Nigga Fox desbloqueando beats e mentes

“A música para mim é tipo uma cena de desabafo. É tipo um quadro, eu pinto o que quiser”; atração do Gop Tun Festival, o DJ e produtor angolano-português é dono de uma assinatura musical mutante e um dos nomes mais inventivos do aclamado selo Príncipe Discos

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Fotos: Marta Pina

Há séculos a presença negra em Portugal é mais notável do que na maioria dos países europeus. Ao passar por Lisboa em 1760, o poeta italiano Giuseppe Barreti não escondeu seu incômodo com a presença considerável de pessoas negras que “formigavam em todo canto” da cidade. Séculos depois, entre os anos 1960 e 1970, as guerras de independência e conflitos civis estimulados pelo colonialismo em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe detonaram mais uma onda de migração de africanos para Portugal. Autora do livro Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana, a historiadora Isabel Castro Henriques defende que a capital lusitana possui “uma história africana que certamente será a mais importante da Europa”.

Mas apesar de sua participação volumosa na sociedade, a comunidade negra (e o racismo contra ela) foi e continua sendo mascarada, varrida para debaixo do tapete. Nos dois últimos censos nacionais, por exemplo, o governo português não incluiu perguntas sobre identificação étnico-racial — ainda que uma comissão de especialistas tenha recomendado. Assim, não existe uma estatística sólida sobre a porcentagem da população afrodescendente no país.

Diante deste silenciamento da presença negra, nos últimos anos a música dos guetos de Lisboa vem ganhando força como um elemento que reconfigura a identidade nacional e também propõe uma reflexão sobre os movimentos contínuos da diáspora negra. DJ e produtor angolano-português, Nigga Fox mobiliza essas questões através do campo sonoro. “A nossa música tem força”, diz ele, um dos principais expoentes do Batida — cena eletrônica que congrega diversos gêneros de origem africana. Como a própria diáspora, sua música cruza fronteiras historicamente demarcadas, apropria-se e desmonta tradições culturais de diferentes continentes, guiando-se sempre pelos princípios do experimento e da imaginação radical. Um dos nomes mais inventivos do aclamado selo Príncipe Discos, ele se apresenta no Gop Tun Festival, no dia 2 de abril, em São Paulo.

Das fitas cassete ao Fruity Loops

Nigga Fox é Rogério Brandão, filho de congoleses que cresceram em Luanda, capital de Angola, onde Rogério nasceu em 1990. Aos quatro anos, mudou-se com sua família para Lisboa e se instalou na antiga freguesia de Ameixoeira, onde cresceu ouvindo músicas de sua terra natal.  “Meu pai tinha sempre fitas cassete de vídeo de artistas do Congo, como Pépé Kallé, Fally Ipupa, Papa Wemba, Koffi Olomide… Eu não entendia nada do que eles estavam dizendo, porque eles cantavam em lingala. Eu gostava da batida, da vibe, do instrumental, da dança. Foi a partir daí que comecei a sentir mais a música africana”, conta em entrevista por videochamada. Um pouco depois, por volta dos nove anos, ele tomou contato com o kuduro, a música eletrônica de batidas aceleradas e sincopadas que emergiu na Angola dos anos 1990, em meio à guerra civil no país. Os primos em Luanda enviavam a Nigga Fox fitas cassete com músicas de Rei Helder (então conhecido como o Rei do Kuduro), Maquina do Inferno e outros kuduristas. “Ouvíamos muito, todo dia. Começou daí a paixão pela música”, relembra.

Na adolescência, por volta dos 15 anos, Nigga Fox formou um grupo de dança com irmãos e amigos. “Tava muito na moda nos bairros, nas famílias formar grupos de dança para entreter as pessoas na escola, nas festas, nos aniversários. Apesar de eu não dançar muito, estava sempre presente”, contextualiza. Já sabendo que não iria muito longe na dança, ele passou para o lado da produção musical quando, aos 17 anos, o seu irmão lhe apresentou o Fruity Loops (também chamado de FL Studio): o mais popular programa de criação de beats. “No começo eu não entendia, ele foi me ensinando e conseguia tirar dali alguma coisa nova da música. Porque a música não tem regras. A música para mim é tipo uma cena de desabafo. É tipo um quadro, eu pinto o que quiser”.

A experiência como dançarino, ele diz, “ajudou a perceber como as pessoas vão reagir à música”. Essa sabedoria foi particularmente importante devido ao ambiente no qual essa música — uma mistura de elementos do kuduro, funaná, tarraxinha, kizomba e muitos outros gêneros musicais oriundos da África — estava situada. “Circulava só nas periferias. Porque fazíamos músicas para os grupos de dança, e eles estavam na periferia. Quase nunca chegava na cidade. A única maneira do pessoal ouvir a nossa batida era através dos dançarinos do gueto”.

Apesar da dança ser o foco, é neste momento que uma rede de DJs e produtores vai sendo formada, conectando artistas dos guetos de toda Lisboa. “O DJ Nervoso foi um dos primeiros produtores do gueto, por volta de 2004 acho. Ele foi inspiração para mim e muitos outros. Então os DJs foram entrando em contato. Eu enviava a minha música para o Maboku no Bairro do Pendão, que enviava para o Firmeza na Quinta do Mocho, que enviava para o Lylocox lá no Cacém. E no Cacém como tem muita criança fazendo música inspirou outros”.

Todos esses artistas mencionados por Nigga Fox foram reunidos na Príncipe Discos, selo que surgiu em 2011 a partir do encontro do DJ Marfox com produtores de eventos e músicos de fora do gueto. “O pessoal da Príncipe perguntava: que música é essa? Isto tem que ser lançado. Quem são esses artistas? Foi assim que começaram a recrutar jovens do gueto para tentar levar a nossa música ao mundo”, explica. A Príncipe ajudou a organizar uma identidade visual em torno desse movimento, soube fisgar a atenção da imprensa mundial e vender o peixe para o circuito de festivais de música eletrônica pelo mundo. Pouco depois de lançar seu disco de estreia Meu Estilo, em 2013, Nigga Fox já estava em destaque em publicações como Pitchfork e Resident Advisor, além de figurar na playlist de Thom Yorke com a faixa “Weed e ter sido escalado para o renomado festival de música experimental Unsound, na Polônia. “A nossa música evoluiu bastante mundialmente com a Príncipe. E com os Buraka Som Sistema, que levaram nossa música africana para outras etnias e palcos fora de Portugal, pela Europa, Ásia e América”, avalia.

É neste momento que a cena recebe o nome genérico de “batida”, muito utilizado pela crítica e referendado também no documentário Batida de Lisboa (2019) — mas vale notar que o termo não descreve um gênero musical propriamente, mas se refere a uma amplitude muito vasta e heterogênea de estilos.

Apesar das conquistas dos músicos do Batida, as barreiras do racismo e da xenofobia permanecem em solo lusitano. Um relatório da Casa do Brasil em Lisboa dá uma dimensão dessa realidade: 86% dos imigrantes relatam ter sofrido preconceito em Portugal, sendo associados a estereótipos de prostituição e criminalidade. Nigga Fox — assim como outros DJs da cena — observa que existe uma dificuldade maior para fazer sua arte circular em Portugal do que em outros países. “Eu tenho mais datas fora de Portugal, infelizmente. Eu sei que na Itália eles consomem minha música e todos anos sei que terei uma ou duas datas lá. Hoje estou aqui em Nova York… Os portugueses ainda estão a se adaptar, ainda estão a sair da bolha deles, tentando perceber que música é essa. Portugal só está começando a nos dar valor porque estamos indo tocar fora. Em Portugal ainda estão  tentando perceber que música é essa, mas estão percebendo aos poucos. Têm que perceber, por bem ou mal. A música fala alto. A nossa música tem força. Só que está a ser uma batalha duradoura”, analisa.

Ainda assim, ele prefere focar nos avanços. “Durante muito tempo essa música ficava só nos bairros e fora dele nem ligavam, diziam que era música de bandido. Era só house nas discotecas. Agora não. Hoje em dia eu vou na [boate] Lux e escuto a música do Danifox tocando. E também passamos na rádio!”

“Não sou muito bom de falar; confio nos meus ouvidos”

O primeiro lançamento da Príncipe Discos foi o EP de estreia de DJ Marfox, em 2011. Misturando kuduro, funk e tarraxinha, o título trazia uma afirmação contundente e cheia de personalidade: Eu Sei Quem Sou. Filho de africanos da ilha de São Tomé e Príncipe, Marfox usava a música como forma de construir sua identidade. “Não foi à toa esse título”, me disse Marfox numa entrevista em 2018. “Naquela época e até hoje eu sei quem sou. Mas há muitos jovens que, como eu, nasceram em Lisboa, mas nem são caboverdeanos ou africanos (porque as pessoas de Cabo Verde ou qualquer outro país dizem que não são) e nem são portugueses (porque dizem: “Ele é preto, não é português”). Então a pessoa vive um pouco no limbo, desnorteado. E essa música veio trazer certa identidade a essas e outras pessoas que não se identificavam com nada”.

A estreia em disco de Nigga Fox também carregava uma afirmação semelhante: Meu Estilo. A ideia de um estilo único que o título aciona, porém, não tem tanto a ver com um “inedistmo”, nem com uma qualidade que o faria superior aos outros. Examinando bem, o estilo de Nigga Fox (assim como o ser de Marfox) sublinham a música como uma forma pessoal e íntima de tatear o seu lugar no mundo, uma investigação de si próprio, uma reflexão sobre a dupla consciência (um imigrante negro vivendo no centro da metrópole colonial). E o mais importante: o som como arma para desmoronar a subordinação que lhe foi imposta, abrindo frestas para imaginar um mundo de liberdade que lhe foi negado. Uma música inventar outro panorama, especular possibilidades de existências para além dos estereótipos coloniais, da violência, da dor e das cicatrizes.

“Em Portugal ainda estão tentando perceber que música é essa, mas estão percebendo aos poucos. Têm que perceber, por bem ou mal. A música fala alto. A nossa música tem força. Durante muito tempo essa música ficava só nos bairros e fora dele nem ligavam, diziam que era música de bandido. Era só house nas discotecas. Agora não. Hoje em dia eu vou na [boate] Lux e escuto a música do Danifox tocando”

Desde cedo, Nigga Fox buscou construir uma música que se desvia de rótulos folclorizantes e das expectativas que o circuito da música eletrônica global gera sobre a cultura da diáspora africana. “No início pensava muito nisso de uma cena africana. Mas depois houve uma altura em que eu pensei: ‘Para, já há muita música africana igual, que toda gente toca, toda gente faz. Muita gente fazia um Afrohouse e esse Afrohouse estava batendo, dando certo. O rapaz que faz Hip Hop vai querer fazer Afrohouse porque é o que estava batendo. Comigo não foi assim. Eu vejo muita gente fazendo afrohouse, então por que não mudar para fazer uma cena diferente? Eu gosto de fazer muitas experiências na minha produção. Pegar um bocado da raiz africana e tentar fazer uma cena futura, que não é fácil. Ela precisa de muita imaginação, de muita imaginação mesmo”.

Nigga Fox é mesmo um dos artistas mais empenhados em elaborar novos caminhos nesse âmbito da música afroeletrônica. O caso mais notório é o álbum 15 Barras, uma suíte de 15 minutos com abordagem atmosférica. A faixa começa com pulsos de baixos oriundos do acid house e vozes distorcidas e picotadas. Os beats matadores do kuduro ou afrohouse nunca entram, e a música vai se dissolvendo em seu próprio espiral, tornando-se incenso — apenas uma evocação daquilo que ela fora anteriormente. Outra faixa que também foi pensada “para viajar” (e não para a pista) foi “Cinco Violinos”. Incluída na rádio do produtor Joy Orbison do game GTA 5, a música se arrasta com duas vozes distorcidas em direções opostas (uma com pitch negativo, outra positivo) que pintam uma aura extraterreste e sinistra, como as realidades sobrenaturais de David Lynch. Mas o ímpeto exploratório continua presente também nas faixas concebidas para pista, como ouvimos em Música da Terra, seu novo álbum, que adiciona novas texturas sonoras ao seu mix. “Madeso” é uma cascata de beats sincopados em meio a uma névoa eletrizante de sintetizadores glitch. Já “Gás Natural”, emulando o som de socos de games de luta, abre-se para um delicado interlúdio minimalista, enquanto “Sasuke” soa como uma meditação futurista.

O som é a forma máxima de pensamento para Nigga Fox. Quando o questiono sobre as conexões entre o baile funk, o kuduro, footwork e outros gêneros de música eletrônica da diáspora, ele discorre sobre a proximidade dos BPMs — em vez de arriscar teorias sobre afinidades culturais e sociais, como faria a maioria. “Não sou muito bom de falar, não gosto de dar entrevistas”, diz, desculpando-se. Mas não é o caso de não saber falar, é que o sonoro é a via por onde ele pensa e exprime suas ideias. “Confio nos meus ouvidos — isso é muito importante”, enfatiza.

“Ainda estou tentando descobrir a minha identidade. Eu ainda não me encontrei. Estou apalpando o terreno e sinto que ainda posso trazer mais coisas novas, desbloquear mentes”

A conexão íntima com o som trouxe algumas especificidades ao trabalho de Nigga Fox. Uma delas é sua atenção às melodias, que servem para não deixar a música “seca”, como ele diz. Mas também servem para instaurar um mistério, sugerindo uma escuta mais aberta — assim como os pintores impressionistas sugerem formas e objetos com imagens mais difusas. “Eu posso fazer uma música só com melodia que tu vais sentar, viajar e imaginar o beat na tua cabeça”, propõe. Outra característica do DJ é o uso de muitas camadas de som, sempre jogando o ouvinte para novos rumos durante a track. “Para mim o beat não pode ser igual”, sentencia. “Se tiver um minuto igual, quero fazer uma quebra, eu tenho que mexer. Tem que ter muita informação no beat. O techno, por exemplo, é muito repetitivo. Eu não vou fazer uma coisa assim, eu também sou público e me canso de ouvir o puf, puf, puf”. Por isso as músicas de Nigga Fox possuem elementos entrando e saindo de cena, sempre alternando o foco. “De cinco em cinco segundos eu adiciono alguma coisa — a melodia pode continuar ou mudar, mas coloco uma voz, um outro instrumento”, explica.

Nove anos depois da estreia com Meu Estilo, Nigga Fox lançou seis discos que consolidaram uma assinatura musical mutante e inclassificável, um movimento incessante que recusa a captura e estabilidade dos rótulos predefinidos de gêneros musicais. O som e o estilo tornaram-se extensão de si próprio. “Ainda estou tentando descobrir a minha identidade. Eu ainda não me encontrei. Estou apalpando o terreno e sinto que ainda posso trazer mais coisas novas, desbloquear mentes”.

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ARTISTA: Nigga Fox