O Árduo Caminho da Independência

O que leva algumas bandas atuais a recusarem ofertas de selos e gravadoras?

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As possibilidades desse mundo contemporâneo são mesmo incríveis. Recentemente, em virtude de uma newsletter que recebi, com notícias que contam a respeito das atividades de uma banda que costumo acompanhar (tanto pelo meu apreço musical, quanto por minha afinidade com seu modus operandi), resolvi escrever este artigo. Snowmine é uma banda americana que está na altura de seu segundo álbum completo, intitulado Dialects, e que, mesmo um ano depois de seu material já estar pronto para a distibuição e em negociação com uma série de gravadoras, resolveu lançar seu trabalho independentemente.

A Snowmine é, de certo modo, uma banda iniciante, mas o cacife que adquiriu após o lançamento de um álbum completo, um EP e um single por conta própria a tornou capaz de optar deliberadamente em continuar sua carreira sem o apoio de alguma grande gravadora. Este seria um fato impensável para a década que cresci: os anos 90 foram a etapa final da consolidação das grandes empresas que trataram a indústria musical exclusivamente como, bem, uma indústria. Depois disso, diante do declínio deste modo de se produzir música que monopolizava os meios de comunicação, as grandes empresas e gravadoras se viram obrigadas e mudar seu modo de atuação para evitar a falência e seu desaparecimento completo, tornando-se muito mais tolerantes e baixando a guarda de sua autoridade em relação às suas imposições para as bandas que eram o objeto de suas vendas no mercado.

Graças a isso, desde então, a grande briga gira em torno das grandes gravadoras e das Indies, que subsistem, vivem em conflito e num regime de interdependência, disputando domínio mercadológico e se alternando entre controle criativo, direitos sobre as músicas e obrigações contratuais (você pode ler mais no artigo de Nik Silva sobre o assunto, que explica muito melhor. A gente, por enquanto, por aqui, vai um pouco além do tema).

Pois bem, mesmo com o atual exercício de tolerância dos grandes selos e gravadoras, e do senso de alteridade dos independentes, ainda existem bandas que optam por seguir seu árduo caminho da solitude. Porque será que isso acontece?

1- Grana

Bom, me parece que a primeira grande resposta – e mais óbvia – diz respeito à possibilidade de se viabilizar isso financeiramente nos dias atuais. Em primeiro lugar, não só o acesso monetário a equipamentos de qualidade maior e a estúdios é possível, como também o acesso ao conhecimento dos procedimentos de gravação e produção se alastrou muito com a facilidade da Internet (afinal, a impressora 3D está aí e não podemos ignorar). Além disso, existe a possibilidade de se criar ótimos materiais artísticos optando por um estética Lo-Fi, que conta, inclusive, com uma boa parcela do público disposta a ouvir esse tipo de música de “baixa qualidade” (talvez porque remeta, justamente, ao espírito do Do It Yourself Pós-Punk que proliferou a partir do final da década de 70).

É claro que todo o processo de gravação de um álbum de qualidade profissional requer certa quantidade de dinheiro – desde a contratação de eventuais músicos, horas de estúdio até mesmo o processo de polimento final conhecido como masterização, tudo requer um certo planejamento de investimento – mas não é difícil encontrar lugares em que tais processos sejam muito mais rentáveis do que os grandes estúdios de “produtores-midas”, aclamados pela mídia.

De qualquer modo, o grande responsável pela mudança de paradigma no processo de financiamento de um álbum talvez seja mesmo o Crowdfunding. Trata-se de um processo de financiamento coletivo que se consolidou há poucos anos, e diz respeito à colaboração financeira vinda diretamente do público para o produto artístico (no nosso caso). O processo sintomático do pós-capitalismo que floresce justamente no campo artístico musical, esse grande relógio que adianta em relação ao mundo (antes disso, Radiohead já havia estreitado sua relação com o público e começava a subverter a lógica de mercado, oferecendo seu álbum In Rainbows pelo esquema “pague quanto quiser”, você lembra?).

2- Distribuição

Outro grande fator está diretamente ligado à segunda grande função das gravadoras: a distribuição. Pois bem, não há como negar, já há algum tempo que temos os downloads, torrents e YouTube facilitando o acesso ao material das bandas (muitas vezes ilegalmente, mas, ao mesmo tempo, inevitáveis). Contudo, o fenômeno recente de consolidação dos serviços de streaming estabeleceu um novo patamar de facilidade de acesso ao conteúdo produzido e botando por água abaixo o monopólio da influência dos grandes selos (é óbvio que a música comercial ainda existe e ainda é influente na indústria fonográfica mercadológica, mas estamos tratando de outra esfera aqui) no que diz respeito ao acesso aos grandes meios de comunicação. O grande meio de comunicação hodierno é a Internet, e, em meios a todo o seu jogo de vantagens e despropósitos, ela é muito mais acessível que seus anteriores e, logo, democrática.

Graças à eliminação de terceiros na rota comercial da Web, a relação do músico com seu público se torna mais direta e, consequentemente, mais sincera. Não só as famosas recompensas dos projetos de financiamento coletivo estreitam as relações entre os dois (e provam que o dinheiro arrecadado será revertido justamente para o projeto musical em si, e não vai parar no bolso de algum empresário), mas também o acesso às redes sociais como o Instagram tem se mostrado ferramentas úteis neste sentido.

O caso do rapper Tyler, The Creator é um exemplo famoso, mas outros casos são inúmeros e cada uma com um tipo de material interessante: de Brad Oberhofer, que publica uma música por dia, até o caso da banda Death Cab for Cutie, que criou uma conta na rede social para compartilhar momentos das gravações do novo álbum, tem contribuído para um fenômeno muito positivo que é a desmistificação do astro e a o desmantelamento da figura do ídolo intocável. Isso humaniza o artista e aproxima diretamente o produto e o consumidor em outras esferas, que não só a econômica.

3 – Tempo

Por fim, em terceiro lugar, sem a interferência de um selo preocupado em vender seu produto e sem a pressão financeira exercida pelas mesmas, o artista pode permanecer muito mais fiel à seus princípios artísticos e às suas preferências estéticas. Na recente entrevista com Ellis Ludwig-Leone sobre seu projeto San Fermin, o cara cita que não há mais a necessidade de se fazer um hit comercial só para vender mais, o que contribui para o aspecto experimental dos grupos de música Pop e acaba sofisticando a música. Nas palavras dele:

“Acho que tem a ver com a forma que a música é distribuída hoje em dia. É muito fácil achar com a Internet achar qualquer tipo de músico com poucos cliques, enquanto antes as pessoas costumavam ouvir música nova apenas pelo rádio mainstream. Há menos pressão para fazer coisas que são radiofriendly. E ajuda que há menos expectativa que as bandas vão fazer seus selos enriquecerem vendendo discos, então podemos ser mais experimentais e não nos preocuparmos tanto com vendas.”

Existe também o fator “tempo”, como citado no artigo anterior sobre as gravadoras Majors e Indies (que linkei ali em cima). Muitas vezes, uma gravadora assina um contrato para a criação de vários álbuns em sequência, o que pode forçar um artista a correr para não cair no ostracismo do esquecimento do público e, de algum modo “forçar” a criação para que aconteça antes do tempo de maturação devido (isso me parece o grande problema do famigerado segundo álbum dos artistas), aproveitando o tempo de ressaca de seu primeiro álbum de sucesso. Sem pressão, o álbum e suas músicas podem crescer e amadurecer com calma e só irem a público no seu devido tempo.

Pois bem, diante de cenários tão diversos, o que há de melhor e mais me agrada nessa história toda é que há espaço pra todo mundo: há espaço pro fenômenos comerciais hitmakers, há espaço também para as bandas das gravadoras independentes, que atuam dentro de uma lógica de mercado um pouco mais sustentável e que procura respeitar o gosto e a inteligência de suas bandas e de seu público. Mas, sobretudo (e de alguma forma preservando uma espécie de ineditismo nessa história toda), há espaço também para bandas como Snowmine, que, embora faça parte de uma empresa de agenciamento muito interessante ao lado de Arcade Fire, Sufjan Stevens, Neko Case e muitos outros, optou por seguir seu processo de produção independentemente (inclusive empacotando e enviando suas encomendas vendidas por conta própria via correio). Há espaço até para casos mais extremos como o de Tobias Jesso Jr., um cara que (pelo menos por enquanto) subverte a lógica do one hit wonder e que já marcou sua presença no meio musical mesmo mantendo-se em (quase) completo anonimato e com apenas uma música gravada.

O caminho está aberto e é sempre importante manter os olhos e ouvidos abertos para novas maneiras inteligentes de continuar criando e administrando seus projetos, ainda mais no nosso sistema ecônomico em transição aparente. Ah, sim, é claro, se você gosta de Snowmine e quiser contribuir com os caras, pode acessar o site da banda aqui, o projeto deles ainda deve durar alguns dias.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte