Maria Beraldo em versos que abraçam e espelham o mundo

“Colinho”, segundo álbum solo da artista, une pop e vanguarda em uma celebração de liberdade e identidade

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Fotos: Ivan Nishita / Ivi Maiga Bugrimenko

Seis anos após o aclamado Cavala (2018), Maria Beraldo retornou à cena musical com o seu segundo álbum solo, Colinho. Sob produção da própria Beraldo em parceria com Tó Brandileone, o disco, lançado pelo selo RISCO, é uma experimentação pop que aborda temas como sexualidade, identidade e afeto. “Esse disco fala de identidade, fala de identidade de gênero – e consequentemente isso é identidade”, introduz Maria. Com contribuições de artistas como Ana Frango Elétrico, Negro Leo e Zélia Duncan, Colinho não só desafia normas musicais, como celebra a individualidade e a diversidade dentro da música brasileira contemporânea.

Segundo Beraldo, Colinho é resultado de um processo de criação íntimo e pessoal, em que a artista revisita suas raízes musicais e reconstrói suas relações com a própria identidade. “Independente do que é, eu acho que nesse disco estou olhando para a minha infância, lá para sete anos, primeira infância, começo da pré-adolescência. Acho que é um período que tem muito a ver com identidade, ou pelo menos para mim, estou puxando esse fio da infância, as questões de identidade, onde as coisas começam, quem eu sou”, reflete a artista. No disco anterior, Beraldo também explorou questões sobre identidade e gênero, mas agora, em Colinho, a abordagem se incrementa e amadurece — ela encontra espaço para falar de sexualidade de forma aberta e livre, abraçando “o prazer de se sentir mais resolvida”.

Beraldo explica que o álbum mergulha em diversas sonoridades que marcam sua trajetória musical e de vida. Para ela, as faixas de Colinho são como “memórias sonoras” que refletem tanto o piano clássico e o samba que ouviu na infância, quanto o funk e o pop que fazem parte de sua expressão atual. “Eu trouxe o piano de casa para dentro do disco, o violão também, arrastei todos esses instrumentos que são da minha família. Esse disco é muito como entrar na minha casa, no meu quarto, e ao mesmo tempo, sou eu saindo de rolê”, comenta a artista.

“Em ‘Colinho’, eu queria ir além do que já fiz antes, trazer a leveza da canção sem deixar de lado a complexidade”

A complexidade emocional de Colinho encontra um equilíbrio entre temas profundos e sutilezas melódicas. Na faixa “Baleia”, criada em parceria com Juçara Marçal e Kiko Dinucci, Beraldo revela um dos lados mais poéticos do disco. A música, já gravada por Marçal em Delta Estácio Blues (2021), mistura o lirismo com a irreverência. Ambientando a releitura, o som parte para o maximalismo acústico, em que as camadas eletrônicas de Cavala dão lugar à livre expressão de instrumentos de arranjos mais tradicionais da música brasileira. “Acho que essa relação com os instrumentos acústicos é realmente uma coisa importante da sonoridade desse disco, e foi muito pela vontade, pelo que eu queria ouvir, então, não foi uma coisa, assim, de que ‘eu queria fazer um disco mais acústico’”, explica. Ao pensar a paleta sonora e instrumental de Colinho, Maria não tinha em mente objetivamente se distanciar de Cavala, mas, sim, reencontrar suas origens de instrumentista. “No Cavala eu estava muito descobrindo o mundo eletrônico, o mundo pop, foi uma investigação mesmo, porque eu venho do mundo da música instrumental. Eu toco clarinete, clarone, tocava bateria quando era mais nova, minha mãe toca sax, minha irmã toca flauta, meu pai toca violão, e os grupos que eu tinha na adolescência e na juventude eram bastante de música instrumental. Ouvi muito Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, muito jazz também, e chegando em São Paulo, lá para 2013, fui trabalhar com o Arrigo Barnabé, que já virou a minha cabeça”, conta a florianopolitana.

A artista aprecia a diversidade de influências e gêneros musicais que permeiam o álbum, e Colinho evidencia a amplitude de suas colaborações. A faixa “Matagal”, por exemplo, traz a participação de Zélia Duncan. “Ter a Zélia foi muito especial. Ela traz um toque de sabedoria e uma energia que é única. Eu fiz essa depois de um encontro com o Tim (Bernades), de um papo nosso sobre meu show. Ele sugeriu de eu experimentar um momento no meu show, com uma música mais ‘onda’, sem tanta informação. Essa música é essa tentativa”, diz Beraldo. A junção de vozes e timbres cria uma sensação de suspensão, de pausa em meio ao caos, um “momento aconchegante” que, para Beraldo, é essencial em Colinho. “Daí eu pensei na Zélia, que é uma grande referência para mim, uma artista incrível, de quem eu sou fã demais, tem uma voz linda, maravilhosa. E eu fiquei com essa ideia na cabeça, meio com vergonha. Só que aí eu fiz um show na Virada Cultural com as Sáficas (Juliana Linhares, Josyara, Jadsa e Mahmundi) e a encontrei no backstage. Ela me chamou para fazermos algo, e aí rolou”, relembra.

“Trouxe o piano de casa para dentro do disco, o violão também, arrastei todos esses instrumentos que são da minha família. Esse disco é muito como entrar na minha casa, no meu quarto e, ao mesmo tempo, sou eu saindo de rolê”

Para Beraldo, as músicas de Colinho são, em parte, resultado de sua experiência recente com a composição de trilhas sonoras e direção musical, trabalhando com Felipe Hirsch em suas peças desde 2019 – inclusive, sendo indicada por duas vezes ao Prêmio Shell de Teatro e vencedora como Melhores Arranjos Originais pelo prêmio Bibi Ferreira. Maria também assina a trilha sonora original de diversos filmes, entre eles Regra 34 (Julia Murat), que ganhou o Pardo D’Oro no Festival de Cinema de Locarno 2022, e Levante (Lillah Halla), que ganhou o prêmio FIPRESCI no Festival de Cinema de Cannes 2023. Em 2024, Beraldo criou a música para a peça “Piedad Salvage”, do Balé Municipal de São Paulo, dirigida por Judith Sanches Ruiz. “Comecei a trabalhar com teatro e cinema, o que foi muito… Um lugar de muita investigação. Também é outra mudança de perspectiva com relação à criação, né? Do ponto de vista do tamanho do que eu tinha para pensar. Enfim, os meus discos eu penso em canções, são trechos curtos, assim. E aí, de repente, um filme, uma peça, eu tinha duas horas para pensar na música. Para pensar numa narrativa, num arco. Então, isso também me trouxe outro pensamento de estrutura com relação à música”, contextualiza Beraldo.

No meio das experimentações com teatro e cinema, a artista se viu contemplada na possibilidade de se ver de modo espontâneo, sendo a música sua forma de pensar narrativas.“Isso me deu muita possibilidade de experimentar coisas, de trabalhar com outros músicos também. Porque aí comecei a estar nessa posição também de diretora musical nas peças. Enfim, experimentei muita coisa. Comecei a estudar música de concerto também, há um tempinho. É um pouco… Assim como o manguezal para o mar. Os animais se reproduzem no mangue e vão para o mar. Acho que minha relação com o teatro e com o cinema é como se fosse um manguezal desse meu disco, sabe?”. Em uma narrativa fluida que incorpora do jazz ao funk, do folk ao eletrônico, Colinho é uma jornada através das fronteiras entre o tradicional e o contemporâneo, o pessoal e o universal. Para Beraldo, essa fusão de estilos reflete sua própria trajetória: uma artista que começou como clarinetista e, ao longo do tempo, expandiu seu repertório e estilo para incluir vocais, composições e produções que desafiam as convenções. “Mas, em Colinho, eu queria ir além do que já fiz antes, trazer a leveza da canção sem deixar de lado a complexidade”, elabora.

A escolha de encerrar o álbum com “Minha Missão”, um samba de João Nogueira, é tanto um tributo quanto a reafirmação de uma conexão fundamental. Para Beraldo, é uma forma de retornar às suas raízes e homenagear uma das influências mais importantes de sua vida. “Essa música está comigo há muitos anos. Eu cresci em roda de samba, roda de choro, é de onde eu venho. Aprendi a tocar clarinete tocando em roda, pegando coisas de ouvido, decorando música e conhecendo o repertório. Essa letra, além de ser linda e tudo, é uma letra muito forte, acho que ela explica todo o disco”. Para ela, o samba não é apenas um estilo musical, mas uma manifestação profunda de vínculo e pertencimento. Ela explica que Colinho é uma espécie de extensão desse sentimento, de “roda de samba” em sua própria versão. “Eu quis fazer essa música desse jeito, porque acho que ela explica o disco. De alguma maneira, o samba, para mim, é uma música da qual eu faço parte profundamente, e as outras músicas do álbum refletem isso. O disco é, de certa forma, o meu samba.” Para ela, o conceito vai além da estética musical e se enraíza na ideia de comunidade, interação e catarse. “O samba é nossa música, é o que fazemos para encontrar os amigos, fazer o som, se conectar com o mundo, conversar, tocar junto. Tudo isso é fazer música, e o meu disco é isso também.” Em Colinho, Beraldo traz essa atmosfera coletiva e acolhedora, transformando o álbum em uma espécie de roda de samba onde a troca e o afeto moldam a experiência.

“Falar de desejo é, na verdade, político. E isso se dá em mim de um jeito muito espontâneo –  porque a catarse intelectual e musical é também a catarse emocional para mim”

Ao longo dos 11 temas do álbum, Beraldo combina de forma magistral suas explorações sonoras com uma visão de mundo que celebra a música como expressão de existência e resistência como pessoa não-binária e lésbica. “Falar de desejo é, na verdade, político. E isso se dá em mim de um jeito muito espontâneo, porque a catarse intelectual e musical é também a catarse emocional para mim”. Para ela, fazer música é mais do que criar um produto ou se encaixar em exigências de mercado; é uma expressão visceral, um impulso vital que traduz a própria razão de ser. Como Beraldo revela: “A gente canta porque precisa, porque é o que a gente é — canto para viver e vivo para cantar.” Em um momento em que “o mercado passa por cima de tudo, inclusive da própria música”, ela reconhece que aqueles que fazem música de verdade o fazem por necessidade, pois esta é uma das poucas maneiras de viver em comunidade e em conexão com o mundo. Para a artista, “a música é ritual também, é a nossa relação com a existência, é a nossa troca, é o jeito da gente viver em sociedade”.

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ARTISTA: Maria Beraldo

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