RUAS e os sonhos além das vitrines

Com maturidade e repertório sólido, jovem rapper paulista faz sua estreia em “Sonhos de Vitrine”, disco que, em meio a Trap, Drill e Afrobeats, reflete sobre as armadilhas – e fugas – da sociedade de consumo

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Fotos: mauvistto

“Sonhos de Vitrine é tipo a minha vida, tá ligado? É a fita de você querer muito algo, mas não poder ter por n fatores e não são só fatores que estão no seu alcance”  — explica Matheus Ruas Neves, conhecido por MC Ruas, sobre o primeiro disco da carreira. Na capa, ele observa dois manequins trajados com peças de marca e caixas de tênis sendo ostentadas. Segundo o artista, a implicação por trás desse desejo por itens considerados de alto poder aquisitivo é o principal direcionamento sensorial do projeto. “Você vê a capa, ouve a intro e você entende tudo”.

Com flow deslizante, rimas repletas de dualidades, beats soturnos — ainda que muito contagiosos —, o artista decidiu como contar a própria história ao longo de 10 faixas, de 25 minutos no total, no primeiro e sólido projeto. Lançado no dia 5 de novembro, o álbum, gravado, produzido, mixado e masterizado entre amigos, ganhou uma atmosfera autêntica e lançou o MC, de apenas 20 anos, no radar da cena underground do Hip Hop paulista.

Cria de Hortolândia, município paulista localizado na região metropolitana de Campinas, o artista não tinha, inicialmente, ambição de se envolver, de forma criativa, com música — embora a infância tenha sido ambientada pelos coros vocais da própria mãe, na época, cantora de música Gospel. As poesias escritas por ele, contudo, estimularam o contato com as brincadeiras fonéticas e o incentivo de uma professora fez com que ele se encontrasse nas próprias rimas.

Como ótimo aprendiz do Hip Hop, RUAS se debruçou nos maiores: Racionais, Sabotage, Emicida e mais. “No começo eu pegava muito que eu ouvia e tentava fazer igual. Ia testando o que rimava com o que”.. Durante essa maturação, ele também pontua a importância da sua participação nas rodas de Slam. “Aprendi que você falar de ódio ou de amor atinge as pessoas da mesma forma, tá ligado? Tudo é sobre como você interpreta o que você escreve. E isso me ajudou muito a cantar. Essa fita de interpretação”, explica. “A questão corporal, a forma que você fala quando você quer uma conversa mais forte ou quando precisa falar algo mais leve. Aprendi demais e isso acabou me deixou muito mais crítico [com as minhas próprias produções]”.

Falando sobre o disco, você é super jovem e teve o ímpeto de lançar um disco super cheio e redondinho, logo de cara, com 10 músicas. Como foi tomar essa decisão?

Mano, antes eu fazia parte de um grupo de Rap que era eu e mais três pessoas. Só que era um período de ócio, tínhamos parado de trampar. E aí um dia eu estava parado no ponto de ônibus, indo trabalhar, ouvindo “Window Shopper”, do 50 Cent, e comecei a escrever um som. Falei: ‘Pô, mano, essa aqui vou fazer o meu álbum’. Ficava pensando que se não fizesse nada, não criasse algo consistente em um tempo, cairia em esquecimento e aí já era, tá ligado? Meu sentimento era de tipo: ‘eu preciso fazer algo que seja consistente’. A princípio, Sonhos de Vitrine teria só 5 faixas. E aí depois virou oito e fechamos com 10. Mas a ideia era ter tudo o que eu tinha para falar, de um jeito sólido. Sempre falei muito para o pessoal que todo artista precisa ter um cartão de visita, para quando você for citado, esse ser o seu trampo mais falado pelas pessoas. Queria que esse disco fosse isso para mim.

Essa faixa que você escreveu chegou a entrar no disco?

Sim, é a primeira, “Sonhos”.

Legal! E o resto das composições, como elas nasceram?

A segunda faixa foi “Ambição de Gente Grande”, que é um feat com o Original Dé. Foi um som que tinha sido feito também antes de eu pensar no álbum. Acredito que ela tenha sido um gatilho forte, porque ela é sobre isso. Esse som tem três versões, e a que foi pro álbum, para mim, é a melhor, tá ligado? O resto, todas as outras foram feitas no pós. Eu não tinha nenhuma letra antiga que eu curti e coloquei no disco, elas foram sendo criadas na hora. E aí o André e o Kohuru que fizeram os beats. Demorei muito para curtir escrever bem no estúdio, “Vitrine”, a última faixa, e “Ambição de Gente Grande” foram feitas no estúdio, as outras eu fiz tudo na minha casa. Escrevia em cima do beat, e depois ia para o estúdio.

Você sente certa de dificuldade de compor com muita gente que você conhece por perto?

Hoje consigo ter mais facilidade, mas antes ficava travado. Ficava pensando: ‘nada do que eu fizer agora vai ficar tão bom quanto eu fizer na minha casa”. Eu sabia que em casa ia ser muito melhor do qualquer coisa que eu fizesse junto lá. Para mim, era muito desafiador, mano. Tinha até um pouco de medo de não conseguir fazer algo tão bom e tal. Então eu sempre gostei mais de escrever na minha casa. E desse tempo de escrever até o lançamento do disco, demorou um ano e dois meses. Até escrever a última faixa.

Teve alguma com um processo mais demorado de finalização?

Eu acho que “Grifes e Jóias” foi a que mais senti dificuldade de escrever, porque até hoje eu sinto que —  sei que é um som muito bom, gosto muito —, mas, para mim, ele não é um som que flui natural, tá ligado? Tipo, tive uma epifania para escrever o som inteiro e ele fluiu natural. Tive que escrever de pouquinho em pouquinho e tinha várias coisas que eu não gostava. E aí eu tirava para escrever de novo. Até ele sair como um som que todo mundo gostou. Eu tinha um receio muito grande com ela. O que é curioso, porque muita gente curtiu ela.

É, tá com um coraçãozinho no meu Spotify, [risos].

[Risos], pois é. Muita gente gostou mesmo. Cantamos ela em shows e vimos que batia muito, mas eu tinha um pé atrás.

Você tem um certo receio disso? Na hora de compor, você acredita que o som precisa cair liso assim? Se ele for muito pensado, não é algo que te deixa confortável?

Pior que eu tenho essa brisa, mano. Pior que eu tenho, não queria ter, mas eu tenho porque eu sinto que às vezes ele soa meio forçado. Tipo, parece que você está espremendo o suco que tem na sua cabeça para sair alguma coisa. Se você tá, sei lá, indo trabalhar, fazer alguma coisa e pensou numa rima, você escreve e depois complementa ela com outras ideias que chegarem. Mas esse som eu parei para escrever várias vezes, tá ligado.

O que você diria que mais valoriza na hora de pensar em um som?

Com certeza é a parada de escrever, mano. Gosto muito de fazer jogos de palavras. Quando eu consigo encaixar palavras, fico feliz demais. Tento fazer porque eu acho foda.

“’Sonhos de Vitrine’ é tipo a minha vida, tá ligado? É a fita de você querer muito algo, mas não pode ter por n fatores e não são fatores que estão ao seu alcance, e isso que é o pior. Não fiz com o intuito de atingir ninguém, é um desabafo, uma autocrítica. Querer ter uma parada para ser aceito, isso é bizarro. Minha vida toda foi isso, e hoje consigo me desprender. A música foi importante para me dar autoestima”

Me conta um pouquinho da história por trás do disco?

Sonhos de Vitrine é tipo a minha vida, tá ligado? É a fita de você querer muito algo, mas não pode ter por n fatores e não são só fatores que estão no seu alcance, e acho que isso que é o pior. Sonhos De Vitrine é algo que eu sempre quis ter a minha vida toda, até eu poder ter “independência financeira”, de começar a trabalhar e poder comprar as minhas paradas, ajudar a minha família a alcançar um conforto maior na vida. É como se eu, a vida toda, soubesse como queria que ele começasse e como ele terminasse. Simboliza muito para mim e para os meus amigos. Não fiz com o intuito de atingir ninguém, é como se fosse um desabafo, uma autocrítica. Simboliza aquele tênis da Nike que eu sempre quis ter e eu não podia, na época, porque não tinha dinheiro. E aí, eu via outras pessoas usando, pô já passei por vários episódios muito chatos mesmo, de pessoas ficando na minha cabeça porque eu não tinha o tênis tal. As pessoas ao seu redor tiram onda, isso é super comum. Quem passa por isso guarda para o resto da vida. Eu guardo isso até hoje, entende. Hoje eu tenho o tênis de 12 mola que eu sempre quis, mas ainda fico com aquele momento na cabeça. Às vezes eu nem achava as coisas daora, mas eu queria ter porque todo mundo tinha. É o lance de querer ter uma parada para ser aceito, e isso é bizarro. A minha vida toda foi isso, e hoje eu consigo me desprender um pouco.

Você acha que fazer som te ajudou a lidar com isso de alguma forma?

Com certeza. Sinto até que as pessoas me respeitam mais por causa do meu trampo hoje e porque eu não sinto tanta necessidade de ter uma roupa cara. Mas quando eu tinha os meus 14, 15 anos, era tudo o que eu queria ter, um Air Force, um 12 Mola. Não ligava para a história, era porque eu queria estar na roda de todo mundo que tinha aquilo. Estudei em escola pública, e muita gente acha que lá só tem fodido, mas não é assim. Lembro eu fazer parte de uma roda de amigos onde todo mundo tinha o iPhone 5 e eu tinha o Galaxy Pocket. Como que eu chegava na roda com o meu celular na mão. Mesmo que ninguém falasse nada, você sente essa parada. Isso é muito louco, mano. Mas eu não tenho mais essa necessidade de provar algo, no sentido da forma como eu me visto. A música foi importante até para me dar autoestima.

Aproveitando essa parte do papo para perguntar, me conta um pouco sobre os bastidores da capa do disco?

A capa foi fotografada e editada pelo Gabriel Monteiro. A gente fez ali em uma loja no centro de Campinas, na Glicério, e a brisa eu já tinha na cabeça do que eu queria fazer: eu, do lado de fora da vitrine, me imaginando como manequim, tá ligado? Até por conta da primeira faixa que fala sobre isso e tal. Mas, no início, a minha ideia não era nem fazer isso [colocar as mãos na vitrine]. Era só sentar do lado de fora com o fone de ouvido e ficar ali com os dois personagens atrás de mim. E aí o Gabriel falou: ‘E se você ficar admirando?’. Pô, demorou. Deu uma diferença gigantesca no resultado, porque traduziu tudo o que a gente queria passar. Nossa ideia era traçar um percurso: você vê a capa, ouve a intro e entende tudo que vai acontecer no álbum. É ter uma visão assim, logo de cara. É isso se dá muito bem também no ambiente, nos beats. O André teve uma preocupação muito grande em trazer uma ambiência para os sons, tá ligado? Todo o processo de mix, masterização, ele fez para as pessoas entrarem mesmo no universo. A capa é uma das partes que eu mais gosto do álbum, porque se você não ouve tudo, só vê a capa e ouve a intro você já entende tudo.

Demais! E como você escolheu quem ia participar do disco?

Escolhi pessoas que faziam sentido para mim, que eu sabia que estavam comigo no dia a dia, no pique. Pessoas muito próximas, que eu tenho um apego grande e confiava, tá ligado? Gente que eu acredito no trabalho e quis colocar no álbum, porque a brisa é essa, eu não queria por alguém famoso, porque não ia fazer sentido. Não ia agregar tanto como uma pessoa que já está comigo e me acompanha.

Tem outra sintonia sonora, né?

Com certeza, demais.

E o André e o Kohuru, na questão de produção e referências, teve alguma obra ou algum artista que ficou na cabeça de vocês durante o processo do disco?

André: A gente tentou ser o mais versátil em questão a estilos musicais dentro do EP. A gente estava escutando muito Afrobeat, Trap, Drill. Tentamos ser muito abertos com isso e acabou que isso se estabeleceu dentro do nosso estilo de fazer música.

Ruas: É, eu chegava no André e falava: ‘Pô, mano, eu acho que eu queria um

Afrobeat’, e aí ele: ‘demorou’. Logo depois ele fazia o que tava na cabeça dele ali e me mostrava.

André: [risos], o Ruas chegava às vezes para mim e falava: ‘mano, quero um beat tipo assim, mas de tal artista específico’. E aí meio que a gente ia trabalhando por cima disso. Temos muita liberdade de criação nesse sentido. É dificil falar de alguém especificamente.

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ARTISTA: Ruas MC