Mark Lanegan: Dor e Rock

Com o lançamento da coletânea do músico, aproveitamos para redescobrir um pouco mais de sua obra

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Saiu anteontem na parte desenvolvida do planeta Has God Seen My Shadow: An Anthology 1989-2011, um merecido e amplificado compêndio de canções registradas pelo obscuro e atormentado Mark Lanegan em seus momentos solo. É importante frisar que esta coletânea, ainda que maravilhosa, não cobre os projetos colaborativos de Lanegan, que vão desde discos em parceria com Isobel Campbell, passando por seu duo Gutter Twins ao lado do ex-Afghan Whigs Greg Dulli, seu tempo como vocalista no Queen Of The Stone Age ou seu trabalho inicial no Screaming Trees. O terreno revisitado aqui é de seus discos iniciais dos anos 90, de The Winding Sheet (1990) a Bubblegum (2004), com a maravilhosa adição de um disco com 12 faixas inéditas, perfazendo um total de 32 canções.

Ouvir Lanegan não é algo para se fazer o tempo todo. Ele (ao lado de vocalistas roufenhos e obscuros do rock, como Leonard Cohen ou Tim Hardin) deve ser apreciado em momentos de comunhão com aquele lado negro involuntário que toda alma possui. Não que você vá causar algum mal ao próximo, pelo contrário, ouvir Lanegan é indicado para exorcizar males causados em você mesmo ou simplesmente para curtir, de forma razoavelmente pervertida, aquela dor que todos sentimos em algum momento. Seja por amor não correspondido, por obsessão por alguém, por desejo de mover cidades e distâncias, não importa, a verve de Lanegan é para apreciação moderada. Tanta relação com os porões da existência não é por acaso, Lanegan está sóbrio há não muito tempo, após longa batalha contra bebida e drogas de vários calibres, principalmente a heroína, que se apresentou em sua vida antes mesmo de fazer 18 anos.

O primeiro momento de Mark na música veio com o Screaming Trees, banda formada pelos irmãos Van e Gary Lee Conner, além de Mark Pickarel, que seria substituído por Barret Martin pouco tempo depois. Lanegan foi tirado da bateria para os vocais e começou a cantar as letras feitas por Gary Lee. Ele conheceu os irmãos quando trabalhava na loja de eletrônicos de seus pais. Eram tempos difíceis, quando foi preso e mandado para um centro de reabilitação, tudo por causa do consumo de drogas já naquela época (aos 17 anos). Um ano depois, devidamente passado na tentativa de melhorar sua condição, Mark ingressou no Screaming Trees, em 1984. Em pouco tempo já tinham um contrato assinado com a Sub Pop e registraram quatro álbuns para o selo independente até 1989, quando foram contratados pela Epic. Nesse meio tempo, a banda conseguiu criar um público local e fiel, nas imediações de Seattle.

O primeiro disco pra Epic, Uncle Anesthesia, foi produzido por Chris Cornell, já no Soundgarden naquele momento. A proximidade com as bandas de Seattle e o momentum da música independente americana acabou colocando o Screaming Trees no mesmo balaio grunge. A inclusão de Nearly Lost You, single do disco seguinte da banda, Sweet Oblivion, na trilha sonora do filme Singles – Vida de Solteiro, dirigido por Cameron Crowe com a cena jovem de Seattle como pano de fundo, trouxe uma visibilidade muito maior para a banda. Àquela altura, Mark Lanegan já entrara em estúdio para gravar uma coleção de covers de blues, chamada The Winding Sheet. A proximidade e a amizade com Kurt Cobain colocou o vocalista do Nirvana no estúdio com Mark, registrando Down In The Dark para a posteridade. Além de Kurt, Jack Endino, produtor do primeiro disco do Nirvana, Bleach, tocou baixo.

Screaming Trees, apesar de interessante e credenciado para fazer mais sucesso do que nunca, demorou a voltar com disco novo. Mark lançaria seu segundo trabalho solo em 1994, Whiskey For The Holly Ghost e participaria de Above, álbum do all star de roqueiros de Seattle com problemas de drogas, Mad Season, dividindo os vocais com Layne Staley, então no Alice In Chains. Above tornou-se um pequeno clássico perdido no tempo e, quando o Screaming Trees finalmente voltou, com Dust, em 1996, já não havia mais clima para nada. Em 1998, Lanegan soltou Scraps At Midnight e, no ano seguinte, I’ll Take Care Of You, um feixe de covers bem sacadas veio à luz. Dois anos depois, seria a vez de Field Songs, com a participação de Duff McKagan, ex-Guns’n’Roses e de Ben Shepard, ex-Soundgarden.

O grande companheiro de estrada de Lanegan chama-se Josh Homme. Desde prestar ajuda em momentos de barra pesada por conta das drogas e álcool, passando por afinidades artísticas, Homme sempre esteve presente quando Lanegan precisou de algo. A participação de Mark no segundo disco da banda de Homme, Queens Of The Stone Age, Rated R (2000), arejou a carreira de Lanegan. Em 2001, ele foi “promovido” ao status de integrante oficial da banda e participou, um ano depois, do grande disco Songs For The Deaf, cuja No One Knows, fez bastante sucesso. Lanegan ainda participaria de Lullabies To Paralize, disco de 2005. O primeiro projeto coletivo de Lanegan seria o Twilight Singers, ao lado de Greg Dulli, do Afghan Whigs. O primeiro disco do duo, Blackberry Belle, foi lançado em 2003, seguido por um álbum de covers, She Loves You, que saiu logo no ano seguinte, quando Lanegan voltou aos trabalhos solo, lançando Bubblegum, seu sexto álbum. Junto com ele neste disco estavam P.J Harvey, Josh Homme e Nick Oliveri (baixista do Queens of the Stone Age), Greg Dulli, Dean Ween, Duff McKagan e Izzy Stradlin (outro egresso do Guns’n’Roses).

Em 2004, Lanegan iniciou seu projeto mais inesperado. Em parceria com a ex-integrante do grupo escocês Belle And Sebastian, Isobel Campbell, ele daria início a um período de intensa colaboração entre os dois, com o lançamento de um EP, chamado Time Is Just The Same, devidamente puxado pelo single Ramblin’Man. Pouco tempo depois, seria a vez de lançar o primeiro disco da dupla, Ballad Of The Broken Seas, em 2006, cujas gravações ocorreram em Glasgow e Los Angeles, separadamente. Após a realização de um show da dupla, Isobel convidou Mark para nova colaboração, dessa vez com ambos gravando os vocais e instrumentos ao mesmo tempo, em Glasgow. O novo trabalho, Sunday At Devil Shirt, foi lançado em 2008 e sucedido pelo terceiro disco juntos, Hawk, em 2010.

A carreira de Lanegan sempre foi muito pródiga em projetos parelelos e colaborações. The Gutter Twins foi outro projeto de Mark com Greg Dulli, após um show sob este nome ser realizado em Roma, em 2005. Três anos depois foi lançado Saturnalia, o primeiro disco da dupla, que seria seguido por um EP de covers, lançado no mesmo ano, Adorata. Participações em projetos tão distintos quando o Bomb The Bass, o duo eletrônico Soulsavers (no qual assumiu os vocais por dois discos), além dos ingleses do UNKLE e um disco em conjunto com Duke Garwood, chamado The Black Pudding, lançado em 2013. Além disso, a retomada vigorosa da carreira como artista solo, a partir do lançamento de The Blues Funeral, em 2012 e Imitations, também em 2013, este último, um novo disco de covers, com repertório abrangendo canções como “You Only Live Twice” (famosa abertura de 007 Só Se Vive Duas Vezes), “I’m Not The Lovin’ Kind” (do ex-Velvet Underground John Cale) e “Mack The Knife”, canção emblemática do vocalista americano Bobby Darin, entre outras.

Lanegan está presente no inconsciente coletivo do rock alternativo desde meados dos anos 80. Já viu e viveu muito, sofreu e voltou do inferno várias vezes, em menos de 50 anos de vida, a serem completados em 25 de novembro deste ano. Sua carreira é multifacetada e não apresenta um único trabalho de qualidade ruim. Sua sinceridade é impressionante, seu estilo é acima de qualquer suspeita e seus discos devem ser apreciados com muito cuidado, como quem aprecia os mergulhos noturnos num mar misterioso.

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ARTISTA: Mark Lanegan

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.