Mon Laferte, sozinha com seus monstros

Em documentário inédito, cantora chilena enlaça uma trajetória marcada por tragédias pessoais à beleza do fazer artístico — um caminho em busca de amor que, entre cicatrizes, a humaniza

Loading

Fotos: Reprodução

O que fazer quando se tem um coração partido? Mais do que isso, quando a vida só parece te esbofetear? A chilena Norma Montserrat, conhecida hoje pelo nome artístico de Mon Laferte, entendeu ainda criança que precisaria voltar a essas questões repetidas vezes. Norteadoras de um sem fim de obras artísticas, as chaves deste enigma se mostraram para ela uma garantia de sobrevivência. Em uma das cenas do documentário Mon Laferte, te amo, recém-lançado pela Netflix, a cantora afirma: “Pela fome, eu aprendi a fazer todo tipo de graça e a ser encantadora”.

Com estreia no início de agosto, o filme concilia os bastidores de turnês, incluindo a primeira realizada após se tornar mãe, bem como o vai e vem de traumas do passado que, só agora, em um momento de aparente distanciamento, puderam ser encarados. Em tom ensaístico, Laferte narra episódios dolorosos de toda uma vida e que se costuram, intrinsecamente, ao próprio ofício. Sob a direção de Camila Grandi e Joanna Reposi, o espectador reflete a posição que a protagonista assume como mulher nos âmbitos social e profissional, estabelecendo-se como um exemplo das que tiveram a sorte de não sucumbir. A voz que grita e arde protesta a todo momento pela vida.

Esta poderia ser também a síntese de Autopoiética, disco de 2023 que seguiu o ritmo frenético das experimentações de MOTOMAMI, obra da catalã Rosalía. Entre batidas de dembow, boleros e arranjos orquestrados, Mon Laferte fala de amor e sexo, recria uma Tenochtitlán de abusos e alfineta a antiga gravadora — sempre sob uma perspectiva madura, de quem já chegou aos 40 anos e sabe que pode morrer, mas não de amor. Depois de tanto, ela se faz “autônoma e ibuprofênica”, como gosta de brincar.

No Brasil, onde sempre obteve pouca atenção, só ganhou os holofotes do grande público em 2019, quando decidiu protestar no tapete vermelho do Latin Grammy, em Las Vegas. Em meio a uma das maiores crises sociais de seu país desde a retomada da democracia, em 1990, dirigiu-se aos fotógrafos usando um sobretudo e um lenço verde, consagrado símbolo do direito ao aborto na América Latina. Ao desabotoar a peça, expôs uma mensagem curta e escrita à mão entre os seios: “No Chile, torturam, estupram e matam”. Saiu duas vezes vencedora, pela coragem e pela música.

Em seu documentário, Laferte segue sem medo da exposição, mas tampouco busca fazer do enredo um melodrama capaz de autoproclamá-la vítima. Ao contrário: suas perlaborações a definem como uma andarilha que aprendeu a decantar avalanches de sentimentos e traumas. Entender sua relação com o país de origem e a terra que a abraçou é o ponto de partida dessa narrativa que se fez, a princípio, com um número muito maior de baixos do que altos.

Nascida no subúrbio de Viña del Mar, cidade turística que é famosa pelo festival homônimo e suas praias geladas, a cantora aceitou o convite de voltar até a antiga casa para descrever como o próprio núcleo familiar foi aos poucos desmoronando — situação que impactaria seus anos de formação. O exercício de busca a leva a recordar histórias da avó, também chamada Norma. Cantora amadora, ela abandonou a profissão em um tempo em que as mulheres da casa cediam sonhos em troca de amor. Ao dirigir-se à neta falando sobre futuro, acabou firmando-se como um excelente exemplo das tentativas de quebra dos ciclos impostos pelo machismo estrutural.

As escolhas e conselhos da anciã seriam revisitados por Mon em “La Trenza”, bolero que batizaria o disco responsável por reafirmar sua originalidade em 2017. “Você deve ser livre, sair desta merda/Não dê atenção ao que digam, não querem que você floresça”, diz uma das estrofes. A partir daí, a sequência em que a estrela visita seu túmulo e leva flores se firma como mais uma das várias reverências prestadas ao passado, algo que se potencializa por um texto off que não se preocupa em omitir falhas. Mesmo que fale de amor, palavra que ocupa inclusive o título da obra, aqui não há espaço para romantização.

É difícil não fazer associações da cena em que limpa e deposita flores na sepultura pobre, amontoada entre tantas, com outro documentário, Na Cama com Madonna (1991). Nele, a Rainha do Pop posa para as câmeras deitada sobre a lápide da própria mãe, de um jeito notadamente ensaiado. Com Mon Laferte, as reflexões sobre herança e memória se sobressaem e vão na contramão. Soam naturais e de fácil identificação, ainda que a narrativa se apoie na estrutura já clássica da jornada do herói, proposta pelo escritor Joseph Campbell.

Uma vez que funciona como se a protagonista estivesse expondo as telas da própria vida, os dilemas revividos por Mon no filme vão desnudando-a, de um jeito que é, ao mesmo tempo, delicado e brutal — escolhas narrativas que se conectam ao trabalho que desenvolve em paralelo como artista visual. Nesta vertente, que lhe permitiu realizar em 2023 uma grande exposição no Centro Cultural Gabriela Mistral, em Santiago, seu trabalho assume um viés político mais explícito, denunciatório de violências contra a mulher. Em geral, as telas que produz trazem meninas e mulheres de feição melancólica, violadas e abandonadas como ela própria foi, a começar pelo pai.

Relegada a uma vida de misérias ao lado da irmã caçula, Laferte narra como o divórcio de seus pais transformou as duas filhas do casal em moeda de troca. Posteriormente, reservou-lhes um violento abandono, precedido pela angústia de conhecê-lo que se arrastou até a maioridade. A música, de novo, foi canalizadora de emoções ao originar outro sucesso do repertório, o huayno “Pa’ Donde Se Fue” (2017). A canção é acompanhada com entusiasmo pela plateia do Auditório Nacional, tradicional casa de shows do México que agora oferece vislumbres de uma carreira vibrante e que pinta emoções complexas nos olhos do público.

Sem vontade de estudar e com interesse crescente pela música, sua adolescência foi um período de múltiplas vulnerabilidades. Envolveu-se com drogas e não demorou a ser vítima de abusos. Primeiro, foi assediada por um companheiro da mãe, com quem, ainda hoje, não possui grande proximidade. “As mães são imperfeitas, são seres humanos. E seja como seja, independente da forma com que as coisas tenham acontecido ou da maneira que escolheu para me criar, eu estou aqui. Por isso agradeço”, afirma. A maternidade é o que parece fazê-la rever conceitos e chegar a essa ideia de absolvição. Sob outra perspectiva, é a espera do pequeno Joel, seu primogênito, que a revela dona de uma firmeza e um comprometimento capazes de levá-la a estar em cena até os últimos meses de gestação. Nos bastidores, a barriga enorme começava a apertar seu diafragma e pavimentar o paradoxo entre seguir e não estar à altura. “Não vou parar. Vou parir em cima do palco”, brincou, durante uma entrevista, escondendo as autocríticas.

Na esteira de temas espinhosos, a cantora segue oferecendo uma perspectiva que dilapida o conto da família perfeita, bem como escancara as mazelas dos que não nascem em berço de ouro na América do Sul. “Quando você é criança e pobre, não há tempo para meditar”, comenta em seguida. “É como vivemos. Vamos terminar o dia de hoje e ver o que há no dia seguinte”. Ela choca ao revelar que, desde os 13 anos, foi submetida a relações amorosas tóxicas, uma delas marcada pela manipulação. Um namorado 21 anos mais velho seria também o primeiro empresário. Não demorou para que o mesmo começasse a explorá-la a partir do trabalho que fazia como cantora da noite, atividade que ajudava nas despesas de casa e, por isso, nunca foi questionada.

Embora não tenha o hábito de cantar em outro idioma além do espanhol, propôs-se, em 2021, o desafio de compor a faixa “A Crying Diamond”. É um dos pontos altos do disco 1940 Carmen, gravado com pouco orçamento e em meio à ansiedade de engravidar por uma fertilização in vitro. Agora, a música é trilha sonora desse capítulo sombrio e funciona como uma espécie de escape, que se fundamenta na estranheza da língua alheia, capaz de comportar e elaborar situações impensáveis em um idioma materno.

A relação com o México, país que a recebe de braços abertos após fracassar e ser, outra vez, assediada em uma competição de TV, é outro ponto de destaque. Ela destaca como fervilhava, no início do milênio, uma cena independente que a permitiu fazer covers nas noites de Veracruz e da capital federal, onde conquistou os primeiros fãs. “Neste momento, havia um México under, uma cena muito alternativa”, lembra. Mesmo com dois discos na bagagem, os esforços que faria em busca da própria identidade não eram suficientes e quase foram postos a perder. Somente após ter encarnado um drama digno de folhetim é que a artista explodiu nas rádios e descobriu que a completude do amor estava em si.

A fossa provocada por uma infidelidade a levou ao alcoolismo, ao diagnóstico tardio de uma depressão e a cogitar suicídio. Começava aí um longo processo que culminou na gravação precária de Mon Laferte, vol.1, seu disco mais amado. “Foi um desastre. Me transformei em um ser horrível, obscuro, sujo e denso. Não conseguia dormir, tinha insônia e chorava o dia todo”, conta. “Pela primeira vez, meio que deixei de lutar e tentar que me amassem e ser incrível, ser forte e maravilhosa”, confessa. “Me permiti sofrer. Acho que nunca tinha feito isso”. O projeto em questão traz hits como “Amor Completo”, “Tu Falta de Querer”, “El Cristal” e “Tormento”, que firmam um compromisso com os próprios sentimentos e uma honestidade que seria balizadora das seguintes criações.

“Foi aí que comecei a me sentir capaz. A me escutar e a escutar uma voz também, sabe?”, diz. Profundo, o recorte feito pelo filme não se atém exatamente em outros trabalhos específicos como Norma (2018), LP que a catapultou a palcos de prestígio como o do festival Coachella; ou SEIS (2020), responsável por embalar as giras documentadas para o longa. Honesta, Mon Laferte faz de seu novo filme, assim como o já mencionado álbum mais recente, Autopoiética, um pacto de investigação das próprias questões e com a manutenção da maior ousadia possível: a de permanecer viva e inspiradora.

Loading

ARTISTA: Mon Laferte