É a primeira vez que Mon Laferte toca no Brasil. Horas antes da apresentação, usando um vestido cor-de-rosa com bolinhas, camiseta oversized e um par de sapatilhas, ela chega ao Tokio Marine Hall, casa de shows que fica na Zona Sul de São Paulo. É fim de tarde e a artista ensaia, tendo o cuidado de preservar a voz. Enquanto seus músicos repassam os arranjos de sucessos como “Tu Falta de Querer” e “Mi Buen Amor”, ajusta meticulosamente um violão e uma guitarra. Com ouvidos atentos, também reclama, dizendo achar que o som está baixo. Quando finalmente se dá por satisfeita, seis ou sete canções mais tarde, sai de cena com a banda, além de dois bailarinos e um novo amigo, o cantor brasileiro Tiago Iorc. Norma Montserrat, como atende em seus documentos, reaparece com seu 1,60m minutos mais tarde, ao abrir a porta do mezanino. Vem dar as boas-vindas.
Acompanhada por uma assessora, seu empresário e membros da gravadora, conduz a todos por entre os corredores da casa. No camarim, organiza as poltronas e, diante do espelho, dá uma última olhada no cabelo enquanto brinca com as mudanças de visual às quais vem se submetendo. “Deixa eu ver se estou bem”, diz rindo ao Monkeybuzz. O show em São Paulo, para pouco mais de 2 mil pessoas, era de longe o mais intimista da gira. Na mesma manhã, a cantora havia desembarcado no Aeroporto de Guarulhos em um voo direto que teve origem na Cidade do México, onde mora. Dois dias antes, foi uma das protagonistas da 25ª edição do festival Vive Latino, evento referência para a indústria da música em espanhol. Lá, 80 mil pessoas assistiram à apresentação, responsável por dar início ao eclipse de um dos capítulos mais intensos de sua obra, o álbum Autopoiética.
Lançado em novembro de 2023, o LP em questão se constrói a partir do conceito de autopoiese, criado há mais de 50 anos pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Ambos defendem a ideia de que os seres vivos são formados por sistemas moleculares capazes de se manter em atividade permanente. Em outras palavras, teríamos sob esta lógica as habilidades contínuas de autorreparo e transformação — uma perspectiva que ecoa, por certo, nas ideias que Laferte vinha maturando após uma sequência de trabalhos que a consagraram embaixadora da sofrência. Entre a música e as artes visuais, sua necessidade de se expressar sobre temas que transcendem o incontornável amor romântico dos anos de formação abriu caminho para discussões alinhadas a uma realidade pouco ou nada fantasiosa, a despeito de uma indústria que lucra com narrativas femininas encomendadas em moldes atenuados. “Tenho 40 anos e sou mãe / ninguém morre de amor”, entoa a artista na faixa “40 y MM”.
O mesmo pragmatismo permitiu-lhe discutir os vestígios das tensões provocadas pela imigração. Na cumbia “Te Juro que Volveré”, seus vocais são tragados por distorções ao narrar o périplo do triunfo, atravessado pela ilegalidade, a morte de familiares e o soterramento ao qual foi submetida por toda uma classe de abusos prévios. As críticas incorporadas a esse processo são postas em evidência em “Tenochtitlán”, uma mistura elegante de violinos e beats eletrônicos em que parece endereçar uma carta a si mesma. “Quanto isso custou a ela? Quem a comeu? Ela é uma puta sudaca vinda do terceiro mundo / Ninguém a pariu, de onde apareceu? A garota jura que é artista”, ironiza, entre memórias. Em seguida, autocentrada, busca exercer a paciência. “Não chore mais sob o céu desta cidade, sei que se arrependerão”.
O arremate se dá no próprio palco. Agora vestida para matar com um traje de seda e um par de meias ⅞, ela traça uma linha imaginária entre um disco e outro ao mergulhar na estética “Femme Fatale”. Já com o título do novo projeto em mãos, lança um olhar para trás ao propor reflexões menos pudicas sobre o sexo. “Quem vai te esperar de pernas abertas e pedindo mais? / Meu rosto vulgar é o que vai te matar”, provoca os paulistanos com o bolero “Pornocracia”. É sem recato e com honestidade que Mon Laferte se humaniza ao permitir que plateias de toda a América Latina, incluindo o Brasil, possam se enxergar em infortúnios reais, e nisso dá um passo adiante na escala de transgressão estabelecida por precursoras como Paquita la del Barrio e as Rocíos, Dúrcal e Jurado.
Na letra de “Otra Noche de Llorar”, balada lançada oficialmente hoje (27/03) e escolhida para inaugurar esta fase, ela retoma turbulências emocionais do passado de forma teatral. Em meio a elementos de jazz, descreve o desconforto de viver um triângulo amoroso. “É lindo imaginar que hoje sou diferente daquela mulher que fui há 10 anos. E daqui a outros 10, serei outra”, reflete em uma das cenas do filme Mon Laferte, te amo, lançado pela Netflix no ano anterior. A fala sintetiza a conversa que se reproduz abaixo, marco de uma transição em que invocar o arquétipo da mulher que sofre em silêncio é tudo o que ela parece não querer. Para Laferte, a criação artística pode ser tanto o caminho para se renovar quanto para entender que, no mundo, tudo é político.
Estamos na reta final da era Autopoiética. Considera esse disco um manifesto da metamorfose?
Sim. Diria que o conceito de Autopoiesis é um manifesto por si só, que nos convoca a um estado de permissão, mudança e renovação, o que no fim das contas também é muito divertido. Para mim, foi como se eu tivesse consciência pela primeira vez de que podia me permitir aproveitar o processo. Fiz 40 anos, me tornei mãe e pensei: ‘Hm, acho que já não me importo mais com nada’. Então, quis evoluir e me divertir, acima de qualquer coisa — por isso esta palavra parece significar tanto.
Ainda a respeito da autopoiese, você diz que decidiu se autorreparar e busca, constantemente, uma versão melhor de si mesma — o que me leva a pensar na relação existente entre música e psicanálise. De que forma a terapia contribuiu para o seu trabalho como compositora?
Sabe, o tempo todo me pego lendo e pesquisando vertentes da psicologia, mas também ideias decorrentes da psicanálise. De igual maneira, me interesso muito pela filosofia e tenho pensado na necessidade de estudá-la seriamente, com o intuito de aprimorar minhas habilidades, de ser uma melhor letrista. A partir desta proximidade, entendo que a minha música está calcada no entendimento do comportamento, do sentir humano. Então, enxergo hoje a composição como um mergulho em áreas específicas do conhecimento, inclusive das próprias ciências sociais.

“Sinto que a América Latina não só aceita o drama, mas também se satisfaz com ele. O drama nos leva a acessar uma espécie de catarse, por isso as canções mais tristes são tão necessárias. Para mim, o drama é uma forma de subversão”
Outro dia, após o anúncio da faixa “Otra Noche de Llorar”, você foi chamada de “nossa senhora do drama”. Penso com frequência em como nós, latinos, incorporamos uma forma muito particular de expressar o luto, a perda, as rupturas em geral. Compartilha a ideia de que abraçar o drama nos conduz a formas de expressão mais autênticas?
Sinto que a América Latina não só aceita o drama, mas também se satisfaz com ele. Sobretudo no México, onde moro e as canções mais dramáticas provocam toda uma comoção. As pessoas vão atrás delas, pegam uma dose de tequila e choram ouvindo artistas como Paquita La del Barrio, José Alfredo Jiménez, Chavela Vargas. Pode-se encontrar diversão nesses enredos exagerados. O drama nos leva a acessar uma espécie de catarse, por isso as canções mais tristes são tão necessárias. Para mim, o drama é uma forma de subversão.
As artes visuais são parte fundamental do seu trabalho. Assim como as canções, elas são políticas, denunciam violências e humanizam vulnerabilidades femininas. Uma vez que estão em diálogo, música e pintura são hoje para você formas indissociáveis de criação?
Acho que tudo é político, absolutamente tudo. Mais do que isso, tenho a consciência de que seguimos nossas vidas construindo um discurso. Quando você tem a possibilidade de subir em um palco e, consequentemente, ganha projeção, você sabe que qualquer coisa que diga ou faça, esteticamente, terá um impacto. Se você usar um vestido, calçados de salto alto e cílios postiços, haverá uma mensagem por trás. Para mim, está aí a chave dessa simbiose com as artes visuais. O rigor estético também está na música, e quer nos transmitir um posicionamento.
Enquanto conversamos, o mundo lá fora convulsiona. Há tensão por todos os lados e, nesses momentos, a música alternativa, sobretudo a que passa pela cena underground, reassume um lugar de resistência. Tendo vivido parte crucial da sua carreira nesses espaços, como observa tais movimentos agora?
Sinto que o underground é quem sempre esteve em posição de vanguarda. É muito louco porque sei que sou uma artista mainstream em absolutamente toda a América Latina, mas não consigo me enxergar como parte desse lugar. Minha música chegou às massas, ao mesmo tempo em que continuo me vendo como uma cantora alternativa, de espírito e essência marginais. Aqui no Brasil as coisas são um pouco diferentes…
… Justamente. No fim de semana, você tocou no festival Vive Latino para uma multidão.
Eram 80 mil pessoas. Agora, em São Paulo, vamos nos apresentar para uma plateia pequena e sentada em mesas. Acho que vai ser, mais ou menos, como um piano bar. Não me lembro quando foi a última vez em que toquei em um lugar assim, mas não me incomodo. Justamente porque sei que me fiz artista em lugares pequenos, mais alternativos.

Logo, sendo uma mulher vitoriosa e que não buscou atalhos para ascender, você coleciona detratores…
[Risos] Claro!
Em fevereiro, uma carta aberta assinada por 500 artistas acusou o governo chileno de privilegiar a exposição “Te amo, Mon Laferte visual”, em cartaz no Parque Cultural de Valparaíso. Você respondeu dizendo: “Não quero ocupar o espaço de ninguém, mas também não posso andar por aí me desculpando por ocupar o meu”. Por que é tão importante não abaixar a cabeça e traçar uma linha que delimite o que é humildade e submissão?
Antes, acho que eu estava muito preocupada em agradar. Na verdade, todos nós, enquanto seres humanos, queremos satisfazer as vontades alheias em determinado momento, queremos pertencer a um grupo. Quanto mais adulta e madura me sinto, mais isso vai perdendo importância. Embora seja verdade que o desejo de se encaixar em certos lugares ainda exista, claro, não vejo mais sentido em me lamentar ou ter que justificar minha existência enquanto artista, o reconhecimento que recebo. Agora, sobre os haters… Eles me fazem um grande favor. Não existe publicidade ruim porque eles estão sempre presentes, gerando polêmicas que me tornam mais popular. Só tenho a agradecer pela divulgação gratuita [Risos].
A propósito, você se prepara para a estreia de um disco chamado Femme Fatale. É uma proposta que se comunica bem com este estado de espírito.
Sim. “Otra Loche de Llorar”, a faixa que escolhemos lançar em 27 de março, será a responsável por abrir alas de um projeto super dramático. É uma canção muito difícil de cantar. Em termos técnicos, talvez seja a mais complicada do meu repertório. Enquanto em Autopoiética eu quis sair desse lugar de drama excessivo, ser livre e experimentar, agora sinto que é hora de retornar àquilo que sempre fui, ainda que de uma maneira mais teatral.
“Lembro ainda o quanto gosto que minhas letras provoquem incômodo. Que as pessoas ouçam e me questionem: ‘Por que você escreveu isso? O que passava na sua cabeça?’. O amor nos dá licença para isto”
O álbum também parece apontar alguma influência do jazz. É por aí?
Há muita influência, sobretudo de sua vertente navideña. É sintomático dizê-lo, inclusive, porque comecei a compor este primeiro single há um ano e só finalizei em dezembro. Foi um processo que não obedeceu a lógica do presente porque não estou sofrendo por amor, e sim resgatando uma história do passado em que fui a outra. Todos passamos por isso em algum momento e quis compartilhar este episódio com muita honestidade. Sob esta perspectiva, lembro ainda o quanto gosto que minhas letras provoquem incômodo. Que as pessoas ouçam e me questionem: ‘Por que você escreveu isso? O que passava na sua cabeça?’. O amor nos dá licença para isto.
A propósito, o amor é um tema inesgotável?
Se pensarmos no campo estético e na criação em si, a ideia do amor romântico é algo incrível, que preenche o palco. Ela nunca vai se esgotar como tema a ser explorado porque todos queremos ser amados. Mas acho que sua aplicação na vida real é muito nociva. No presente, pessoalmente falando, acho que me distanciei disso, passei muitos anos sofrendo, sofrendo e sofrendo. Agora é diferente. Sei que há um tipo de riqueza emocional e sedutora nas paixões que me leva a estabelecer uma relação curiosa enquanto criadora. Vivo no presente um encantamento à distância.
Você mudou radicalmente o seu visual para contar novas histórias, evocando o imaginário da blond ambition. Hoje, quais ambições alimenta como pessoa e criadora?
Minha ambição máxima como artista é me desafiar a ser melhor, ter sempre algo novo e relevante a dizer, me reinventar e, com sorte, fazer contribuições ao panorama musical latino-americano. Quero sempre trazer algo refrescante, ainda que meu trabalho atual, como disse um pouco antes, parta do jazz, algo tão clássico. A parte estética conta muito para mim, quero mudar meu visual a cada disco que lanço. Por exemplo, durante a divulgação do álbum SEIS (2021) me propus ser ruiva por um tempo. Se me preparo para uma estreia, sempre pensarei na capa, no clipe, no palco, na oportunidade de oferecer uma proposta completa. Foi desta mesma forma que decidi cortar e descolorir o cabelo, ainda que quase metade da minha cabeça tenha caído. Bem… Dizem que as loiras se divertem mais, então, posso confirmar: estou me divertindo, e com a certeza de que isso é progressivo. Cada vez mais.