A série nos bailes da vida conversa com músicos, musicistas e artistas que, de show em show e de estúdio em estúdio, emprestam seu talento (a músicos, musicistas e artistas) por aí.
Vênus Garland foi criada com arroz, feijão e acordes. De periferia de Santo André, a baterista, cantora, tecladista e produtora musical guarda memórias das primeiras aulas de piano com seu pai de criação, Fábio Miguel, maestro e professor universitário – com apenas cinco anos de idade, a pequena Vênus sentava-se pela primeira vez perante o piano. Mal sabia que, aos 32 anos, se sentaria em frente ao mesmo instrumento só que, dessa vez, ao lado de uma sorridente Marina Lima no estúdio de Pedro Zopelar, em um ensaio com Badsista e Malka para o The Town 2024. A primeira vez que eu vi Vênus Garland no palco foi no show de Gueto Elegance (2021), de Badsista, no Primavera Sound 2022. A apresentação trazia todas as músicas do disco, só que rearranjadas em uma performance entre o rock e a música eletrônica. “A Braba do Jaca” nunca mais foi a mesma para mim.
O percurso de Vênus com o piano não foi linear. Em menos de um ano de aula, seu pai percebeu que ela era uma criança muito musical, mas “rítmica demais” para o piano. “O que aconteceu, baby, foi que eu era muito batuqueira”, brinca. Por isso, começou a fazer aula de bateria. Mais tarde, o piano voltaria para sua vida e Vênus passaria pelas mais variadas experiências com música, do Conservatório de Tatuí até tocar em uma banda de um cruzeiro pelo Mediterrâneo, sem nunca abandonar a lembrança das tarefas de escola que o pai deixara: escutar a rádio Cultura FM às duas e meia da tarde, a hora da música clássica, e descrever no caderno o som em palavras. “Crescer com meu pai foi uma vivência muito louca para crianças de periferia”, comenta Vênus. “A gente cresceu vendo ele reger orquestra, vendo ele reger coral, frequentando a Sala São Paulo. Às vezes, ele levava a gente só por levar. Hoje, eu entendo que ele queria ambientar a gente, mostrar pra gente que era possível estar naqueles lugares.”
De uma família da Igreja Batista, Vênus cresceu em um ambiente muito musical e com acesso a muitas bolsas de estudo oferecidas pela igreja. Conhecida como a igreja mais cultural dentre as neopentecostais, a Batista também formou a artista visual e musicista Ventura Profana. “É a escola travesti da Batista, né? Pegamos tudo de música deles e saímos vazadas”, brinca. Recentemente, Vênus chegou a perguntar para a mãe como ela nunca brecou essa história de viver de música dentro de casa. A resposta da mãe? “Eu nunca pensei em outra coisa porque você era isso, você só fazia isso desde criança, você juntava latinha de Nescau para fazer bateria e era música o tempo todo, era rádio, era seu pai, eram meus primos, era você”. Com um disco em fase de lançamento com Malka, acompanhando as bandas de Badsista, Danda Modesto e Vitória Faria, Vênus Garland bateu um papo com o Monkeybuzz sobre viver nos bailes da vida.

Como você conheceu o Badsista?
A minha transição começou em 2019, quando eu trabalhava num meio musical muito normativo. Desde meus 15 anos, vinha construindo relações musicais com uma galera muito legal, uma galera com quem eu aprendi muito, só que uma galera muito normativa, tanto que quando eu transicionei, mesmo tendo certo prestígio já, os trabalhos começaram a diminuir. Nesse mesmo momento, veio a pandemia e eu ficava fazendo vídeo de cover no Instagram basicamente para não enlouquecer mais do que a gente já estava enlouquecendo. Só que não era só um cover, eu fazia uma nova harmonia nas músicas de outras pessoas. Numa dessas, eu fiz cover de “I míssil”, da Linn da Quebrada. Quando saiu o Trava Línguas (2021), eu comi aquele álbum do começo ao fim, toquei tudo porque era muito legal ficar tocando umas harmonias muito lindas. Quando eu fiz um cover de “I míssil”, Linn e Rafa viram – e, assim, eu sou uma bicha da velha escola, nunca imaginei que as pessoas mais legais que conheceria na minha vida seria por causa do Instagram, mas Rafa viu esse vídeo, curtiu e já me mandou uma mensagem dizendo pra eu mandar tudo que eu tinha, já trocando muita ideia de som.
E como foi o processo de fazer uma releitura do Gueto Elegance para o Primavera Sound?
Ai, as roqueiras amaram e viveram muito! O processo de mexer nesse disco foi muito massa porque uma coisa que eu quero deixar registrado aqui – na verdade, eu faço questão de deixar registrado – é que Rafa é uma pessoa muito generosa pessoalmente e musicalmente: Badsista gosta de ouvir várias coisas, gosta de te ouvir, entendeu? Tem coisa daquela demo que eu mandei para ele no primeiro contato que a gente teve e virou arranjo desse projeto depois de meses. O processo começou com a gente se juntando em casa, montando um milhão de teclados – tenho foto desse dia que é engraçada porque parece a sala de controle do Batman de tanto cabo, tanto computador, tanto treco que juntamos. Rafa já tinha a ideia de a gente fazer releituras do disco ao vivo, mas tinha que ter uma característica nossa, de Malka, minha e a impressão de Rafa enquanto instrumentista, para além de cantor e produtor.
Nos primeiros shows, Rafa tocou sintetizador e baixo. Quando a gente começou a ensaiar, já tinha um show marcado no CCSP, e eu nunca vou esquecer porque lotou, ficou gente para fora, foi uma loucura. Na época, não tinha bateria no show, eu estava no teclado. A gente gosta muito de ensaiar e muita coisa acontece no ensaio. Para o Primavera, foi uma sequência de oito ensaios de seis horas cada. Quando você vive de gig, você não tem tempo de ensaiar, geralmente passa o repertório em casa e vai. Então, quando você tem a oportunidade de ensaiar muito, é uma delícia, todo mundo se diverte muito. A gente gosta de tocar junto.

“Eu tento trazer a performance de volta para a bateria, gosto de tocar vendada, girar baquetas, tocar de pé – e isso é muito Sheila E., é muito nosso”
Qual foi seu maior show?
Em 2024, participei do meu primeiro Rock in Rio com a Brisa Flow e foi muito potente estarmos no Palco Favela em uma banda de garotas racializadas em um momento muito marcante. Com a Brisa Flow, fizemos muita coisa – a mais marcante foi a turnê Janequeo em trânsito, passando por diversos pontos da América Latina. Ano passado, a gente passou pelo Chile com dois shows, um em Valparaíso e outro em Santiago. Já faz dois anos que eu toco com Brisa e é a primeira vez que eu fui com ela pra outro país. A história de Brisa começa no Chile, então eu mesma pude conhecer mais sobre Brisa. e suas letras ganharam mais sentido depois que conheci aquele território, a atmosfera, a demografia. É muito forte a gente de periferia se conectar com as periferias de outros países.
Também teve meu primeiro Lollapalooza, em 2022, com a banda da Jup do Bairro. Era uma banda só de pessoas trans e não binárias, o que em si já é muito potente, mas também foi o show que tem o vídeo em que eu toco bateria vendada, sabe? Tinha um momento do show em que a Jup apresentava as pessoas da banda para cada pessoa fazer um solo e, na hora do meu solo, a gente combinou uma brincadeira em que ela dizia: tá muito pouco, Vênus, eu quero mais. A gente foi ensaiando e chegou num ponto em que eu já estava querendo impressionar a própria banda. Eu escondi a venda, não contei pra ninguém, só para uma das produtoras e, no palco do Lollapalooza, quando a Jup me provocou pedindo mais, eu botei a venda e fiz meu solo de bateria vendada.
Qual foi seu show mais perrengue, nada a ver, a história mais engraçada?
Olha, tem história engraçada e tem história triste, viu? Deixa eu pensar…Nossa! Teve uma vez que eu fui tocar num barzinho e o bumbo da bateria ficava escorregando, indo pra frente. Você imagina: um groove pesado, o bumbo escapando e toda hora vinha a cantora puxar o bumbo, baile fervendo, sem poder parar de tocar. Até que eu tive a brilhante ideia de amarrar o bumbo com cadarço de sapato no banquinho da bateria. Deu super certo. Engenharia da gambiarra, quem diria?

“Quando você vive de gig, você não tem tempo de ensaiar, geralmente passa o repertório em casa e vai. Quando você tem a oportunidade de ensaiar, é uma delícia, todo mundo se diverte muito”
No começo da entrevista, a gente estava comentando como é raro encontrar mulheres bateristas. Você tem alguma coisa a dizer para as garotas lendo essa conversa?
Acho que o mais importante de dizer é que eu não sou a primeira garota tocando bateria. A Sheila E. tocava bateria para o Prince e, em todo show, ela tinha o momento dela. Eu tinha 12 anos quando vi a Sheila E. pela primeira vez, no MTV Unplugged. Ela estava na percussão e nos vocais. Sempre fui muito nerdola e, de cara, me marcou ver uma garota na percussão. Era época de lan house, eu abri outra aba e logo dei um google para saber quem ela era. Já veio aquela imagem da gata toda de lingerie e as baquetas na mão. Demorei para saber que ela era baterista do Prince, com os solos que eu já escutava há muito tempo. A Sheila E. é uma garota cubana, uma super baterista e uma grande performer também. No fim, acho que essas garotas não são tão lembradas como deveriam. Eu tento trazer a performance de volta para a bateria, eu gosto de tocar vendada, girar baquetas, tocar de pé – e isso é muito Sheila E., é muito nosso.