Bocca chiusa

Sem apoiar-se na literalidade das palavras, a música instrumental tem conquistado espaço no cenário independente nacional com suas explosivas viagens sonoras

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Fotos: Gabriela Schmidt, Pedro Moura

Demorou nada menos do que oito anos para o Lollapalooza Brasil colocar uma banda 100% instrumental em seu line-up. Os felizardos que abocanharam a vaga foram os paulistanos do E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante. Claro que o caminho já havia sido pavimentado por grupos como Macaco Bong, Bixiga 70 e Guizado que já percorriam livremente por festivais não-instrumentais sem entoar uma palavra ao microfone durante suas apresentações. A entrada do EATNMPTD em um dos palcos do Autódromo de Interlagos deste ano é só mais uma afirmação de que a cena instrumental brasileira nunca esteve tão viva e pulsante. E não estamos falando de orquestras e seus concertos eruditos. Trata-se de Rock, Samba, Afrobeat e uma infinidade de gêneros que borbulham sem a ajuda da língua. Não à toa, para abarcar essas iniciativas é que existem eventos como o Sonido, em Belém, ou o PiB (Produto Instrumental Bruto), em São Paulo.

Quem se interessa muito por esse universo é o jornalista Leonardo Vinhas. No Scream & Yell ele edita as coletâneas “Sem palavras” que reúnem diversos artistas instrumentais brasileiros em regravações de clássicos da música nacional e internacional. Com o projeto, ele transita por diferentes sonoridades: aparecem por lá bandas como ruído/mm, Yangos, Pata de Elefante, Herod, Rodrigo Nassif Trio, Aminoácido, entre tantas outras. “No Brasil, a música instrumental sempre foi muito popular. Tanto a rádio como os salões de baile davam muito espaço para ela”, explica Vinhas. “Com o tempo, as pessoas passaram a associar esse tipo de proposta com trilha sonora ou música ‘ambiente’. Mesmo bandas que tiveram certa popularidade – como a Black Rio ou A Cor do Som – tinham que gravar canções por pressão indústria. Por mais que no mainstream isso não tenha mudado, nesse cenário ‘médio porte’ (me recuso a chamar de ‘independente’) bandas como Bixiga 70 e Orquestra Brasileira de Música Jamaicana lotando shows”, disserta.

Segundo o jornalista, “música instrumental virou um rótulo infeliz”, uma vez que é um balaio em que se colocam diferentes gêneros musicais que estão unidos ali exclusivamente por não terem letra. Vale lembrar, aliás, que o instrumental pode, sim, contar com vocais, mas somente enquanto esta é usada como um instrumento, evidentemente. É este o caso do disco Quintais (2019) da banda mineira Iconili. Gustavo Cunha, guitarrista do grupo, fala sobre essa dificuldade apontada por Vinhas. “Poderia ter setorizações mínimas para classificar música instrumental com mais sensibilidade e precisão. Temos várias influências de diferentes ritmos e estas características, por muitas vezes, passam batidas por quem vê o Iconili apenas como ‘música instrumental’”, sugere.

Thiago França – saxofonista conhecido por sua carreira solo e também por seu trabalho dentro do Metá Metá – aponta para uma pluralização dos espaços em que a música instrumental aflora. “Hoje, há um movimento levando esse som para lugares bem alternativos: dentro de livrarias, galerias e outras apresentações mais intimistas”, explica o artista que, em contrapartida, também é o idealizador do bloco Charanga do França – bloco de Carnaval paulistano dedicado a marchinhas, ritmos brasileiros clássicos e outras melodias autorais. “Neste ano, tínhamos quase 100 pessoas nas ruas de São Paulo. Eram quase 70 só de sopro”, relembra no intuito de quebrar a ideia de que erudição e seriedade estão intrinsecamente ligados à música instrumental.

As pessoas estão carentes de experiências artísticas reais, de envolvimento verdadeiro com algo que vá além de algoritmos e compartilhamentos online. A música instrumental proporciona isso mais facilmente. – Leonardo Vinhas

Mesmo chegando nesses lugares, a cena também sofre as agruras de uma economia em que cultura não é prioridade. “Todos os membros da banda exercem outras atividades para se manter financeiramente”, revela Cunha a respeito do caixa do Iconili, que tem 11 integrantes. “Infelizmente, não é possível viver só da banda. Ainda mais atualmente. Sinto que estamos todos voltando para a luta que acontecia há sete, oito anos… Tá bizarro, tá osso! Tocamos em outros projetos, fazemos shows especiais, trabalhamos individualmente e nos encontramos no Iconili, nosso retiro espiritual.” O que acontece com o grupo de Minas não é exceção, mas sim (quase) a regra. Isso posto, a música instrumental, por mais que tenha criado novos públicos, alcançado novos patamares e plataformas para se expandir, ainda circula pelo underground. Vinhas tem fé: “As pessoas estão carentes de experiências artísticas reais, de envolvimento verdadeiro com algo que vá além de algoritmos e compartilhamentos online. A música instrumental proporciona isso mais facilmente. Estamos aprendendo a andar novamente nesse terreno e, cada passo, temos mais firmeza no caminhar”, arremata. Abaixo, um pouco da riqueza, da versatilidade, dos mil gêneros e da genialidade da música instrumental brasileira.

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