Epifania pode ser definido como um sentimento de compreensão ou o surgimento de uma ideia genial. Esses momentos costumam ser creditados à iluminação divina ou a algo como uma intuição quase mágica. Para Cristal Rocha, a epifania mais importante chegou como forma de libertação para entender sua identidade pessoal e artística.
Pela mãe, a avó e a tia veio o incentivo à leitura, e a porto-alegrense encontrou na poesia a primeira forma de se expressar com a arte. “Tinha muito contato com os materiais didáticos que minha mãe e vó tinham em casa, por serem professoras. Sempre fui incentivada a ler e ganhava muitos livros de presente da minha família. Minha tia é professora de literatura e português e ela foi uma grande influência, pois me deu o meu primeiro livro de protagonismo negro, o Princesas Negras. A partir daí, criei o hábito de leitura porque quis buscar os livros que me interessavam”.
Além da introdução ao universo literário, a família foi responsável por proporcionar um sentimento de pertencimento em Cristal. “Era bolsista numa escola católica e as referências negras que eu tinha eram da minha família. Tive um letramento racial em casa, mas quando fui para a escola entendi o que significava ter uma pele negra. E minha família é espalhada pela cidade, então sempre estive próxima deles e ia me espalhando pelos cantos. Lembro de tentar me reconhecer em algum lugar e sempre me sentir meio estrangeira na cidade”. Articuladora das palavras, Cristal descarregou insatisfações com questões sociais e elaborou suas aspirações de vida a partir do slam.
Foi nesse período que a parceria com o produtor e primo MDN Beatz começou. “O MDN Beatz morou um tempo fora de Porto Alegre. Quando ele voltou, me encontrou, nos meus 15 anos, no slam e revoltada com o sistema. Ele não entendeu nada, mas, quando viu as rimas, me chamou para ir no estúdio gravar sem pretensão e rolou. Nossa sintonia é natural e sempre tivemos gostos parecidos”.
A estreia veio com singles como “Rude Girl” e “Ashley Banks” – e na sequência, em 2021, Cristal lançou o EP Quartzo, que caminha entre o rap e o R&B. Em Epifania, disco lançado em agosto deste ano, as inspirações partem para o soul e o funk dos anos 1970, com grooves intensos e backing vocals marcantes, além de batidas eletrônicas contemporâneas. Entre as referências, estão nomes como Cassiano, Tony Tornado e Sandra de Sá, mas Cristal buscava ressoar essas influências e, ao mesmo tempo, imprimir sua assinatura. “Não queria fazer uma paródia ou uma réplica do que já existia – queria fazer algo que tivesse o meu jeito, mas com homenagens às referências que eu tinha. Não queria fazer algo com samples, mas com elementos e sonoridades que remetessem àquela época, como se a gente produzisse naquela época. E Epifania é uma continuação do que já foi feito”.
“Não queria fazer uma paródia ou uma réplica do que já existia – queria fazer algo que tivesse o meu jeito, mas com homenagens às referências que eu tinha. Não queria fazer algo com samples, mas com elementos e sonoridades que remetessem àquela época”
A pesquisa de Cristal para Epifania veio de dentro de casa, garimpando – e reouvindo – a coleção de discos herdada da família. Mas, mais do que homenagear ícones do soul brasileiro, o desejo da artista era sentir a atmosfera daquela época por meio de suas próprias criações, deixando aflorar um sentimento nostálgico. “Essas referências de Cassiano, Tim Maia, Jorge Ben e Sandra de Sá vieram de dentro de casa, de discos herdados do meu tio, mãe e avó. Estavam ali e decidi buscar naquele acervo – um grande tesouro, e eu sabia que ia me identificar. Algumas músicas não eram novidades, pois eu escutava desde pequena por conta da minha família. A vontade de escutar veio de uma nostalgia, para eu me sentir parte de algo. A música sempre esteve em momentos de união da minha família, e eu queria trazer isso. E, sinceramente, queria ter vivido aquela época dos bailes black. Epifania foi uma brecha para isso [risos]”.
“Queria trazer essa sensação de que é possível a gente criar as nossas fantasias – e foi a realização de um sonho. Como artista negra, a gente reflete muito o que o nosso povo vive e nem sempre o que a gente vive é só tristeza e morte. Quis trazer um pouco de felicidade, do fantástico e da chance da gente se ver no que é ‘impossível’ também”
Cristal mescla o clássico com o moderno para entoar ideais e grooves de uma época em que a coletividade e o talento de artistas negros criaram uma força expressiva cujo legado é sentido, cultural e politicamente, até os dias atuais. Da luta pelos direitos civis e a consolidação de astros como James Brown nos Estados Unidos a movimentos como Black Is Beautiful no Brasil, os bailes black se tornaram um ambiente de aquilombamento para uma população oprimida.
A ambientação desse cenário se incrementa com o curta de Epifania. Dirigido por Cleverton Borges, também responsável pelo roteiro ao lado de Cristal, o registro conta a história de Soul, que está passando por um bloqueio criativo e é levada em uma viagem pela dimensão da epifania por Doni, personagem inspirado no tio de Cristal que faleceu durante o processo de produção do disco. “Meu tio Doni virou um personagem no filme porque ele viveu essa época dos bailes. Ele era aquele aquela pessoa artística que andava com blackzão e com as roupas mais exóticas. Queria homenagear ele e dizer que tinha um pouco de mim naquela década”.
“Finalmente encontrei algo que me contemple por inteira e que me deu um brilho novo para o que eu estava fazendo. Não queria sentir que a música algum dia poderia me cansar. ‘Epifania’ me deu essa esperança de que há muito mais ainda para acontecer”
Inspirada por animações como The Midnight Gospel e Entergalactic, a artista conta que realizou um sonho ao criar o seu próprio desenho e que, em seu disco, foi capaz de fazer algo que nem sempre é possível ao pensarmos nas expectativas que circundam o rap: soltar sua voz. “Como o processo de Epifania aconteceu em muitas camadas, queria mostrar para o público as voltas da minha cabeça. Nesse pensamento de me imaginar num lugar quando ouço soul music brasileira, pensei em criar esse lugar fantástico. Isso juntou com a busca de me desconectar de uma imagem em que a minha voz às vezes me limitava, porque no rap a gente espera uma postura. Tem que rimar bravo, tem que rimar em tal tom, não pode cantar muito porque ‘já não é mais rap’. Estava tentando me soltar disso, porque gosto de cantar. Então, criei uma personagem que passa por esse processo simbolicamente, uma aventura em busca da própria voz. E o Doni a acompanha apresentando as referências e as dificuldades desse caminho. Queria trazer essa sensação que é possível a gente criar as nossas fantasias – e foi a realização de um sonho. Como artista negra, a gente reflete muito o que o nosso povo vive e nem sempre o que a gente vive é só tristeza e morte. Quis trazer um pouco de felicidade, do fantástico e da chance da gente se ver no que é ‘impossível’ também”.
Recuperando o passado para entender o presente, Cristal ressalta sua autoestima e confiança em faixas como “Vida Antiga”, “Imagem e Som” e “Estrela”. Já em “Cuidado” e “O Asfalto é Frio”, ela versa sobre os conflitos que a pressa, a ganância e a vaidade podem causar. Em “Corre”, a artista apresenta uma releitura de “BR-3”, de Tony Tornando. “Eu tentei passar para o público o que a música do Tony Tornado me tocava. Quando ele diz: ‘Um Jesus Cristo feito em aço crucificado outra vez’, me remetia muito à violência, à discriminação e ao homem negro como alvo do Brasil. Na jornada musical, quis trazer a dificuldade de se manter nesse caminho e como muitas desistem ou morrem anônimos”.
No conceito Ubuntu, filosofia africana originária dos povos Bantu, é propagada a ideia de “eu sou porque nós somos” – ou seja, a coletividade é essencial para a existência do ser. Isso reforça o poder da ancestralidade e da comunidade para guiar o presente. O conceito é destrinchado por Cristal, que reforça a importância das parcerias em sua vida. Em “Love Community”, cantada com Drik Brabosa, a artista afirma ser melhor em bando e celebra as pessoas que estiveram ao seu lado e que foram essenciais para sua construção identitária. Já em “Obrigada Black” e “Isso é o que Eu Soul”, além da ancestralidade familiar, Cristal agradece à comunidade negra e aos ensinamentos passados por meio dos discos.
“Entendi que há pessoas em que eu me reconheço e que me compreendem. E que compreendo melhor o mundo quando estou ao lado delas, isso por me reconhecer nelas. Tem coisas que eu queria dizer, que sozinha não poderia dizer. Convidar a Drik Barbosa para participar de uma música que celebra a comunidade, por exemplo, é muito especial, pois ela me inspirou a cantar. Essa é a importância de se reconhecer no outro, dar continuidade. O Paulo Dionísio, grande referência do Rio Grande do Sul no reggae como voz negra, e a Marietti Fialho são cantores que estão ativos e são artistas antes mesmo de eu nascer. O convite surge como forma de agradecer. E só eles poderiam trazer o sentimento de ancestralidade que eu queria para esse álbum”, conta Cristal.
Sintetizando a viagem de Epifania, a faixa “Vitória” reforça o momento em que o medo e a insegurança dão lugar para o sentimento de completude. Ao revisitar o passado através da música, mas reforçando laços afetivos do presente, Cristal conseguiu se ver, deixando para trás o sentimento de inadequação, para criar o seu caminho. “Finalmente encontrei algo que me contemple por inteira e que me deu um brilho novo para o que eu estava fazendo. Não queria sentir que a música algum dia poderia me cansar. Epifania me deu essa esperança de que há muito mais ainda para acontecer”.