Tem intelectualidade em tudo que nois faz – só não tá na linguagem do mundo acadêmico”
Sua tese musical mais recente é DIMALOKA. Já no título a mixtape indica ser parte de um projeto em mais etapas, ou melhor, volumes. Esse é justamente o volume 1, o que me faz querer saber: por que você decidiu começar pelo lado denso da parada?
Começar pelo denso já é demonstrar que essa malokeiragem é multifacetada, tá ligado? Tem muitos jeitos de ser malokeiro e ser malokeiro é uma parada densa. Ser malokeiro não é só a roupa e a gíria que cê fala. Não é só sobre se você fuma maconha ou não, se você é crente ou macumbeiro, porque tudo isso pode ser malokeiro. Você pode ser malokeiro e ser crente, tá aí os MCs de funk, de trap e de rap que não deixa nois mentir. Mas você também pode ser malokeiro e ser macumbeiro, que é o meu caso e o de vários outros artistas. Você pode ser malokeiro e ser intelectual, formado. E você também pode ser malokeiro e não ter terminado a escola. Você pode ser um malokeiro branco, pode ser um malokeiro indígena, ser maloka e ser LGBT. A malokeiragem é densa, parça.
Eu sou uma pessoa de muitas faces. Por muito tempo, inclusive enquanto artista, eu achava que não tinha um lugar pra mim na música, na arte, no mundo mesmo. Eu curto rap, curto funk, mas eu não sou só isso. Isso não me contempla 100%. A primeira frase do disco é: “Corta o personagem!” Eu não sou um estereótipo. Não sou o estereótipo de preto no rap, de preto no trap, de preto funkeiro, de preto gringo, preto intelectual, de preto crente, nem de preto macumbeiro. Eu sou denso. Eu sou muitas coisas ao mesmo tempo. Eu posso ser tudo ao mesmo tempo.
Coisas novas tão surgindo o tempo todo. O drill, o grime, a sonoridade da música eletrônica internacional, tudo isso é apropriado pelos malokeiros. Nois se apropria dos bagulho e transforma em malokeiragem – isso quando nois não cria do zero. O funk e o rap foram criados pelos malokeiros. Mas tem muita gente que tá dentro dos bagulho e não é malokeiro, e tá reivindicando um lugar de quebrada, um lugar periférico, mas não é malokeiro. E também tem muito preto mil grau que não era malokeiro. Eu fico num debate: o Jorge Ben era malokeiro? Eu acho que não! Mas ele é importantíssimo pra malokeiragem. Porque, em primeiro lugar, a malokeiragem é negra. Tem brancos que habita o bagulho? Sim, mas quando o branco habita a malokeiragem, você tem que saber que tá habitando um mundo negro.
É denso mesmo…
É, é denso.
“Eu tô no mercado, sou um artista, quero viver do bagulho, mas não quero que os meus valores e os valores da minha comunidade se percam. É um pouco romântico? Idealista? Ambicioso? É. Eu sei disso e pago o preço por isso todos os dias”
Marabu, qual foi o cálculo entre as “cenas” das faixas da mixtape em que tu é observador e que tu é protagonista?
Chave, essa pergunta é daora. Quando fui fazer a mixtape, quis falar coisas reais; coisas minhas enquanto uma pessoa e um artista real, de vivências reais, de afetos reais, que circula na cidade de verdade – eu pego metrô, pego busão, ando na rua a pé – que vai pro baile, que às vezes tem dinheiro, às vezes não. Queria imprimir ali a minha identidade e a das pessoas que tão comigo.
Eu falava pros caras da Nebulosa: eu quero falar de nois, de como nois vê o mercado, de como nois vê a música, de como a gente vive os bagulhos, de como a gente vai pro rolê, qual é os veneno que a gente passa, as ideia que a gente têm, as críticas que a gente faz. Acredito que o que nois faz na Nebulosa tem uma identidade entre as pessoas.
“santana 2000” é sobre essa brisa da nossa identidade ser única. Eu tava fritando muito num rolê que eu fui do mercado da música, tinham uns mano mais rico, com carro de luxo. Esses caras que vão falar de Audi, Porsche e Lamborghini nos trampos. Mas a gente nem tem a brisa de ser milionário. A malokeiragem ia vir de Passat, Kadett, Santana, Golzinho, se nois pudesse comprar carro ia comprar carro de véio. A gente não é milionário, nois não tem a brisa de andar de Lamborghini.
Essa música é sobre postura de malokeiro. Sobre quem não tem interesse em parecer com as outras pessoas que tá nessa cena; sobre quem é preto, que anda com preto, [que se relaciona] com mulheres pretas, que têm filhos pretos. Que não têm interesse em andar com roupas de grife ou em tá ostentando joia. A malokeiragem real não anda de Porsche, ela anda de Kadett e vai arrumando conforme vai dando. E o bagulho vira um xodó.
O contraponto máximo do malokeiro é o playboy. O malokeiro no exercício da malokeiragem tá distante desse playboy. Muita gente quer definir quem o playboy é, mas é foda definir quem é o outro. Quem é você? Você não usa marca tal, não vai em rolê tal… Então, qual marca você usa? Que rolê você vai?
Uma busca por se definir não pela negativa, mas sim pela afirmação.
E tem muitas pessoas que vêm da pobreza, que tem origem de quebrada, e quando ascendem querem parecer com o outro. Quer viver como playboy, se relacionar com a vida como o playboy se relaciona, morar onde eles moram, comer o que eles comem, vestir o que eles vestem, se relacionar com as mulheres com quem eles se relacionam. Essa brisa racha a malokeiragem pra mim.
Dá pra dizer que tu e tua arte se levantam em nome da malokeiragem?
Esse é o mote principal no momento atual. Eu descobri com esses bagulhos astrológicos – e na macumba também – que eu sou uma pessoa idealista.
DIMALOKA é um projeto.
É, parça, eu tô querendo montar uma união sinistra que acho que o mundo, a cidade e a arte tão precisando. Uma união que os preto e a juventude de quebrada tão precisando: de uma malokeiragem, sólida, incisiva, ideológica, imponente, com autoestima. Uma malokeiragem sinistra e coletiva. É meio que uma convocação.
Nesse projeto fica nítido que a tua prosperidade não tá na métrica da ostentação, tá em outra, talvez numa prosperidade DIMALOKA.
É, uma prosperidade não ocidental; que é macumbeira, negra, que tem vínculo com as nossas raízes enquanto comunidade. Eu não acho que exista uma comunidade malokeira em São Paulo. Existem, sim, mobilizações coletivas, muitas – a Nebulosa é uma delas. Mas, comunidade? A gente tá sem comunidade faz mó cota, tá osso. Comunidade é tipo assim: eu posso discordar se você faz algo de um jeito e eu faço de outro, mas a gente tem que tá unido. E hoje não tem isso, é cada um por si. Quem abriu a gravadora tal, quem vai fazer a sua panela pra chegar num lugar tal, pra chegar primeiro e, quando chegar, fechar a porta porque só vai poder passar se for por ele e pelos seus amigos. Mano, eu tô tentando construir um diálogo pra além disso.
Você pode não gostar de mim, não gostar das minhas músicas, pode não me achar firmeza, mas nois têm acordos políticos? Comunitários? Ideológicos? Um posicionamento? Se sim, marcha, a gente tá construindo uma comunidade. No quilombo, mano, não importava se você era de Angola ou se você era bantu. Você fugiu do bagulho e tá aqui? Então é todo mundo junto. Quer discordar? Discorda aqui dentro. Quando nois sai lá fora, nois é a mesma fita.
“Em primeiro lugar, a malokeiragem é negra. Tem brancos que habita o bagulho? Sim, mas quando o branco habita a malokeiragem, você tem que saber que tá habitando um mundo negro”
Certo. Marabu, quero falar também de sonoridade. Desde o teu primeiro disco tu carrega muita autenticidade, mas sinto que em FUNDAMENTO as referências estão mais explícitas e diversificadas. Já em DIMALOKA, Vol.1: Denso, o som alcançou um outro patamar de concisão e de refino. Carrega uma assinatura de muita propriedade. Como foi a busca por essas sonoridades? Qual contribuição do Levi Keniata nesse processo?
É muito maluco você falar que a gente chegou num grau de concisão [neste trabalho] porque o FUNDAMENTO é um disco feito em dois anos. O DIMALOKA é um disco feito em meses. Tem uma maturidade do processo. Com o Levi é um bagulho único. Um universo particular, se pá. É um axé muito grande tê-lo na minha vida como amigo, como parceiro, como colega de trabalho. Assim como o Wellisson [Freire] que fundou a Nebulosa com o Levi e que tá na produção executiva. Eles são a ponta, os que seguram as coisas. E também tem muitas outras pessoas que tavam nesse molho.
O Quincy Jones é uma inspiração pro Levi, e ele repete muito uma frase dele e que diz: “Quando você for entrar no estúdio, você deixa o ego do lado de fora”. Eu introjetei esse bagulho pra mim porque é só assim que consigo me sentir suave. Se eu ficar performando muita brisa, só vou ficar acumulando neurose. Eu e Levi temos uma maturidade, criamos um espaço de criação em que somos muito sinceros um com outro. Ele é produtor, trabalha no estúdio todos os dias, tem muito mais conhecimento teórico e musical do que eu. Quando ele me fala as coisas, consigo separar meu amigo do meu produtor. Eu testo. Vamo lá, você que eu cante uma oitava acima? Eu canto. A gente ouve. Se gostarmos, é isso mesmo. Se não, fazemos de outro jeito. Porque o estúdio é um ateliê, um lugar onde a gente desenha e joga fora, faz esboço, erra. Foi assim até chegar na interpretação que tá no disco. [Pra faixa] “miragem” rolou umas quatro ou cinco interpretações vocais diferentes; selecionamos duas e juntamos, tem esse jogo. Uma base pra fazer os sons do DIMALOKA é a Trilha Sonora do Gueto.
É muito importante falar do Mixtheus, que cumpre um papel fundamental pra você ter essa qualidade de som. Ele trampa com nois ali na hora, já me ouve gravando pra saber o que ele vai fazer na mixagem.
Tem drill, tem dub, tem trap, são muitos elementos, mas DIMALOKA é um disco de funk. Por quê? Porque a minha área de estudo vocal tá no funk. Existe uma escola de canto do funk que vem do samba; uma escola vocal de canto que o Daleste colaborou pra criar, que o [MC Felipe] Boladão colaborou pra criar, que o Kevin colaborou pra criar. Esses mano faleceram e as pessoas não foram falar da contribuição artística deles.
Eu me debruço há alguns anos pra entender qual a brisa técnica do cantar funk. Já entendi que a minha voz é uma voz de cantar funk – e eu preparei a minha voz pra isso. Meu estudo é o [MC Neguinho do] Kaxeta, o Daleste, o Boladão, o Kauan, Kevin, Ig, MC Rita, a Tati [Quebra Barraco], Deize Tigrona. Uma ambição minha é de ser um artista que ajuda as pessoas a olharem pro funk como arte.
As pessoas se debruçam sobre o samba, estudam a técnica dos grandes cantores e intérpretes brasileiros, e isso é lindo. Tem os nerdão do rap que olham pras métricas de caras como Jay-Z, Wu Tang Clan. Eu quero que os caras olhem pro funk da mesma forma. Eu olho pro funk dessa forma e acho que ele é merecedor desse respeito. Eu sou agente cultural, político, mas sou artista; pago o preço por ser artista, tá ligado? Várias paradas vêm e várias não vêm pra mim.
Tu acabou de trazer várias perspectivas brilhantes, Marabu. Ainda no campo da atmosfera do disco: como se deu a construção da tracklist da mixtape?
Essa foi uma construção baseada no repertório que se tinha com umas 15, 20 músicas. A gente vai do bagulho mais intelectual, do mais político, “todo o maloca é uma faixa de gaza”, depois pra “bota 50 de gasolina” que “se tudo der certo” a gente vai viver a vida porque é tudo isso ao mesmo tempo mesmo.
“Existe uma escola de canto do funk que vem do samba; uma escola vocal de canto que o Daleste colaborou pra criar, que o [MC Felipe] Boladão colaborou pra criar, que o Kevin colaborou pra criar. Esses mano faleceram e as pessoas não foram falar da contribuição artística deles”
Tu soltou um single por agora, “vida de turista”, que se conecta muito com a última faixa da mixtape (“praia de santa rita”). Além da conexão sonora, há uma conexão visual, os clipes têm um roteiro conjugado. Isso é uma senha do que virá em um futuro Volume 2? A parada vai ser mais solar, mais dançante?
Acho que “vida de turista” não dá a senha pro que vai acontecer, ela diz o que está acontecendo. Ela tava no repertório de DIMALOKA e a mixtape ainda tá acontecendo. Os lançamentos morrem muito rápido [hoje em dia] e tô tentando criar estratégias dentro do jogo pra eu poder ser eu, poder dar vazão pro que acredito sem sucumbir, sem degradar minha arte, minha identidade. Tô tentando dar vida pra esse disco.
Não posso te afirmar se [o próximo trabalho] vai ser mais dançante, verão e rarefeito, porque eu não sei. O que eu sinto é que as próximas etapas vão ser muito mais energizadas. Com muito movimento, muita pancada, muita batida, mas isso não significa que não vão ter coisas mais tranquilas, mais rarefeitas. Mas até nessa hora de relaxar vai ser uma hora de energia. Esse é o bagulho que tá na minha cabeça agora.
Marabu, o conceito de DIMALOKA, Vol.1: Denso foi definido como “uma ode à malokeiragem paulista”. Ambicioso, não? Esse não é um assunto novo, existem muitos registros sobre a malandragem e a malokeiragem nas mais diversas vertentes e linguagens, ainda mais sobre a cena de SP. O que na abordagem de DIMALOKA tu considera que se destaca e se diferencia?
Não tem nada de novo, mas a parada é que eu tô tentando resgatar valores que estão perdidos; valores que as grandes empresas da música e do entretenimento estão interessadas em desfazer, porque eles não são lucrativos – pelo contrário. Porque os valores das nossas culturas não estão no lugar da exploração; estão no lugar de bem-viver, de uma prosperidade que envolve compartilhamento, comunidade. Eu acho que não tô sozinho nessa, tem muita gente interessada em não deixar que esses valores se percam.
Como um artista jovem com uma carreira nova, percebo que muita coisa tá se perdendo por essa mercantilização de tudo que envolve nossa vida, nosso trabalho, nosso fazer artístico. Eu tô no mercado, sou um artista, quero viver do bagulho, mas não quero que os meus valores e os valores da minha comunidade se percam. É um pouco romântico? Idealista pra caralho? Ambicioso pra caralho? É. Eu sei disso e pago o preço por isso todos os dias.