Novos clássicos cruzam a fronteira

Com compilações e relançamentos promovidos por selos estrangeiros, nomes como Azymuth, Jocy de Oliveira, Maria Rita Stumpf e Priscilla Ermel incrementam a ideia de ‘música brasileira’ lá fora e são reverenciados entre curadores, colecionadores e DJs

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Fotos: Reprodução

Em junho de 2017, a cantora Maria Rita Stumpf subiu ao palco do Teatro Oficina para se apresentar a um público pela primeira vez em mais de duas décadas. Depois de lançar os álbuns Brasileira (1988) e Mapa das Nuvens (1993), a artista encarou dificuldades de sobreviver economicamente com a música e prosseguiu em sua carreira prévia de produtora de eventos culturais, se afastando dos palcos – ou, ao menos, dos holofotes.

Entretanto, a partir deste pontapé inicial, a carreira musical de Maria Rita foi impulsionada novamente: os músicos que a acompanharam naquela apresentação também fizeram um show com ela no festival Kino Beat daquele ano e novamente no festival Dekmantel, em 2018. O novo gás deu uma oportunidade à Maria Rita de compor e gravar um álbum que fazia parte dos seus planos desde Mapa das Nuvens e, em maio de 2020, Inkiri Om, seu primeiro álbum em 27 anos, chegou à praça.

O show foi parte do Red Bull Music Festival daquele ano e, além de Maria Rita, reuniu nomes como Os Mulheres Negras e Priscilla Ermel para apresentarem as canções que formam a coletânea Outro Tempo: Electronic and Contemporary Music From Brazil, 1978-1992, lançada pelo selo holandês Music From Memory.

O redescobrimento da obra de Maria Rita já vinha acontecendo alguns anos antes do lançamento de Outro Tempo. “Quando me filiei à Abramus, pude ver pelos relatórios do Ecad que havia pagamentos de direitos autorais a me pagar, da Europa, desde 2011”, conta a cantora. “Mas, em julho de 2015, recebi um e-mail do [curador da compilação] John Gomez em que ele dizia que havia encontrado o LP Brasileira no Japão, e contando que queria fazer uma coletânea com a música brasileira dos anos 1980 que não tinha recebido a atenção que ele achava que deveria”.

Outro Tempo, que chegou a ganhar também uma segunda edição, não é um caso único de relançamento de trabalhos brasileiros por selos gringos nos últimos anos. A label inglesa Far Out Recordings, encabeçada pelo DJ Joe Davis, investe em novas versões de LPs de grupos como Azymuth desde os anos 1990 e, no ano passado, relançou dois discos da cantora e pianista gaúcha Ana Mazzotti. A compositora e pioneira da música eletrônica brasileira Jocy de Oliveira também teve seu LP Estórias para Voz, Instrumentos Acústicos e Eletrônicos relançado pelo selo britânico Blume em 2017. No ano passado, o selo alemão Analog Africa lançou uma compilação de faixas de artistas paraenses dos anos 1960 e 1970 intitulada Jambú e os míticos sons da Amazônia.

“O Brasil tem uma capacidade única de se reinventar musicalmente, absorvendo influências de outros lugares e produzindo algo exclusivamente brasileiro” – John Gomez, curador da compilação Outro Tempo

O interesse de selos e DJs europeus e estadunidenses pela música brasileira, como se sabe, não é um fenômeno recente. Além de nomes que Marcos Valle, Eumir Deodato e Arthur Verocai, sampleados aos montes e reverenciados por fãs espalhados pelo globo, DJs como Gilles Peterson e selos como Soul Jazz e Mr Bongo têm celebrado produções brasileiras há algumas décadas – e talvez até tenham ajudado a moldar a percepção estrangeira do que a música brasileira é ou pode ser. Álbuns de alguns períodos ou artistas específicos também se tornaram preciosos nas mãos de colecionadores, como o russo Leo Kartez.

Possuidor de um dos (raros) 300 LPs originais de Paêbirú, de Lula Cortês e Zé Ramalho, o colecionador começou a se interessar pela nossa música no final dos anos 1990, quando ganhou uma fita cassete da Carmen Miranda. “No mesmo ano, comprei o Getz/Gilberto e, nos anos 2000, conheci os Mutantes”, conta Kratez, que também diz que grande parte de seu conhecimento de música brasileira se deu graças ao blog Brazilian Nuggets. “Mas me apaixonei de verdade quando ouvi Paêbirú. Para mim, ele não é apenas o álbum brasileiro essencial – por muitos anos, ele foi minha única religião, modo de vida, sentimento, amor…”

John Gomez, curador da Outro Tempo, acredita que o espanto causado pela música brasileira em estrangeiros vem da capacidade de agregar referências e sintetizar algo único. “O Brasil tem uma capacidade única de se reinventar musicalmente, absorvendo influências de outros lugares e produzindo algo exclusivamente brasileiro”, conta o DJ londrino. Goméz também entrou em contato com o Brasil primeiramente por meio de artistas clássicos da explosão da Bossa Nova, como João Gilberto e Sergio Mendes, mas o gosto da cena de “rare groove” de Londres pelo Jazz Fusion brasileiro foi fator decisivo para a imersão. “É difícil explicar a um brasileiro o que artistas importantes como Tânia Maria, Joyce e Azymuth representam para muitos amantes da música em Londres. Eles fazem parte do nosso DNA coletivo”.

Esse contato era principalmente com o som dos anos 1960 e 1970, por isso o espanto de Gomez quando ele começou a conhecer trabalhos “mais recentes” da música brasileira, principalmente da década de 1980. Saindo da visão estereotipada de compilações com capas que mostravam coisas como “palmeiras, praias e pandeiros”, Gomez encontrou na música de artistas como Marco Bosco, Priscilla Ermel e Fernando Falcão algo que era “inegavelmente brasileiro, mas também parecia pertencer a algum outro lugar”. E assim nasceu Outro Tempo.

“Como estrangeiro com apenas uma relação abstrata com a música, fiz ligações que talvez não estivessem realmente lá. Maurício Pereira, do Os Mulheres Negras, me disse há alguns anos: ‘você é louco, ninguém no Brasil pensaria em combinar nossa música com a de Priscilla Ermel’. Ser estrangeiro me proporcionou uma certa liberdade para estabelecer conexões significativas que talvez fossem mais difíceis para um brasileiro”, conta.

Na mesma edição em que Maria Rita Stumpf se apresentou no Dekmantel, em 2018, o line up contava com mais um grupo de veteranos. O trio Azymuth, formado originalmente em 1973 por José Roberto Bertrami, Alex Malheiros e Ivan Conti (e agora com Fernando Moraes no lugar de Bertrami, que faleceu em 2012), fez um show diurno no festival tocando, em grande parte, faixas de seu disco de estreia Azimüth, de 1975. O álbum foi relançado pela Far Out Recordings em 2007.

A banda carioca, que vai do Funk ao Samba e ao Acid Jazz com maestria, estava quase parada durante o início da década de 1990. “Eu já estava trabalhando em outros lugares quando um amigo meu se encontrou com nosso ex-empresário americano e disse que uma pessoa do clube Jazz Café, em Londres, queria nossa presença lá por uma semana”, fala Alex Malheiros, baixista do grupo. Na viagem, o trio conheceu Joe Davis, fundador do Far Out, e deu início ao que Malheiros chama da segunda fase da carreira do Azymuth: o sucesso e as turnês internacionais.

“Fomos parar na Rússia, na Georgia, na Europa oriental, Japão. Lembro que, em 2010, quando começamos a sentir isso, Bertrami me disse ‘é engraçado, só agora que nós estamos cansados a coisa começa a tomar forma’” – Alex Malheiros (Azymuth)

E, duas décadas depois, eles hoje vivem uma terceira fase graças aos DJs que os conheceram pelos relançamentos – uma fase de sucesso entre os “jovens”, como fala Malheiros, de ter sua música tocada em festas, ser admirado por pessoas de gerações mais novas e se apresentar em festivais como o Dekmantel. “Fomos parar na Rússia, na Georgia, na Europa oriental, Japão. Lembro que, em 2010, quando começamos a sentir isso, Bertrami me disse ‘é engraçado, só agora que nós estamos cansados a coisa começa a tomar forma'”, diz Alex. “Creio que este interesse integra um movimento maior e mundial. Acho que também tem a ver com a internet, que facilita o acesso a estes arquivos”, pondera Maria Rita.

Para John Gomez, o redescobrimento de uma geração da música brasileira não tão clássica ou reverenciada se dá pela distância histórica de seu período original. “Nos anos 1990, eram DJs como Gilles Peterson e Patrick Forge que celebravam a música brasileira, mas a música feita no Brasil nos anos 80 e 90 parecia muito próxima deles. Sempre é preciso ter um período de vinte anos para se olhar para trás, então eles se concentraram em um som que terminou no final dos anos 1970”, fala. “Mas, hoje, uma nova geração de jovens DJs e curadores está olhando para os sons de pop, electro e boogie brasileiros que até agora foram ignorados e achando que eles soam como a coisa mais nova do mercado. E, de certa forma, eles realmente são.”

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