Habituados a três encontros semanais dentro de estúdio, os integrantes da Nomade Orquestra se preparavam para iniciar o projeto do quinto disco, quando foram pegos de surpresa pela pandemia de Covid-19. “A gente se via muito, ensaiava muito, nosso processo era sempre muito unido, com todos criando, seja na estrada ou no estúdio. Com a pandemia, a gente ficou praticamente um ano nessa – de tentar entender como iria funcionar”, lembra o baterista Guilherme Nakata. O período de paciência e entendimento culminou, enfim, em Terceiro Mundo, mais recente disco do grupo, que completa 12 anos em 2024. Com oito faixas, o projeto foi lançado pelo selo nova-iorquino Nublu Records e, além do formato digital, conta com prensagem em vinil confirmada.
Em seu quinto disco, a banda do ABC paulista costura retalhos sonoros e temporais, revitalizando antigas ideias e trazendo novas composições desenvolvidas exclusivamente para o projeto. Essa dinâmica é um sintoma da pandemia, já que a fase germinal do disco ocorreu durante o período de isolamento – mas, ainda assim, a gravação foi feita ao vivo, com todos os integrantes tocando juntos. “A ideia desse disco realmente foi registrar uma parada meio crua, meio suja, mas, ao mesmo tempo, que trouxesse esperança. A esperança de acreditar que a gente vai conseguir mudar, nem que seja um pouco, porque produzimos uma coisa muito rica, mesmo sem as condições ideais, o que nós produzimos tem muito poder. Durante o processo, a gente decidiu gravar ao vivo, com todos integrantes tocando junto, a partir do estudo em cima dos bonecos que a gente produziu, ainda em casa. O play tinha que ser orgânico, tinha que ser todo mundo junto para registrar esta atmosfera do terceiro mundo, a atmosfera do Brasil, a atmosfera do nós por nós, isso tinha que ser tocado junto. Foi super especial”, explica Nakata.
“A ideia desse disco realmente foi registrar uma parada meio crua, meio suja, mas, ao mesmo tempo, que trouxesse esperança”
Com identidade diversificada, a Nomade é como um espaço em que diferentes ecos se somam e se relacionam – uma música instrumental que passeia com naturalidade por jazz, funk, afrobeat, dub e outros grooves. “Logo no primeiro encontro, 12 anos atrás, a gente sentiu uma química. Acho que é aquela parada que acontece quando tá todo mundo na mesma página, sabe? É difícil de acontecer e muito mágico, e a gente sentiu essa magia e decidiu dar continuidade no projeto”. Segundo Nakata, as viagens pelo mundo por conta das turnês, ao longo dessa década de carreira, acabaram influenciando a construção livre e diversificada do caldeirão de referências do grupo. “Pelo selo Far Out Recordings, fizemos três turnês pela Europa, o que foi um marco muito interessante na nossa carreira. Nestes três anos consecutivos, indo para o velho continente fazendo som em diversos países, conhecendo lugares, desbravando públicos, foi uma experiência de divisor de águas. Muitas das nossas composições também foram influenciadas por isso”, reflete o baterista.
De acordo com a banda, a abertura “EntreMundos” representa a transição do segundo álbum para este novo capítulo; “O Nascimento do Sol Invencível” expressa uma fé no futuro – e conta com sample do pensador contemporâneo e ativista Paulo Galo: “Nóis tá armando uma revolução sem falar”. Em “Peixeira Amolada & Quebra-Queixo”, a proposta é explorar estereótipos populares do terceiro mundo, enquanto “Cidade Estrangeira” mergulha na diversidade cultural de São Paulo. “O Extraordinário Presente” traz um sopro de liberdade e esperança, enquanto “Mariposa Tigre” mescla influências do funk e do reggae. No encerramento, “Invasão de Pindorama” reflete a miscigenação cultural do Brasil, e “Revolução dos Cocos” se inspira em uma revolta ecológica ocorrida na Papua Nova Guiné – a primeira revolução ecológica do mundo.
O novo álbum se junta a um catálogo que já tem Nomade Orquestra (2014), EntreMundos (2017), Vox Populi Vol I (2019), Vox Machina Vol I (2019) e Na Terra das Primaveras (2022) – representando uma fase de mudança e, segundo Nakata, de evolução. “As faixas marcam o início de uma nova fase, o início dessa troca com pessoas, com novas energias, e o fim de uma coisa que a gente já vinha fazendo, que a gente evoluiu naturalmente. Às vezes tem um estigma da música instrumental ser uma música muito difícil de digerir, complexa, e não que a gente não goste, não aprecie esse tipo de música, mas às vezes você quer apenas sentir mais sensações do que do que pensar”. A Nomade também comemora a entrada de Ana Eliza Colomar, a primeira mulher a integrar a banda, renovando tanto a perspectiva quanto a sonoridade. “Ela é uma gênia, ela é muito, muito musical, muito inteligente e a gente foi construindo essa relação com os anos, então foi quase que inevitável. Ela acabou entrando e trazendo um frescor pra nossa música, trazendo novas cores, novos olhares, novos debates”.
“O grande lance da Nomade Orquestra é a gente se permitir a brincar com os estilos, sem conservadorismo. É subverter os gêneros e trazer um novo olhar. A gente gosta muito do processo de composição, porque às vezes até uma ideia que você desacredita, e coloca na roda, alguém compra e se transforma em outra coisa”
O time envolvido em Terceiro Mundo é amplo na lista de nomes e de instrumentos: Guilherme Nakata (bateria), Ruy Rascassi (contrabaixo), Marcos Mauricio (piano, órgão, clavinete , sintetizadores), Beto Malfatti (sax tenor, flauta, dizi), Marco Stoppa (trompete, flugelhorn), Bio Bonato (sax barítono, flauta, pífano), Luiz Galvão (guitarra, violão), Victor Fão (trombone), André Calixto (gaita). Raphael Coelho (percussão) e Ana Eliza Colomar (sax alto, flautas, hulusi). Já na bela capa do disco, criada por Ruy Rascassi, a banda expressa a ideia de uma jornada em busca da expressão de identidade e resistência, navegando entre passado, presente e futuro. Ao elencar suas influências musicais, o grupo, também une diferentes recortes temporais e contextuais da música – de Khruangbin e Yussef Dayes a Curtis Mayfield e Skatalites; de Arthur Verocai e Moacir Santos a Ryuichi Sakamoto e Hermeto Pascoal.
“O grande lance da Nomade Orquestra é este: a gente se permitir a brincar com os estilos, sem conservadorismo. É subverter um pouco os gêneros e trazer um novo olhar. A gente gosta muito do processo de composição da banda, porque às vezes até uma ideia que você desacredita e coloca na roda, alguém compra e aquilo se transforma em outra coisa. Para além do papel da música, acredito que este disco exibe a arte como cura, a música como cura – como energia vital para que o nosso público consiga agir diante de situações”.