Mulher-elétrica V

Para encerrar a série, três artistas em diferentes pontos de suas trajetórias musicais: Malka, Paola Rodrigues e Jasper

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Fotos: Isabela Yu

Fechar uma fase sempre significa dar início a outras fases. É o caso da Trava Bizness, que encerrou seu período como gravadora no final de janeiro, para uma reformulação como produtora. “No fim, todos apoiando o governo com medo de não morrerem, e o que acaba acontecendo é que a corda quebra para o lado mais fraco, e os projetos prometidos que eram certos se tornam bloqueados e a coisa começa a ficar complexa”, explicou Malka, em post no Instagram. Além de ser uma das entrevistadas nesta última edição do Mulher-elétrica, ela é a realizadora do projeto.

Em mais de um ano, a Trava lançou 50 músicas e abriu caminhos para artistas trans ocuparem espaços na cena musical. A própria Malka tem mais de 20 anos de carreira e já caminhou com as mais diferentes roupagens para continuar produzindo. Hoje, encontrou maturidade em suas produções, mas passa muito longe de estar acomodada. Uma das novas frentes da Trava serão as oficinas de capacitação, com as quais quais a produtora deseja passar o aprendizado para frente, seja pelos bastidores ou sobre o palco.

A segunda entrevistada é Paola Rodrigues: multiartista baiana, radicada em BH e moradora da capital paulista desde 2019. Atualmente, em uma espécie de fase intermediária de sua investigação musical. Seu primeiro trabalho lançado é de 2014 e, nos anos seguintes, permaneceu na ponte aérea entre Brasil e Alemanha juntando dinheiro como tatuadora. Para 2020, está interessada em construir mentalmente o espaço que chama de casa e mergulhar em seu home studio. “Agora é o momento de organizar esses pensamentos e tentar botar para fora uma obra, uma coisa que não seja equilíbrio, porque equilíbrio é meio e eu gosto de extremos, que quando juntos te dão esse meio”, conta Paola.

Todas as entrevistadas estão em vias de lançarem trabalhos autorais ou com suas bandas. No caso de Malka, principalmente como produtora musical, a maior pira está em desempenhar diferentes papéis dentro do circuito independente.

Para Jasper, 2019 foi um ano de voos inaugurais, seja gravando com o seu projeto Jasper e a Gana ou integrando a Funmilayo Afrobeat Orquestra. “Esse ano de 2019 foi de abrir mentes. Quando a Jasper e a Gana começou, a gente ensaiava uma vez por semana direto. Dois meses depois, a gente estava no estúdio gravando a nossa demo. Foi muito rápido porque não tínhamos mais paciência para ficar esperando”.

Três entrevistadas que simbolizam três momentos: o do início do processo, o do desenvolvimento do processo e o da familiaridade com o fazer musical. Momentos representados, respectivamente, por Jasper, Paola e Malka. Ainda assim, a incansável curiosidade é fator decisivo, motivador e comum entre essas artistas com histórias de vida muito diferentes.

As 23 personagens do especial Mulher-elétrica abarcam um universo de perspectivas a respeito da criação e dos caminhos percorridos para o surgimento desse e daquele disco/single/projeto/empreitada. E todas trazem consigo a ideia atemporal de como presenciar um show ao vivo sempre pode ser transformador. A principal referência da série é a revista americana She Shreds, dedicada a mulheres guitarristas e baixistas, mas, aqui, imergimos nessas histórias levando em conta processos e inspirações, para além de um compilado.

Como dizem minhas amigas da PWR Records, sempre é importante frisar que mulher não é gênero musical. Entre todas as artistas perfiladas, há uma gama imensa de referências e sonoridades exploradas. Além dos diferentes talentos com a guitarra e da diversidade de gêneros musicais, há uma pluralidade de facetas – de produtora a roadie, de DJ a professora. Histórias diferentes e inspiradoras. Espero que vocês também se inspirem com elas.

MALKA

Para 2020, a produtora, compositora e multi-instrumentista Malka deseja colocar mais músicas na rua. Você conhece o trabalho dela como uma das mentes por trás da ex-gravadora e atual produtora Trava Bizness, que completou um ano no final de 2019, e hoje abriga 21 artistas, além de produtoras musicais. Só no ano passado, lançaram 50 músicas, porém decidiram se reinventar para ganhar mais força no futuro, focando na parte de capacitação e educação.

Se você frequenta a noite paulistana, já deve ter presenciado um de seus live sets em festas como Sangra Muta e Mamba Negra. No Techno, a artista inquieta pretende lançar um disco de composições próprias ainda no começo do ano. Isso sem contar seu trabalho como prolífica produtora, de Funk, Rap, música atual e de vanguarda. Quando conversamos, estava trabalhando no EP de Alice Guél. Participações especiais e parcerias com Gavin Rayna Russom (LCD Soundsystem), Lurdez da Luz e Edgar também entram em seu pacote.

Há 20 anos no mundo da música, Malka já teve banda cover de Marylin Mason, duo eletrônico, entrou e saiu de orquestra, fez as pazes com certos instrumentos e permanece incansável. Com certeza, é um dos nomes mais versáteis na produção musical nacional, transitando por sons diversos em um piscar de olhos. Antes de mais nada, aprendeu a se virar nos instrumentos para dar corpo às suas ideias.

Você começou a tocar novinha. Como aconteceu a transição da orquestra para a música popular e posteriormente para música de pista?

Orquestra, na verdade, eu vim a participar e a tocar mais tarde. Quase tudo o que aprendi foi em esquema autodidata, tanto de produção, quanto instrumento. Eu não tinha muitas condições de pagar aula, então ia descobrindo na internet, lendo e trocando figurinhas com outras pessoas que produziam e que tocavam.

Fui tocar na orquestra mais velha, porque queria continuar estudando minha profissão que é produtora e ter noção para fazer arranjos de cordas, metais e tudo, fui estudar para isso. Mas aconteceu de eu sair [da orquestra] porque rolou uma transfobia feia na instituição. Tendo em vista isso, não tive capacidade de continuar, não estava me fazendo bem. Já vinha de uma carreira musical anterior, não me interessava estar em um lugar no qual pouco faziam questão de eu estar, além de passar pano para pessoas que são transfóbicas. Então resolvi sair do meio orquestral e voltar a fazer música popular. Estava no movimento de aprender e trabalhar com música orquestral. Devido ao preconceito, eu desisti e agora quero que se foda. Agora vou fazer música popular para combater esse preconceito maldito.

Quantos instrumentos você toca?

Nenhum. Eu arranho bem vários, mas dominar mesmo nenhum porque minha formação de instrumentista, além de ser autodidata, é para ser produtora musical e arranjadora. Não é uma formação de instrumentista. O que acontece é que eu dou uma boa enganada em todos. De piano, de guitarra, nos sintetizadores, teclados em geral, na viola de aço que eu comecei na orquestra. Todos esses eu dou uma boa enganada. A viola agora eu comecei a desenvolvê-la de uma forma mais de improvisação. Não domino nenhum. Tem instrumentistas muito melhores que eu, cada um nos seus instrumentos.

Eu não estudei para ser instrumentista, mas sim para ser produtora musical. Calhou de eu tocar muito agora com as meninas. As pessoas me leem como instrumentista, quando na verdade tem muito mais de produção que eu faço no estúdio.

Tocar para você sempre foi algo que você quis produzir, compor ou você chegou a pensar em covers?

Sempre quis fazer minha música. Mas eu comecei a tocar em uma banda cover da Marilyn Manson, na qual eu me travestia e isso era muito valioso para mim. Isso sempre com a ideia de compor, de fazer música, desde nova queria escrever minhas linhas. Em outra matéria, expliquei que comecei a produzir com as fitas, fazendo beats com um amigo meu, fazíamos fitas de piada. De certa forma, isso era composição, porque a gente inventava a letra e tudo o mais.

Sempre tive essa coisa de compor, de fazer o meu, dentro de mim. Eu gosto de tocar, interpretar músicas dos outros. Porém, sempre preferi o caminho de inventar algo. Só que minha ideia de composição sempre foi muito alternativa, então era muito difícil encontrar outras pessoas para tocar comigo, mesmo porque naquela época eu ainda era um homem cis e para mim sempre foi um horror tocar com homem cis, sempre foi difícil essa relação. As coisas não funcionam, é uma disputa eterna de quem tem o gosto melhor, de ter só uma opinião válida. Eu chegava a procurar minas para tocar, mas elas também estavam procurando outras minas pelo mesmo motivo que eu.

Você já teve quantas bandas?

Vixe, uma penca. Já fiz muita coisa ruim antes de fazer coisa boa. É bom ver que a gente evolui. O lance é que sempre foi uma dinâmica muito difícil essas histórias. Hoje em dia é muito mais tranquilo para mim, posso fazer músicas com as minas. Comecei a produzir, porque não tinha ninguém a fim de fazer o som que eu tirava. Quem faz música profissionalmente sabe que precisa estar ali toda semana em cima dos projetos que você faz, o tempo todo.

Hoje entendo que minha produção musical é vasta, porque estou o dia inteiro fazendo isso. Naquela época, queria alguém do meu lado para correr atrás desse sonho junto comigo. Só que era muito difícil, todo mundo leva música em segundo lugar. Comecei a aprender os instrumentos, porque queria gravá-los sem precisar de ninguém e também ninguém queria fazer esse som torto, estranho, do meu jeito, então aprendi e hoje em dia posso fazer sozinha.

O que você curte de produção? Você falou de gótica…

Eu sou muito de Nine Inch Nails, apesar de ser um boy, é um trabalho muito legal. É um cara que vejo que tem uma visão de produção, mixagem, síntese e tudo o mais que é uma coisa muito além. Gosto muito do trabalho da Rayna, que eu acompanho há anos. O Black Meteoric Star, cheguei a ver antes dela entrar no LCD, acompanho desde 2006.

Gosto muito do trabalho que consegue furar o comercial, gosto da música gótica, desse som mais dark.. Crystal Castles, Ladytron, sempre tive influência dessas bandas com síntese, principalmente que mexia com síntese analógica, uma coisa que eu piro muito. Se você pegar meus sons, toco Techno com muitos elementos de síntese analógica, mesma que não seja criada dessa maneira (porque eu não tenho esse dinheiro. Sonoridades que remetem a esse lugar do som. Minhas influências são muito disso, até algumas coisas do Pós-Punk, tipo Joy Division e Savages.

Como foi o movimento de partir para a música de pista?

Já tive uma dupla de música eletrônica chamada You Say Go. A gente tocava muito em festa de música eletrônica, no final era mais Techno do que Eletro. Boa parte do Techno tem uma sonoridade gótica e dark, aquele clima meio Cyber-Punk.

Gosto muito do Techno porque ele remete à decadência que estamos vivendo: urbana, social, política, o domínio da máquina e da inteligência artificial sobreposta aos sentimentos humanos. Mas quem programa essa máquina? Por que ela é automática? Porque existe muito perigo nisso, pensar em como a inteligência artificial está levando nossas ideias para frente por meio daquilo que a maior parte das pessoas entende como felicidade. O senso comum de felicidade é cisgênero, o que vai acontecer com as pessoas transgêneros na época de inteligência artificial? O que a inteligência artificial está fazendo conosco? Ela ajuda a quem? O Techno tem esse papel para mim, de fazer uma música humana parecer ser feita por robôs, isso é degradação da arte. Vejo por esse aspecto, da música eletrônica tentando matar a humana, por isso que eu tenho essa batalha nas lives, a ideia é essa: é minha batalha de humana improvisando no Techno, de enquanto ser humana, travesti no país que mais mata travestis, batalhando contra as músicas e tentando dar algum sentido de vida dentro daquela maquinaria que está acontecendo.

Teve alguma situação em que você pensou: “uau, é isso que quero fazer?”

Foi tudo muito orgânico. Eu não estava mais tocando viola depois do caso de transfobia da orquestra, fiquei afastada. Era um instrumento que estava me trazendo muita tristeza, mesmo ele estando dentro do case fechado. Era algo que queria muito estudar e fui impossibilitada de estar lá, porque emocionalmente eu não pude mais estar lá. Quando eu peguei a viola de novo foi para fazer “Dançarê”, da Alice Guél, percebi como tinha que usar esse instrumento. Como tinha que transformar esse instrumento e transacioná-lo para uma atmosfera de improviso, de subversão.

Gosto muito do Techno porque ele remete à decadência que estamos vivendo: urbana, social, política, o domínio da máquina e da inteligência artificial sobreposta aos sentimentos humanos. Mas quem programa essa máquina?

Em especial também sobre a guitarra: como ela surgiu nas suas produções?

A guitarra é algo muito louco. Ela surgiu na minha vida porque eu não queria tocar teclado quando era novo. Isso foi uma das brigas com meu pai, porque ele não era a pessoa mais bacana do mundo. Então, assim, o teclado você não podia levar para a escola e fazer uma roda com o piano, eu queria tocar guitarra ou violão. Sempre via a música como uma ferramenta social muito poderosa, de transformação, de troca, inclusive para me entender. Eu queria tocar guitarra, ele ficou puto da vida e não pagou mais aula de nada, fui aprendendo sozinho, correndo atrás. Foi uma batalha tocar guitarra, porque outra vez ele ficou nervoso e quebrou meu violão. Tive que juntar dinheiro e comprar outro. Ele era desse tipo. A guitarra foi uma batalha, eu sempre queria tocá-la e tinha meu pai se interpondo. Foi quando eu comecei a entender o instrumento também, para tocar na banda cover do Marilyn Manson. Quando eu entrei, foi com guitarra. Me trouxe essa liberdade de poder tocar numa banda e me travesti, o que era muito bom. A gente fazia drag naquela época.

A guitarra foi esse lugar também de encontrar uma galera do Rock que na época era um pessoal mais libertário. Hoje é um antro de pessoas de direita, fascistas. Infelizmente, digo isso, porque me fizeram desgostar do Rock. Hoje pouco me interessa a produção do Rock. Eu mal consigo ouvir as músicas que eu ouvia antigamente, porque eu lembro das pessoas, das coisas que eu passei, os machismos. Passei muitas coisas boas no Rock, fiz vários amigos, tem uma banda de Rock que eu toco junto com as meninas, que é a Verônica Decide Morrer, ainda é uma coisa que eu gosto de fazer. São poucas músicas do Rock que ouço hoje em dia, sendo a maioria mulher. Não tenho mais saco, paciência para ouvir o discurso. É muito egóico, principalmente no Brasil. São Paulo, muito cabeça fechada, a gente precisa expandir para outras coisas que não seja ‘ah, meu estilo musical é o único que presta’. Isso me irrita, me irritou muito, transfobia e machismos dentro desse meio. Não tenho mais paciência. Ou eles crescem para voltar a jogar na grande música com as outras pessoas que fazem música profissionalmente, ou, (o Rock) vai continuar do jeito que está. E ele está do jeito que está por causa desse bando de macho. Eles que fiquem entre eles, votando no Bolsonaro e fazendo esse tipo de música que só interesse a eles mesmos.

Se eu for ouvir, tem que ser uma mina. Em grande escala popular, me interessa o que a Pitty está fazendo. Mas nenhum outro boy com guitarra vai me interessar. Se for falar num Rock mais independente e alternativo, tem várias outras bandas que estão pouco se importando com o mainstream. Aí vamos falar de Rock de verdade que é o espírito do Rock, de renovação, é tudo menos manutenção do patriarcado e de velhos sistemas, que é o que esses boys estão fazendo. Se eles continuarem fazendo isso, porque os lugares que tocam Rock só tocam as bandinhas deles, continuam fechando as meninas, vai falir como vem falindo.

Vamos ver o que vai acontecer. Eles vão começar a dar atenção que as mulheres do Rock precisam? Porque, assim, a Mônica Agena, por exemplo, hoje em dia acaba com qualquer boy. Eu não sou amiga dela, estou falando o que eu vejo.

Você voltou a tocar guitarra na banda da MC Tha?

Olha só, de todos os lugares para tocar guitarra, foi numa banda de Funk. Acho ótimo, amo Funk, amo produzir, assim como o Rap. São dois estilos musicais que ainda temos muito o que fazer. E tudo o que tem muito o que fazer me interessa, a gente ainda pode misturar muita coisa, fazer virar muita coisa, trazer vários ritmos e sonoridades para dentro desses lugares e criar cada vez mais.

O Rap nacional é muito bom, tem uma certa parte que está emulando, assim como outros estilos musicais, coisas que acontecem fora. Sempre vi o Rap nacional em um lugar de características próprias. Sempre foi nacional, sempre teve uma cara nacional, sempre foi muito natural isso. Fico feliz de serem coisas que a gente pode desenvolver muito bem dentro do nosso país. Para quem não tem preconceito de trabalhar nesse meio – e desenvolver isso – sabe que é um lugar em que é possível abrir as asas e colocar instrumentos de vários tipos.

Se você pegar o Tecnobrega, também. O Brasil é muito rico para trabalhar coisas de guitarra. É só a gente não ficar nessa visão eurocentrista que a gente vai se expandir para outros lugares. É muito gracioso ver bandas como BaianaSystem fechar grandes festivais. Ter essa nova característica de colocar a música eletrônica junto com instrumento orgânico e guitarra, guitarrada. Esse é o Brasil que a gente quer ver.

O funk também dá para misturar. É muito louco. Acho bem feito, isso é pra branquitude metida a cult que metia o pau anos atrás, intelectualóides que querem colocar regra sendo preconceituosos. Vamos funkear na cara deles cada vez mais. O Blues não foi dois acordes? A música de sexo que gerou tudo isso? As coisas mudam, se modificam, discursos se renovam. O funk é isso e vai continuar sendo isso.

PAOLA RODRIGUES

Ao longo de 27 anos, a música apareceu de diversas formas para a artista visual, tatuadora e compositora baiana Paola Rodrigues. Na infância, aprendeu a tocar flauta, depois violão, para descobrir a guitarra quando estava na faculdade, e já morando em Belo Horizonte. Foi a partir do interesse por produção que ela começou a colecionar instrumentos para o seu home studio, até finalmente chegar à nova década. O piano foi sua mais recente aquisição.

Depois de três anos entre Brasil e Alemanha, onde passava grandes períodos tatuando em Berlim, encontra-se em São Paulo, onde trabalha de designer, compõe músicas para seu projeto pessoal e mantém duas bandas (a Tarda e a Fuga).

Antes de mais nada, considera-se uma pessoa ansiosa, mas também é muito atenta aos seus processos de desenvolvimento. Cita o podcast Song Exploder, em que artistas, de Bjork a Slipknot, explicam como compõem hits. “O que ouço sempre de quem vai falar de uma música que marcou a carreira é sobre a importância de quando eram jovens, de quando eram pouco técnicos, de buscar esse momento de volta. Às vezes penso que estou nesse momento, que não é de total desinformação, mas tem essa pouca técnica que acaba sendo boa às vezes. É uma loucura pensar que não sou A musicista, mas tenho tal vantagem e abraçar essa vantagem.”

Uma busca no Bandcamp e você encontrará os seus trabalhos já lançados, todos como participante da Geração Perdida de Minas Gerais: o disco Perdida (2014), o EP <3 WIFI e o single “paranoid quarto”, primeiro trabalho de seu próximo álbum Trauma. A nova década também vai trazer para o mundo composições da Tarda e da Fuga. “A palavra agora em 2020 é concisão, como vou fazer uma obra? Essa obra não precisa ser um CD ou quadrinho, tudo que vou estar criando vai se juntar, não sei como”, explica.

(…) Você consegue fazer tudo daqui, de seu home studio.

Estou tentando focar na música, mesmo conseguindo fazer tudo isso e gostando de pintar, porque chegou um momento que se eu não focar não adianta nada. Então, estou focando na produção audiovisual, que quer dizer: a música da banda e do meu projeto e o visual que está atrelado a isso. Entrei numa vibe de fazer ensaio fotográfico, de maquiagem que é uma coisa que eu nunca tinha entrado antes na vida.

E pensar também nos dias atuais. Como que hoje a gente conversa com as pessoas? Ser músico hoje em dia é o quê? Não é mais uma conversa sobre que era antes, eu acho. Essa exposição, mas ao mesmo tempo uma proposição da vivência diferente, ser a pessoa que inspira os outros. Tipo, eu já sou uma pessoa toda errada na vida, em geral é muito difícil eu ter um trabalho, uma rotina, estou tendo há um mês e está sendo bom, é novo para mim. Então vamo aproveitar isso, sabe? O Fuga veio para isso, sou só eu e outra pessoa (a ilustradora Puiupo).

O que você tirou de conclusão desses processos?

Estava escrevendo um projeto de mestrado no começo desse ano, tentando passar na USP. Estava pensando sobre como o nosso cérebro é fluído. A minha tese foi meio que essa: de como a gente pensa de uma forma fluída. Está ficando cada vez mais na cara que ninguém consegue seguir só uma coisa, está ficando cada vez mais um saco esse negócio de superespecialização, ninguém quer seguir isso. A gente não é assim na vida.

Podemos até ter prioridades, isso acho importante, mas quando aceitamos a fluidez e o múltiplo, a gente começa a criar um fluxo de construção e não um fluxo de esperar uma inspiração louca. Um fluxo de investigação, como seu cérebro contribui nisso. Hoje estou pensando que, na real, eu já tenho todas as ferramentas, só cabe a mim sentar e produzir. É difícil pensar sobre como distribuir tudo isso, e botar isso para fora, tudo está nas gavetas. Sinto que 2020 veio para isso.

Só que assim quando eu tinha 20 anos meu pai se matou e tive que lidar. Foi muito louco o jeito que lidei: saí viajando por três anos e fiquei sem casa. Estou em um momento de aprender sobre estabilidade e usar tudo isso que foi muito input, mas não estava criando tanto. Era como se eu estivesse viajando e colecionando coisas, experiências, mas não estava criando nada. Agora é o momento de organizar esses pensamentos e tentar botar para fora uma obra, uma coisa que não seja equilíbrio, porque equilíbrio é meio e eu gosto de extremos, que quando juntos te dão esse meio.

Esse é o momento de fazer uma obra boa, de fazer uma obra que não só faça as pessoas quebrarem a cara e se questionarem, mas também as façam dançar, curtir e gritar uma frase de raiva pro ex. Sinto a música como uma forma de falar a língua das pessoas, por isso às vezes tento escrever menos engessado, menos formal, do jeito que falo. Falar num fluxo de pensamento justamente para as pessoas sentirem como se fossem o pensamento delas. Penso a música como uma forma de dar a oportunidade para as pessoas sentirem, emocionarem, cantarem, se identificarem porque é o que fizeram por mim com a música. Sempre senti isso com a música e nunca com outra coisa.

Por isso penso que se for para focar, vou focar na música, se não der certo, pelo menos eu tentei. Esse ‘dar certo’ também é muito relativo. Às vezes você pensa em sucesso, mas conseguir colocar isso para fora e não ficar nesse questionamento – porque me questiono muito e acabo não fazendo as coisas. Acho que hoje todo mundo é um pouco assim porque você já faz mostrando as coisas, não tem tempo de maturação.

Nos seus trabalhos, o lance do spoken word, o fluxo de pensamentos, ainda está em pauta?

Sim. Uma coisa que minha professora de desenho fala que acho engraçado é que, se você está investigando uma coisa que você já conhece, você está roubando. Não que eu não vá mais fazer spoken word, mas tento cada vez mais colocá-lo o onde ele deve ir, e não fazer ele porque é a única coisa que sei fazer, que é o aconteceu no meu primeiro CD. Era uma coisa de não conseguir fazer uma melodia, mas consigo mandar uma letra, pensar num ritmo… Só não consigo cantar ainda.

Fui aprendendo a cantar, a compor com a Tarda, a última música que a gente compôs fui eu quem fiz toda cantando. Foi um processo que no dia seguinte nem lembrava mais, foi a Sara quem me lembrou que eu tinha escrito algo, quando fui ler a música já estava toda lá, pronta. Isso é uma coisa que estou aprendendo com outras pessoas. O Vitor, por exemplo, quando foi me ensinar a compor, ele me disse só para ir cantando, num ritmo, pensei “que saco ele não sabe nada”. Mas na real vivi para entender isso como o certo, porque a gente já conhece as notas, algumas combinações. É só fazer novas combinações, não existe criar.

É isso, a investigação tem que vir e trazer o que tenho numa forma cumulativa. Hoje tento fazer uma música que combina melhor os elementos que existem, porque hoje em dia identifico melhor esses elementos. Antes eu não identificava e hoje de tanto ouvir percebo que naturalizei os ritmos, de tanto ouvir Kanye West não consigo mais fazer uma bateria que não seja quebrada. Saber que é isso que gosto na música é realizador, porque não tenho isso na arte. Na música tenho isso de conhecer tudo e não ter tanto essa crítica, só quero ouvir qualquer coisa.

Mas o spoken hoje, a letra, a palavra, são muito presentes em mim, sempre foram. Quando eu era pequena, além de me exibir com o desenho, gostava de memorizar textos e mostrar para as pessoas. Tem um poema que aprendi quando pequena e lembro até hoje. Falei pro meu pai, toda orgulhosa que tinha decorado tudo e ninguém ligou. Hoje aprendi que a palavra não é tão importante, meu mundo caiu. Agora é tentar falar em frases musicais, e isso é muito legal, porque a música ocupa um lugar no mundo, na sociedade. A pessoa ouve música e ela pode ficar triste, feliz, não tem tanta regra social. Claro que tem uma divisão socioeconômica, mas qualquer um pode ouvir uma música sendo tocada por ela, é muito doido.

Sobre ter coletado experiências nos últimos anos, no sentido de sentir que não adianta sair fazendo um disco atrás do outro para mim, comigo. Talvez se eu investigar de outra forma de fazer, sim, mas do jeito que eu faço agora, sem criar histórias de personagens, posso fazer diferente depois, mas por enquanto eu parto de experiências minhas, de falas que são minhas, do que passei.

Também pelo processo de você ter viajado, de chegar nesse momento.

Sim. Além de lidar um pouco com o fato de que tenho problemas psicológicos, tenho um monte de treta, desenvolvi ansiedade, sempre tive depressão, tive um pouco de coisas que aprendi a lidar porque não queria me medicar. E lidar com isso depois do meu pai ter se matado, tudo veio muito, então boa parte da minha vivência era só aguentar. Esse deve ser o primeiro ano que realmente estou leve e pensando que tudo é possível, que eu posso fazer. Não sei se sou borderline, o que sou, porque sempre tem alguns momentos da minha vida de euforia, no sentido de achar que tudo vai dar certo e tomar decisões muito erráticas e tipo foda-se: se não for agora, não vai ser nunca. Começar a tatuar foi assim, ir para Alemanha e voltar para São Paulo também.

Estou buscando o valor de justamente viver sem esses momentos, viver de forma constante e criativa. A arte me ajuda bastante nesse sentido. Mas, de todo jeito, quando vem é bom, né. Veio esse ano, mas veio tarde, porque boa parte do ano passei depressiva. E eu não morava aqui (nesse apartamento), estava em um lugar meio isolada, gosto desse barulho, do caos. Me acorda e me faz bem lembrar que o tempo está passando.

De onde você parte na hora de começar a criar a track?

Anoto, sim. O que tenho feito no Fuga é tentar aplicar o que aprendi na Tarda, de parar e ver o que fiz, gravar. A Puiupo estuda direitinho os instrumentos dela, então ela sempre soube gravar os negócios. Eu já faço as coisas tudo errado, sempre fui assim, aprendo do meu jeito e depois de anos vejo que existe um jeito mais simples de fazer uma coisa que faço do pior jeito possível. Anoto do jeito mais caótico possível, tento repetir, mas aí gravo no celular. Tem também essa lógica que penso ser muito própria do nosso tempo, que é tocar já gravando tudo simultaneamente, depois brincar de edição e tirar a música. Isso é uma nova forma que é própria da gente, da internet, de não ser instrumentista, de ter que montar depois a estrutura, porque na hora você tocou de uma forma maluca.

Tem de anotação também, mas percebo que estou escrevendo menos. O Vitor sempre falava que eu escrevia muita coisa, porque, quando a gente juntava para fazer CD, eu já tinha o CD quase inteiro, era só recortar. Algumas coisas não, às vezes ele acordava e falava para eu escrever uma música qualquer e me dava um tema tipo “futuro”. Eu falava ok, processos mil. Hoje penso mais em considerar o que me vem mais fácil, o que tem mais a ver com a ginga e sentir. Às vezes acho melhor começar tocando um baixo, uma guitarra ou piano, para ter a base primeiro e depois criar voz e letra e conseguir uma música mais swingada. Já quando penso em fazer uma música Rap, trapzera, começo pela bateria e depois me fodo para fazer a voz.

A gente tem essa liberdade de pensar um projeto que seja só fazer e depois foda-se se a gente não souber tocar, mas fazer quase como um Rap. Acho que essa é a junção dos meus estudos em artes visuais com a música. Pensar na investigação e nesses processos porque querendo ou não eu tenho essa formação em artes visuais e não vou jogar fora. A palavra agora em 2020 é concisão, como vou fazer uma obra? Essa obra não precisa ser um CD ou quadrinho, tudo que vou estar criando vai se juntar, não sei como.

Podemos até ter prioridades, isso acho importante, mas quando aceitamos a fluidez e o múltiplo, a gente começa a criar um fluxo de construção e não um fluxo de esperar uma inspiração louca.

Ia te perguntar sobre ref – The Knife, Fever Way, Kanye West…

Tipo kkkk. Depois vem Alceu Valença, Milton Nascimento, Rakta. As referências são tudo um caos. Sou baiana, cresci ouvindo música muito brasileira, Legião Urbana, Raul Seixas. Mas também Alceu Valença, Zé Ramalho, Elba Ramalho. Tocava violão nesse sistema popular, porque eu fazia aula com um professor que era diretor da Filarmônica de Ilhéus, era muito dedilhado, Baião.

Na adolescência, virei meio do Emo, Rock, era otaku, isso na Bahia, era a única gótica na escola. A galera me chamava de emo, porque qualquer pessoa que vestia preto e não ouvia Arrocha era emo, a moda da época. Escutava mais Hardcore e umas tosquera também. Depois fui abrindo a cabeça. Quando a internet chegou de uma maneira mais de boa, tinha uns 12 anos, era muito rata de blog de baixar discografia, e tinha orgulho de ser nerd de música, de conhecer tudo. É muito engraçado porque eu tinha um HD com todas as músicas e quando conheci o Vitor a gente ainda usava esse HD para tocar nas festinhas, ele ficou ‘como assim, as mesmas músicas que curto?’. Claro, né, naquela época qualquer pessoa mais indie ia conhecer as mesmas músicas. Depois fui abrindo mais a cabeça para Bjork, Antony and the Johnsons, Milton Nascimento, algo mais melódico.

Faz uns cinco anos que eu só estava ouvindo Rap, comecei a ficar meio preocupada. Mas, gosto muito de música eletrônica do nosso tempo, acho válido ouvir de tudo. White Suns, Deafkids, Rakta, Death Grips, essas coisas que é muito doido que a galera faça porque a gente pode fazer. Tem os clássicos que todo mundo ouve, como Radiohead. Acho que tento trazer os bons elementos que ouvi em tudo isso, gosto muito de bateria que dá um gingado e gosto pouco de loop que não quebra nunca.

Comecei a perceber do que mais gosto, juntar e ver no que vai dar, porque não tenho a capacidade de decidir algo e fazer exatamente, porque falta técnica. Porém, tenho capacidade de pegar elementos, reproduzir e combinar. É essa investigação no sentido de pegar a bateria quebrada estilo Kanye West e colocar um vocal estilo Fever Way. O que vai dar? Estou nessa investigação atualmente, porque estou fazendo essa bateria mais Trap, a parte meio melódica que usei como baixo na verdade são os pratos.

Essa é a vantagem de banda também, às vezes você está há cinco dias em um quartinho e não tem que fazer mais nada. Uma parte está almoçando e os mais fritos vão lá e gravam uns pratos, com mil microfones de posições. Meu lema é contraste, tudo é bom e esquisito. Até no meu jeito de me vestir sou assim, me vestir de boy com uma peça feminina. Se vestir de menina com uma peça masculina. Cortar o cabelo muito boy e usar roupa feminina. Sempre quebrar a regra de alguma forma. Não espero ser a Lady Gaga que vai quebrar tudo. Mas tenho esse meu jeito de quebrar um pouco o que as pessoas vão esperar de mim.

JASPER

2019 foi transformador para várias pessoas, tanto de forma positiva como negativa. O ano passado foi especialmente importante para a trajetória de Jasper, cantora, compositora e guitarrista, nascida em Itatiba, interior de São Paulo.

Aos 22 anos, passou a integrar a Funmilayo Afrobeat Orquestra como guitarrista, ao lado de mais dez musicistas negras. O nome do supergrupo presta homenagem a Funmilayo Kuti, professora, ativista dos direitos das mulheres e mãe de Fela Kuti. Lançaram o primeiro single, “Negração”, em novembro e, logo em seguida, realizaram o primeiro show como banda. “Foi a primeira vez que subi num palco grande para tocar guitarra, como guitarrista mesmo. Foi minha prova de final de ano, um TCC porque é muita gente. Então a comunicação com a base é de um jeito, com os sopros é de outra e a comunicação geral também é diferente”, explica Jasper.

Quando não está se dedicando aos estudos das cordas, está compondo para seu projeto autoral, o Jasper e a Gana. “(O nome) vem dessa vontade de não ‘dá mais para fazer projeto e ficar no papel’, tem que vir pro mundo. Isso foi lá pelos meados de março”, relembra. Para a nova década, pretende gravar um disco como banda, além de continuar se apresentando com a Funmilayo.

Desde os 17, escreve canções e aprende novas palavras para construir seu vocabulário recheado de sons e de imagens: “No início, era bem americanizada, escrevia em inglês, porque – além da vergonha – tinha facilidade de passar muito tempo na internet e queria compor igual pop star. Com o tempo, fui me aproximando da música brasileira. Na época, que estava estudando para o vestibular, lembro que enchia a parede de post-its com palavras novas, pirei em língua portuguesa.”

Lembra que era fã de bandas como Arctic Monkeys e outros pares do Indie Rock em 2015. Mas hoje em dia se relaciona – e se identifica – com o caráter de resistência do Afrobeat, que se escora no desenvolvimento de um posicionamento político. E enxerga como ambos projetos dos quais faz parte se fortalecem quando somados.

“Quando entrei na Funmilayo, a minha mente se expandiu. A Stela (Nesrine), a saxofonista, me chamou para participar do projeto que estava começando a ensaiar em São Paulo. Ela queria que eu tocasse guitarra, fiquei tipo ‘quem te falou que sou guitarrista?’. Tenho noção de violão e guitarra para poder compor, mas assumir o papel de guitarrista em uma banda de orquestra cheia de minas fodas, que estão há muito tempo estudando e vivendo de música, era outra coisa. Então ela disse ‘se você estiver disposta a aprender junto com a gente, porque é um gênero novo para todo mundo, só vir’. Fui na cara e na coragem”.

Cantar veio antes de tocar?

Sempre tive essa limitação pessoal, de que meu forte é compor e cantar. Tive que quebrar isso, porque, se estou vindo pra cá, posso trazer meu projeto e me ampliar para outros lugares, mas nem sempre vou ter alguém. Sou uma pessoa que sempre pensa no coletivo, meus passos são pensados para agregar as pessoas que estão por perto. Nesse processo, aprendi que quando eu me aprimoro sozinha, enquanto indivíduo, também aprimoro o coletivo, o que estou levando de um lado para outro agrega para todo mundo.

Nessa jornada tive que me entender como indivíduo, como musicista, como compositora e como ser tudo isso ao mesmo tempo. Vim dessa cultura de ‘eu canto, vocês tocam, estamos sempre juntos, só vai se o outro for’. Quando cheguei na Funmilayo, todas já tinham sua individualidade. Fui entendendo o que é ter uma relação com a música, você querê-la na sua vida como foco principal ou seria algo com o qual você quer trabalhar? Tive que correr atrás para estudar coisas que eu nem tinha pensado que seriam necessárias. Não sabia que estudar música era tão necessário assim. Na movimentação de um cenário interiorano, a gente se anima tanto em fazer as nossas próprias coisas e não temos contato com o que está acontecendo de fora.

Esse ano de 2019 inteiro foi de abrir mentes. Quando Jasper e a Gana começou, a gente ensaiava uma vez por semana direto, dois meses depois a gente estava no estúdio gravando a nossa demo. Foi muito rápido, porque a gente não tem mais paciência para ficar esperando. É essa gana mesmo de querer ir atrás, crescer, porque dos meninos que tocam comigo todos já tiveram experiências passadas que meio que ficaram girando em círculos. Até a gente se descobrir.

Foi tranquilo para mim chegar na Funmilayo e já ter tido a experiência de ter uma banda autoral, que se junta para criar, porque muitas das meninas são instrumentistas, então têm outra dinâmica. Como eu e a Stela já tínhamos essa experiência de trampo autoral foi menos difícil, mas aprendi muito com elas de como preciso estudar meu instrumento, fazer a lição de casa para crescer como instrumentista, como compositora e como artista e para poder ajudar todo mundo a andar pra frente. Jasper e a Gana e a Funmilayo Afrobeat coexistindo é uma chamada do universo.

E de refs? Em 2015 você falou que eram mais americanas.

Tive uma infância meio trancada no computador (tenho 22 anos) e sempre fui de consumir conteúdo da internet. Como uma segunda língua, eu consumia bastante coisa americana e britânica. Passei por todas as fases da vida, pelo Pop Punk com Fall Out Boy e Panic! At The Disco, passei pelo The Neighborhood e Arctic Monkeys e tumblr da vida, tudo que estava ali no mainstream rodando.

Depois que comecei a trazer isso para as minhas composições, mesmo sendo puro creme do mainstream verde. Na infância, enquanto a galera estava ouvindo Charlie Brown Jr. eu estava ouvindo Pussy Cat Dolls. Demorei muito para trazer o que ouvia para o que compunha. Por mais que gostasse de Pop, não era aquilo que eu queria fazer.

De refs hoje em dia acho que a Lianne La Havas foi a minha principal, porque a via naquele palco sozinha, tocando guitarra e regendo o show do jeito que ela bem entendesse e podia ser só ela que estava bom, que o som parecia completo e só a interpretação do rosto dela também. Sempre associei muito a interpretação das músicas com o corpo, tenho essa necessidade de me mover com o corpo. Quando a vi [Lianne] no palco regendo tudo com a maior naturalidade, com músicas incríveis, ela e a guitarra sendo o foco principal, vi que era bem possível. Lembro que, antes de uma das minhas primeiras apresentações sozinhas com a guitarra, fiquei horas vendo os vídeos dela, para entender passar a mensagem sem usar as mãos.

Tem também a Bia Ferreira que me deu um choque de realidade, numa época que estava bem deslocada, desistindo da música. Foi em 2016/17 que fomos em um encontro de mulheres negras em Campinas. Ela [Bia Ferreira] pegou o violão para cantar e encheu o espaço, as pessoas ficaram em silêncio. Era ela, a voz, a mensagem e o violão. Pensei ‘como consigo fazer isso? Como chego nesse nível? Como consigo transformar um som inteiro para alguém que sempre teve essa paranoia de precisar ter um baixo, uma guitarra, pro som sair. Como as minas conseguem chegar lá na frente e fazer o som parecer completo, cheio’. Foram minhas grandes referências de presença, de não me apavorar tanto em ter um instrumento na mão.

Além disso, Mahmundi que é maravilhosa e produz tudo, faz de cabo a rabo todas as músicas dela foi uma das minhas atuais e antigas referências. Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira… Lembro que fui num show delas quando eu fazia faculdade perto da Estação Cultura, em Campinas, elas foram se apresentar e eu saí correndo da prova só para vê-las, cheguei lá esperando a formação da banda inteira e estavam só os três, as duas na voz e ele na guitarra – e foi completo.

As referências estavam me mostrando que dá para fazer. Eu com minhas letras, com a guitarra posso ter muito para estudar e evoluir, mas consigo fazer porque as músicas são minhas, é tudo meu. Posso fazer até a capella se precisar, mas preciso ter essa compreensão de que sou dona da minha própria arte.

Você falou que escrevia em inglês, como foi destravando?

Era muito sobre esconder a mensagem, eu desabafava muito nas minhas músicas em inglês. Quem entende, entendeu, quem não entendia tentava na próxima. Sempre foi meu refúgio. Por usar muito a internet aprendi inglês muito rápido, treinava isso escrevendo sobre o que estava sentindo, sobre as partes ruins que a gente joga nas composições.

Teve uma vez em que estávamos ensaiando e marcamos de apresentar no próximo mês e precisávamos de uma hora de repertório, escrevi umas dez músicas na lata. Depois disso, nunca mais senti falta, passei por aquele processo de vestibular, aprender palavra nova, de ter sede pela língua portuguesa. Depois que percebi que o que consigo fazer com a minha própria língua é três vezes maior do que eu fazia, acho que nunca mais voltei. Perdi a vergonha. Ainda me escondo atrás das metáforas, tenho dificuldade de ser direta com a mensagem, mas pelo caráter de posicionamento que tenho hoje em dia estou aprendendo a ser um pouco mais direta.

Minhas composições normalmente giram em torno de fatores sentimentais, porque minha compreensão é muito ligada à minha espiritualidade. Minha compreensão sobre o amor vem da minha mãe Orixá. Tudo gira em torno dos meus relacionamentos e de ser uma pessoa preta, LGBT em relação a esses relacionamentos. São pontos de vista muito específicos para falar de amor, era para ser fácil, mas não é, era para ser um tópico que podia ser mais genérico, mas não é. Por isso que minhas referências em grande parte são pessoas pretas e LGBT, quando ela está cantando sobre amor sei que tem uma base por baixo disso. Então, usava muito a subjetividade nessa questão do sentimental, mas também comecei a sentir falta de um caráter político, de um posicionamento maior, além do amor. Eu tenho o direito de falar, até aí tenho completo direito de falar. Ver a Liniker cantar sobre ser amada foi um dos grandes apaziguadores dessa dúvida que eu tinha de que tipo de mensagem passar, porque já é revolucionário para uma pessoa preta e LGBT falar sobre amor. Eu descanso nisso. Porém, pelo meu histórico de comodidade senti essa falta de ter um posicionamento. A partir disso, estou trabalhando minhas músicas para serem mais diretas, tem que chegar, tem que arder, tem que doer. Também quero fazer as pessoas ficarem em silêncio porque elas estão chocadas. Mas também quero fazê-las ficar em silêncio porque estão emocionadas.

 Esse é meu processo agora: conciliar essa subjetividade, esse sentimentalismo com a palavra direta e reta e, ao mesmo tempo, de forma poética.

Você está sempre escrevendo ideias?

Sim, tenho um caderninho, mas é muito mais celular, bloco de notas e grupo sozinho no Whatsapp. Depois que engatei em escrever em português, fui atrás de palavras novas, de me aprimorar nessa questão do vocabulário, porque tenho muita coisa para falar e preciso de ferramentas para que isso seja passado da melhor forma. Se não eu jogo tudo em metáforas e ninguém entende nada. Tem que chegar dos dois jeitos.

Nas minhas letras quero ser o mais detalhista possível sobre o que sinto. Por causa disso estou sempre fazendo uma lista de palavras que preciso usar ou das que preciso parar de usar. Palavras novas, significados novos, referências de músicas, como quero que isso soe, o que são as músicas e quem são as pessoas que falam sobre aquilo que quero passar. Estou sempre estudando letras, pesquisas de músicas, métrica de como eu saio.  Porque eu cresci com o Pop, que tem um formato fixo, precisei me desvencilhar disso para ampliar minhas letras. Tipo estrofe, refrão, estrofe, refrão, ou ABAB, os formatos de rima. Precisava largar esse apelo que eu tinha com um formato pronto, as mensagens escondidas. Esse é meu processo que está acontecendo agora: conciliar essa subjetividade, esse sentimentalismo com a palavra direta e reta e, ao mesmo tempo, de forma poética.

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